
Agroneg�cio. De uma maneira geral, essa parece ser a palava que surge na cabe�a dos brasileiros de outras regi�es quando se fala do Centro-Oeste, vastid�o territorial com 1,6 milh�o de quil�metros quadrados formada por Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goi�s, al�m do Distrito Federal. Soja e carne bovina est�o no topo do agroneg�cio apregoado como um dos grandes pilares da economia nacional, entre vivas e muitas cr�ticas. A literatura, entretanto, tamb�m descortina um outro Centro-Oeste, mistura realidade, fic��o e fantasia para contar infinitas hist�rias, como as encontradas nos livros do escritor cuiabano Joca Reiners Terron. Ele retorna ao mundo liter�rio com “Onde pastam os minotauros”, drama ambientado num abatedouro de bois ilhado entre uma planta��o de soja num lugar imagin�rio no interior do Mato Grosso onde d� liberdade plena � imagina��o. “O Centro-Oeste � lugar ignorado no imagin�rio brasileiro, e, como todo ermo, exige ser preenchido por hist�rias”, afirma Terron nesta entrevista ao Pensar.
O escritor tamb�m demonstra preocupa��o com as terras dominadas pelos grandes latif�ndios: “O limite do agroneg�cio � que a Constitui��o seja obedecida e a reforma agr�ria seja realizada a contento. O Mato Grosso, cujas terras est�o nas m�os de latifundi�rios, foi devastado. Imagine se a Amaz�nia estivesse nas m�os de poucos, como acontece no Centro-Oeste. A selva n�o existiria mais”. Outra reflex�o provocada pelo novo livro de Terron � o consumo excessivo de carne, neste caso, a partir da realidade cruel de degola de bois no matadouro. “Quando compra um bife no supermercado, voc� pensa se o sujeito que matou aquele animal disfar�ado ali em isopor e pl�stico sofreu ao fazer aquilo? Pensar nisso � um primeiro passo, outro � lembrar que a morte � o principal artigo � venda num supermercado, e que isso tem um pre�o”, reflete o autor.
Considero “Onde pastam os minotauros” um dos livros mais perturbadores e inquietantes da literatura brasileira nos �ltimos tempos, ali�s uma caracter�stica de suas obras. Como surgiu a ideia de escrev�-lo? Sem trocadilho com os bois, � mais uma obra gerada pelo confinamento angustiante da pandemia, que tamb�m tem presen�a marcante na vida do Crente, diante do drama da filha e da mulher? E por que a figura do Minotauro? Para mostrar o sofrimento dos dois lados, o humano e o animal?
Tenho ouvido isso de que o livro � inquietante. Talvez eu devesse ter escrito um livro reconfortante, j� que passamos por tempos dif�ceis e as pessoas est�o exaustas de serem amea�adas. Nunca sei explicar de modo coerente a origem dos meus livros. As narrativas surgem de maneira confusa, a partir de est�mulos trazidos pela realidade dos fatos e leituras, e aos poucos v�o se configurando na forma de escrita. Pode levar bastante tempo para chegar a esse est�gio. Como exemplo, “Onde pastam os minotauros” teve seu primeiro �mpeto em 2007 ou 2008, quando numa conversa com Gustavo Mayrink (ambos trabalh�vamos numa produtora de cinema), discutimos uma poss�vel pauta que envolvia abate religioso halal e kosher num matadouro do Mato Grosso do Sul. A reportagem n�o foi adiante, mas a ideia permaneceu palpitando todos esses anos. Me identifico com o Minotauro. Sinto que, igual a ele, estou entre ser uma coisa e outra, parado no meio do caminho, inquieto e inc�modo.
Quanto tempo voc� levou para escrever as 180 p�ginas de “Onde pastam os minotauros”. Foi r�pido ou precisou de tempo para reflex�o ou de dar muitas voltas, como faz o Crente? Ou Lucy, “aprender a pensar no pequeno e no imenso” em busca de um mundo mais justo?
Meus livros sempre exigem o tempo da reflex�o e o tempo da escrita, que s�o tempos diferentes. Penso, penso e penso. Depois sento e escrevo. Esse teve a primeira fagulha h� 15 anos, como disse, e foi escrito entre agosto de 2021 e outubro de 2022.
“Quando a piedade do C�o passou a ser usada para servir ao abate industrial de animais, quando ele adquiriu consci�ncia de que seu carinho pelo gado s� servia para esse apaziguamento de fundo econ�mico, que seu amor pelos bichos amaciava a carne deles, aumentando o valor do quilo, decidiu arranjar outro modo de sobreviv�ncia”. Essa convic��o do C�o evidencia uma contradi��o do m�todo halal dos mu�ulmanos do ponto de vista dos animais – que � muito claro no livro: engan�-los com bom trato para garantir o bem-estar deles antes do abate e minimizar o sofrimento?
O manejador tem de ser um sujeito jeitoso, isso em qualquer matadouro n�o apenas halal, pois os animais se ressentem quando s�o maltratados e n�o seguem para o abate tranquilamente, caso reconhe�am do outro lado da cerca quem os maltratou. O C�o, que ao nascer foi abandonado pela m�e num cocho da fam�lia do Crente, percebe que seu carinho pelos animais � explorado. Na narrativa, ele se encontra no meio dessa contradi��o. A quest�o � que o abate religioso, halal e kosher, n�o � exatamente humanit�rio. Nele, o animal precisa estar consciente para ser abatido. E o abate industrial de qualquer ordem, religioso ou n�o, � execr�vel, pela mortandade, mas tamb�m pela dor moral que causa nas pessoas que trabalham na linha de frente do abate. Quando compra um bife no supermercado, voc� pensa se o sujeito que matou aquele animal disfar�ado ali em isopor e pl�stico sofreu ao fazer aquilo? Pensar nisso � um primeiro passo, outro � lembrar que a morte � o principal artigo � venda num supermercado, e que isso tem um pre�o.
Como se deu a ideia de trazer o conflito �tnico-religioso do Oriente M�dio para o Centro-Oeste brasileiro na figura do abatedor Ahmed?
O Brasil � o principal exportador de carne halal, ent�o me pareceu que Ahmed cabia na realidade retratada no livro. Al�m disso, h� evidentes conota��es simb�licas na forma em que os palestinos s�o tratados por Israel que remetem aos abatedouros: cercas que confinam, viol�ncia indiscriminada e um labirinto pol�tico e humanit�rio sem sa�da.
“O Crente e o C�o desistiram dela faz tempo. Da carne. Primeiro, se enfastiaram das sobras, dos peda�os duros que os ricos n�o comem: v�sceras, m�sculos, o rabo cozido, os bagos do boi. N�o muito depois, o fastio evoluiu para o nojo. Lucy os acompanhou no jejum”. Esse trecho dos protagonistas e a crueldade na matan�a dos bois e no desfecho da narrativa podem levar o leitor de “Onde pastam os minotauros ” a abandonar o consumo de carne ou pelo menos a refletir sobre o excesso de consumo? Voc� tinha essa ideia em mente ao escrever uma obra indigesta para os comedores de carne bovina?
N�o acredito que uma obra de fic��o possa ter efeito t�o concreto. Eu n�o tinha em mente qualquer aspecto moral que porventura o livro possa trazer, ao menos n�o no sentido que uma f�bula de Esopo tem, delineada e inflex�vel. Talvez a hist�ria do C�o, do Crente e de Lucy Fuerza apenas queira incutir algumas perguntas na cabe�a do leitor, provavelmente sem respostas. Mas n�o sou alheio � ideia de que o �ltimo anseio moral da literatura � mudar o mundo. S� n�o acredito que isso ainda seja poss�vel, ainda que algu�m deixe de comer carne por causa do livro. Bem, talvez isso seja mudar o mundo.
“O Crente preferia que o outro n�o pensasse. A vida � mais simples de cabe�a vazia, tem menos remorso. Desde que o amigo come�ou a pensar, muita coisa vinha acontecendo”. Inversamente ao pensamento descrente do Crente, seus livros fazem o leitor refletir sobre a condi��o humana e os males da civiliza��o. Como diria Fernando Pessoa: “Pensar incomoda como andar � chuva, quando o vento cresce e parece que chove mais”. Esse � o seu intuito tamb�m?
N�o sei. Tenho a impress�o que meus melhores pensamentos ocorrem nos meus livros, ou que meus livros n�o passam de uma desculpa para eu pensar melhor por meio da escrita. No resto do tempo os pensamentos v�m de maneira confusa e imaterial, e nos textos essa confus�o encontra sua forma. Quando escrevo, desejo apenas expressar o que sinto e penso, ent�o entendo que se os livros causam o mesmo nos leitores, eles cumprem seu papel.
Outra caracter�stica do livro � o avan�o da cria��o de gado e do plantio de soja, ambos em grande escala, engolindo os recursos naturais no Centro-Oeste brasileiro. Na sua opini�o, qual o limite do agroneg�cio e como equacionar essa quest�o paradoxal: essencial para a economia brasileira e danoso para o meio ambiente?
O limite do agroneg�cio � que a Constitui��o seja obedecida e a reforma agr�ria seja realizada a contento. O Mato Grosso, cujas terras est�o nas m�os de latifundi�rios, foi devastado. Imagine se a Amaz�nia estivesse nas m�os de poucos, como acontece no Centro-Oeste. A selva n�o existiria mais. N�o � quest�o meramente de economia, mas de sobreviv�ncia: o cultivo familiar, incluindo a pecu�ria, restabeleceria valores morais, econ�micos e humanit�rios que podem salvar a natureza e o planeta para gera��es futuras. � o caminho mais razo�vel.
Por que o Centro-Oeste tem tantas hist�rias para contar? Seria pela imensid�o territorial e pela diversidade regional?
O Centro-Oeste � lugar ignorado no imagin�rio brasileiro, e, como todo ermo, exige ser preenchido por hist�rias. O Mato Grosso em particular, pois Goi�s talvez seja mais conhecido, e mais especificamente a regi�o fronteiri�a com Paraguai e Bol�via, onde algumas de minhas narrativas se passam, na prov�ncia mutante do [livro] “Curva de Rio Sujo, que fica em algum lugar entre Bela Vista e um buraco negro.
“Onde pastam os minotauros” se passa no interior do Mato Grosso do Sul?
Para mim s� existe um Mato Grosso, o imagin�rio. N�o obede�o �s restri��es dieg�ticas, por exemplo relativas �s dist�ncias entre uma cidade e outra. Entendo que algumas dessas narrativas se passam em “Curva de Rio Sujo”, que pode estar no Mato Grosso, mas tamb�m pode ser uma esta��o de metr� abandonada em “O riso dos ratos” ou um bar flutuante no rio Pur�s, como em “A morte e o meteoro”. Neste novo livro � o matadouro, cujo nome traz a sigla CRS. Trata-se de um lugar que vai mudando, e que sumir� num buraco negro em meu �ltimo livro. Mas isso n�o passa de especula��o.
Uma pergunta indispens�vel para o autor de uma obra t�o brutal sobre a matan�a exacerbada de bois para alimenta��o humana: voc� come carne?
Sim, eu como carne. Mas cada vez menos, por causa do meu metabolismo que se tornou mais lento com a idade, e por causa do pre�o. Procuro diminuir o consumo ao longo da semana, e quando poss�vel consumir carne org�nica ou com selos de tratamento humanit�rio aos animais.