
Al�m disso, Leones � autor da obra infantojuvenil “Daniel est� viajando” (Quase Oito, 2019) e participa de diversas antologias brasileiras e no exterior. Ele acaba de publicar seu s�timo romance, “Vento de queimada” (Record, 2023), que ele mesmo define como um “pequi noir”. A seguir, a entrevista do autor ao jornalista e escritor goiano Ad�rito Schneider, especialista na obra de Leones, a respeito do novo livro e de seu trabalho.
Ad�rito Schneider
Especial para o EM
Tive a impress�o de que “Vento de queimada” � um romance em que voc� faz esp�cie de balan�o de sua carreira liter�ria. Tem Silv�nia (cidade goiana) com suas tr�s escolas cat�licas de “Hoje est� um dia morto” (sua publica��o de estreia) e, como voc� mesmo disse em outra ocasi�o, a g�nese do romance est� no conto que d� t�tulo ao livro “Paz na Terra entre os monstros”. Al�m disso, voc� mesmo afirma trabalhar nessa obra com a falsa dicotomia entre “mundo” e “submundo” que come�ou a desenvolver em “Abaixo do para�so” e o romance tem um final que aponta para recome�os poss�veis, que voc� mesmo ressalta como algo que marca “Dentes negros” (que aparece numa cena de pesadelo em “Vento de queimada”) e “Terra de casas vazias”. � isso mesmo? Voc� est� neste momento de fazer um balan�o da trajet�ria como escritor?
Talvez, mas n�o em um n�vel consciente. Sei que em todos os meus livros sempre levo alguma coisa dos anteriores. Aquele em que fiz isso de forma mais consciente foi “Abaixo do para�so”, no qual h� cita��es (expl�citas ou impl�citas) de tudo o que eu havia publicado at� ent�o. O que acontece � que, de uns anos para c�, o meu processo criativo se tornou menos linear. Antes, eu tinha uma ideia e trabalhava exaustivamente nela e em torno dela, sem desvios ou distra��es, do come�o ao fim do processo. Era um processo “limpo”, reto. Hoje, tenho uma infinidade de ideias que se atropelam e atravessam, coisas iniciadas e abortadas e resgatadas, e tem sido cada vez mais dif�cil amarrar os projetos em meio a essa confus�o. Consegui com “Eufrates” e “Vento de queimada”. Terminei de escrever “Vento de queimada” h� dois anos e, desde ent�o, n�o consegui nenhuma “amarra��o” satisfat�ria. Escrevi as primeiras vers�es de um “prequel” (sobre a viagem de Garcia de 1965-66), mas n�o parece certo, n�o parece bom, tanto que o engavetei. Tentei e tento flertar com coisas distantes desse universo, mas tamb�m n�o deu liga, algo sempre parece deslocado, fora do tom, fora do prumo. N�o � que eu esteja bloqueado. Tenho ideias e escrevo quase todos os dias. S� n�o tenho escrito nada que me pare�a auspicioso.
N�o pela primeira vez, seu romance � uma constela��o de cidades. Desta vez, em especial Goi�nia e cidades do interior goiano, Bras�lia e cidades sat�lites e S�o Paulo (e Santos). Naturalmente, aqui temos uma queimada (uma s�rie de assassinatos) que se alastra com o vento por esses territ�rios, num per�odo de seca. A protagonista (Isabel) � tanto v�tima de inc�ndio criminoso quanto algoz, ou seja, o pr�prio fogo que queima e mata (embora ela tamb�m se “purifique” com o fogo, em alguma medida). Mas, na primeira entrevista que fiz contigo, cerca de tr�s anos atr�s, voc� me disse que foi “meio n�made at� os trinta anos”. Qual � a rela��o deste “road movie” de Isabel com sua pr�pria vida e as cidades nas quais viveu e vive?
Gosto mais da express�o “road novel”. Respondendo � pergunta, a rela��o � completa. Como n�o me canso de dizer, s� consigo escrever hist�rias que se passem em lugares nos quais j� vivi ou estive por um certo per�odo de tempo.
Voc� resume “Vento de queimada” como um “pequi noir”, mas flerta explicitamente tamb�m com outro g�nero: o western (ou faroeste – ou bangue-bangue, para ser mais claro). Num determinado trecho do romance, chega a falar at� mesmo em “volta do canga�o”. Como foi trabalhar com essas refer�ncias, flertando com esses g�neros num tr�nsito entre Goi�nia, uma metr�pole roceira; Bras�lia, a capital (planejada) do pa�s; S�o Paulo, a maior e mais cosmopolita metr�pole brasileira; e as cidades do interior goiano, ou seja, o “interior do interior”?
Isso de “pequi noir” � mais uma brincadeira que fa�o. Mas gosto muito de estabelecer e sublinhar contrastes, e poucos pa�ses s�o t�o convidativos para esse tipo de expediente quanto o Brasil. Acho que isso ajuda, tamb�m, a debelar conceitua��es falhas como “regionalismo” e afins. A quest�o, para mim, � lan�ar esse olhar de dentro para fora, e n�o o contr�rio. Embora viva em S�o Paulo h� tempos, o meu olhar � e sempre ser� centro-oestino. N�o digo que um paulistano da Mooca n�o possa escrever um romance situado em Bonfin�polis. N�o caio nessa cretinice. Todo escritor � livre para escrever sobre o que quiser, do jeito que quiser e de onde estiver. Mas o olhar do paulistano sobre Silv�nia ser� diferente do meu olhar por motivos �bvios. E � preciso sublinhar isso: diferente, mas n�o necessariamente melhor ou pior.
Num determinado trecho de “Vento de queimada”, � dito que o Brasil � “um amontoado de pa�ses estrangeiros. Para onde quer que se olhe. Uma terra estrangeira depois da outra”. E a narrativa come�a em Goi�s (o munic�pio, antiga capital, vulgarmente conhecida como Goi�s Velho – ou Goi�s “V�i”, para ser mais exato), num feriado, em um evento religioso e tur�stico (a Prociss�o do Fogar�u), e a primeira frase do romance � justamente a fala de um gringo (estadunidense) com um “lev�ssimo sotaque estrangeiro”. Voc� se sente um estrangeiro em Goi�s? Voc� se sente um alien�gena no Brasil?
Acho que os bairrismos e o patriotismo nunca trouxeram nada de bom. N�o chego ao extremo de afirmar (como faz um personagem do romance) que o patriotismo � uma doen�a mental, mas coisa boa n�o � — vide o uso que os sistemas totalit�rios � esquerda e � direita fazem desse tipo de sentimento, vide a que o patriotismo levou alguns brasileiros em tempos recentes (em alguns casos, e com justi�a, � cadeia). As mazelas do Estado moderno j� foram devassadas por gente muito mais capaz do que eu, como o Giorgio Agamben do “Homo sacer”. Agora, creio que o estranhamento � algo que sinto no Brasil ou fora dele. � algo que sempre senti, uma esp�cie de inadequa��o essencial. E ela certamente me ajuda a escrever, pois cria ou alimenta um distanciamento que me parece imprescind�vel para a minha cria��o liter�ria.
Tenho a sensa��o de que “Vento de queimada” � o seu romance mais goiano, mesmo que muitas de outras de suas narrativas estejam ambientadas (ainda que parcialmente) em Goi�s. Mais do que isso, tenho a impress�o de que esse � seu romance mais conscientemente goiano. As dezenas de cidades do interior, Goi�nia, a culin�ria, a m�sica, os times de futebol, as festas populares, o sotaque, as express�es e g�rias... Voc� concorda com isso? Caso sim, o que motivou essa postura? E como foi trabalhar com essa “goianidade”?
Talvez seja mesmo o meu livro mais goiano, junto com “Abaixo do para�so”. A hist�ria a ser contada � sempre o principal motivador. A partir do momento em que delimito a ambienta��o, muita coisa � decidida, por assim dizer. � uma parte do trabalho de que gosto muito, isso de pesquisar sobre fatos e curiosidades locais, como foi a Prociss�o do Fogar�u naquele ano, quem ganhou aquele Vila vs. Goi�s etc. A sensa��o de frequentar certos lugares e festividades � algo que n�o se esquece, e foi relativamente f�cil encontrar palavras para descrever isso, sempre em fun��o de cada personagem. Eu crio essas pessoas e tento ver as coisas pelos olhos delas. �s vezes, o que elas veem coincide com o que eu vejo; na maior parte do tempo, n�o, e � a� que as coisas ficam interessantes.
O romance � primordialmente ambientado em 1983, anos finais da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), e a quest�o da ditadura e dos militares est� constantemente presente, mas n�o � exatamente o foco. O que motivou essa escolha focal?
Nos �ltimos anos, falou-se muito sobre o fim da Nova Rep�blica e a instaura��o sabe-se l� do qu�. N�o acredito que esteja morta, mas que tenha sido aprimorada para o mal, com seus v�cios incrementados gra�as a figuras como o atual presidente da C�mara dos Deputados. Quis voltar ao per�odo imediatamente anterior � redemocratiza��o para ressaltar como esses v�cios est�o presentes desde sempre. O livro �, tamb�m, uma obra marcadamente decadentista. Situar uma obra nos estertores da ditadura militar me pareceu uma forma de ressaltar esse aspecto. Por fim, muito do que acontece na narrativa n�o seria poss�vel (ou n�o se daria daquela forma) ap�s o advento da telefonia m�vel. Ali�s, as dificuldades de comunica��o (e n�o apenas por motivos tecnol�gicos) s�o muito importantes para o desenrolar da hist�ria, e real�am a sensa��o de que, em diversos momentos, Isabel est� encurralada e incomunic�vel.
Mais uma vez, seu romance tem uma protagonista feminina. De alguma maneira, sinto que voc� faz (com qualidade) personagens femininas complexas (assim como a Patricia Melo � excelente na constru��o de personagens masculinos – e tamb�m a Ana Paula Maia, para ficar em apenas dois exemplos contempor�neos). � claro que mulheres podem discordar radicalmente do que estou afirmando e me acusarem de estar falando uma enorme besteira. Mas, enfim, gostaria que voc� falasse um pouco dos motivos para escolher uma mulher como protagonista deste romance “noir” e de que forma isso foi constru�do.
Volto �quele lance dos contrastes, e de como gosto deles. Queria que a protagonista fosse uma pessoa vulner�vel, fisicamente franzina, pequena. Pensei que isso contrastaria bem com os muitos antagonistas, todos maiores e amea�adores, poderosos, fortes: uma Davi cercada por v�rios Golias, uma mulher cercada por “cidad�os de bem”. Ent�o, foi uma quest�o de incrementar os motivos que constituem e alavancam a narrativa.
Como disse em nossa primeira entrevista, percebo a crise da masculinidade – que � um tema central em boa parte da literatura brasileira contempor�nea – muito forte em sua obra. Em “Vento de queimada”, temos uma pistoleira que atira nos bagos de um jagun�o arruaceiro, um homem impotente que sonha com a mulher castrando-o com uma tesoura, um velho ped�filo de pau murcho... De que maneira essa quest�o � importante para voc�, como autor?
“Vento de queimada” foi escrito durante o governo Bolsonaro, quando a toxicidade machista chegou a n�veis insuport�veis. Foram anos em que senti muita raiva. Todos os dias. Era exaustivo, mas a escrita me ajudou a canalizar essa raiva. Criar personagens deplor�veis e coloc�-los em situa��es como as que voc� citou foi algo terap�utico.
Seu primeiro romance (“Hoje est� um dia morto”) foi adaptado para os cinemas e virou o filme (longa-metragem) “Dias vazios”, dirigido pelo cineasta (goiano) Robney Bruno Almeida. Li que “Vento de queimada” ser� adaptado para o cinema pela Conspira��o Filmes (com sede no Rio de Janeiro). Como � para voc� ver seus romances virando filmes, especialmente considerando que voc� � um cin�filo?
Acho �timo. E tor�o para que as pessoas que adaptarem “Vento de queimada” sintam-se t�o livres quanto o Robney na hora de lidar com o livro. Embora repleto de perip�cias e de a��o, � tamb�m um livro que se passa muito na cabe�a de Isabel. Estou curioso para saber como v�o lidar com isso, como traduzir�o isso cinematograficamente.
Para fechar, volto ao come�o: qual � o balan�o que voc� faz de sua carreira at� aqui? Como enxerga o atual momento da literatura brasileira (e do mercado editorial brasileiro) e como se enxerga no meio disso tudo?
Estou satisfeito com o que produzi at� aqui e com a recep��o dos meus livros. Fico feliz que um grande grupo editorial se disponha a publicar meu trabalho. Olhando ao redor, parece-me haver uma diversidade cada vez maior de vozes e estilos, o que � sempre �timo. O mercado editorial sofreu diversos baques em anos recentes, com os calotes e a quebradeira das grandes redes e a pandemia, mas parece se recuperar aos poucos. No Brasil, tudo � muito incerto, mas a prolifera��o de editoras menores, que apostam em nichos espec�ficos, � algo a se celebrar. Quanto mais, melhor. Quanto maior a diversidade, melhor.
*Ad�rito Schneider � jornalista, escritor, roteirista, cineasta e professor e pesquisador de Cinema e Audiovisual do Instituto Federal de Goi�s (IFG) – Campus Cidade de Goi�s. � um dos autores e organizador das antologias “Cidade sombria” (MMarte Produ��es / Ideia de Girino, 2018) e “Cidade infundada” (martelo casa editorial / Ideia de Girino, 2022) – este �ltimo em parceria com a escritora Fernanda Marra – e autor de “O rastro da lesma no fio da navalha” (Patu�, 2022).