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Mariana Enriquez e as primeiras li��es de pavor

Publicados antes dos livros mais aclamados da autora argentina, contos de "Os perigos de fumar na cama" t�m linguagem mais crua na explora��o do horror


07/10/2023 04:00 - atualizado 07/10/2023 00:05
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Mariana Enriquez , Autora argentina
O fator de cont�gio social da obra de Enriquez a aproxima um pouco de cl�ssicos como 'Ensaio sobre a cegueira', de Jos� Saramago, e de 'A peste', de Albert Camus, que tanto apontam o quanto o fascismo � algo como um zumbi, pronto para ser revivido a qualquer momento (foto: Reprodu��o)

 

SCHNEIDER CARPEGGIANI

ESPECIAL PARA O EM


“Don't smoke in bed”(composta por William Robinson), ou o aviso fatal de “N�o fume na cama”, � um marco do cancioneiro dos Estados Unidos da primeira metade do s�culo passado. Sua letra pode ser lida como um microconto de terror: algu�m lista as etapas de uma separa��o. O bilhete de despedida foi deixado na c�moda. Ao seu lado, a velha alian�a de casamento repousa. As malas est�o prontas. A gente at� consegue entrever o t�xi esperando no port�o da frente. No entanto, a impress�o � que a a��o ocorre inteira no meio da madrugada, de maneira furtiva, com o abandonado dormindo sem nem suspeitar. O mais certo seria dizer que “Don't smoke in bed”retrata menos uma separa��o que uma fuga. O detalhe fantasmag�rico emerge s� no �ltimo verso. Quem avisa que quer ir embora (ou fugir), sem mais not�cias de sua antiga vida (“n�o procure por mim, vou seguir em frente”, enfatiza), sussurra seu “feiti�o" antes de bater a porta de vez. E o “feiti�o” nada mais � que uma lembran�a cotidiana, mas que (sabe-se l� o porqu�) tem o poder de infernizar para sempre a cabe�a de quem ficou para tr�s: “Lembre, querido, n�o fume na cama”. � como se a can��o terminasse em “fiat lux”, com as imagens das chamas subindo diante dos nossos olhos. 

Leia: Mariana Enriquez inclui crise econ�mica e negacionismo entre os pesadelos da Argentina

� poss�vel conjecturar que Mariana Enriquez tenha tomado por inspira��o o t�tulo de “Don't smoke in bed”, para batizar o seu livro “Os perigos de fumar na cama”, lan�ado originalmente em 2009. Mas s� agora publicado no Brasil, pela Editora Intr�nseca, com �tima tradu��o de Elisa Menezes. Assim como na can��o, em boa parte da obra de Enriquez, assombrar consiste em se fazer lembrar o tempo inteiro. Ou melhor: n�o deixar o outro esquecer, puxar a perna, estar em todos os lugares, invadir uma cidade, lotar os parques e abarrotar todas as esta��es de metr� se for preciso. A insist�ncia em se fazer lembrar � tamanha, que faz do fantasma um fato social. Quem tem medo nos contos de Enriquez n�o costuma ficar s� por muito tempo com seu pavor. O medo passa adiante, como num surto viral. Assombrar aqui � quase sin�nimo de protestar. 

� o caso do conto “Rambla triste”, que transcorre numa das atra��es mais visitadas de Barcelona, as Ramblas de Raval, que tanto atraem turistas desesperados por reter um pouco da Espanha, em forma de copos gigantes de mojito e no sabor de paellas fajutas. Mas a fedentina dos corpos das crian�as que ali foram abusadas reaparece, quando menos se espera, fazendo notar que todo cart�o postal tem seu avesso tr�gico. No conto “Garotos perdidos” (o mais longo do livro), adolescentes que foram sequestrados e assassinados por grupos de prostitui��o voltam a circular como se do nada. Primeiro um, depois dois, em seguida j� uma dezena… ao fim, est�o �s centenas pelas ruas. Eles n�o precisam dizer coisa alguma. Apenas suas presen�as silenciosas j� revolvem toda a mem�ria do crime.“Garotos perdidos”parece um primeiro est�gio do conto que d� nome ao livro “As coisas que perdemos no fogo”(2016), a estreia de Enriquez no Brasil, com a hist�ria da “epidemia”de mulheres, que foram queimadas por seus antigos companheiros e retornam para mostrar as marcas deixadas pelas chamas. 

Esse fator de cont�gio social da obra de Enriquez a aproxima um pouco de cl�ssicos como “Ensaio sobre a cegueira”, de Jos� Saramago, e de “A peste”, de Albert Camus, que tanto apontam o quanto o fascismo � algo como um zumbi, pronto para ser revivido a qualquer momento. No entanto, ela n�o usa o recurso de par�bola b�blica que encontramos em Saramago e em Camus. A argentina prefere que o medo d� as cartas, que n�o nos deixe esquecer. O pavor � a sua li��o. E, no seu caso, a hist�ria que n�o pode ser esquecida � a dos mortos e desaparecidos da �ltima ditadura argentina (1976-1983), que se desenrolou durante sua inf�ncia (a escritora nasceu em 1973) e deve ter sido central na forma��o do seu imagin�rio. 

No conto “Quando fal�vamos com os mortos”, um grupo de jovens evoca esp�ritos com aquela brincadeira cl�ssica do copo que se mexe. Mas alguns fantasmas voltam com um qu� de constrangidos. S�o os que n�o sabem onde foram enterrados (ou mesmo se chegaram a ser): “todos os mortos iam embora quando pergunt�vamos onde estavam seus corpos. Ele nos disse que alguns iam embora porque n�o sabiam onde estavam, ent�o ficavam nervosos, constrangidos”. Esse trecho nos lembra de uma declara��o de Enriquez sobre o seu fasc�nio por cemit�rios. Segundo ela, num pa�s com tantos desaparecidos como o seu, o cemit�rio � o lugar mais tranquilizador. L�, temos a certeza de onde est�o todos. 

Para quem j� conhece a escrita de Enriquez de “As coisas que perdemos no fogo”e do romance “Nossa parte de noite”(2019), em “Os perigos de fumar na cama”ir� encontrar uma autora de linguagem mais crua, ainda em processo de localizar seus alvos e nomear os tipos de mortos que evocar� em obras posteriores. E � exatamente por esse tom de forma��o, que essa cole��o de contos � t�o importante para entendermos sua centralidade na literatura hispanoamericana atual. Em “Os perigos de fumar na cama”, vemos os fantasmas imaginados por Enriquez com as luzes todas acesas, flagramos os remendos nos seus len��is brancos voando em nossa dire��o e temos a impress�o de acompanhar como uma assombra��o come�a o seu trabalho de cont�gio. 

O melhor de mariana enriquez no Brasil

“Nossa Parte de Noite” (intr�nseca, Tradu��o de Elisa Menezes)

Numa conversa com a tradutora Mariana Sanchez, em 2017, Mariana Enriquez revelou que estava em meio a um projeto que nem mesmo ela sabia como terminaria. Ou se terminaria. S� podia dizer que era algo “longo, estranho e sombrio”. Tr�s adjetivos que ficam perfeito nesse romance de mais de 500 p�ginas, que retrata uma dinastia vampiresca (apesar do termo “vampiro” n�o ser levantado em momento algum) e nos diz muito sobre as rela��es entre a aristocracia argentina e a �ltima ditadura vivida no pa�s. Uma obra fenomenal, que mistura as sagas de Anne Rice, com um qu� de aventura sess�o da tarde � Goonies e que soa como um refr�o do Suede (banda favorita da autora). Um dos grandes romances de l�ngua espanhola desse come�o de s�culo. 

“As Coisas Que Perdemos no Fogo” (intr�nseca, Tradu��o de Jos� Geraldo Couto) 

Estreia da autora no Brasil e tamb�m um livro de contos irremedi�vel para quem quer entender a literatura feita na Am�rica Latina contempor�nea. Estamos aqui numa Buenos Aires � meia-luz, nada tur�stica e sem sabor de alfajor. E mais: na capital portenha dos sub�rbios, dos trilhos enferrujados no meio do caminho e dos ecos de subdesenvolvimento da ditadura nos cercando por todos os becos. 

“As Coisas Que Perdemos no Fogo” � Como Um Tango de Gardel Pelo Avesso. “Este � o Mar” (intr�nseca, Tradu��o de Elisa Menezes)

O livro de Mariana Enriquez menos conhecido aqui no Brasil, talvez por sua embalagem voltada ao p�blico adolescente. O que � uma injusti�a. A autora, que � uma not�ria f� de m�sica pop, retrata aqui estranhos seres, metade fadas, metade vampiras, que perseguem os grandes astros do rock. Um livro sobre obsess�es emocionais com as cartas na mesa e o fasc�nio da juventude eterna, que assombram at� a mais inocente can��o de sucesso. 
 
Mariana Enriquez, Elisa Menezes
Os perigos de fumar na cama - Mariana Enriquez (Autor), Elisa Menezes (Tradutor) (foto: Reprodu��o)
 
 
 
“OS PERIGOS DE FUMAR NA CAMA”
Mariana Enriquez
Tradu��o de Elisa Menezes
Intr�nseca
144 p�ginas
R$ 49,90. E-book: R$ 39,90. 


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