
Ao subir a rampa do Pal�cio do Planalto em janeiro de 2023, o presidente eleito Luiz In�cio Lula da Silva (PT) encontrar�, diante da mesa, situa��es preocupantes no que diz respeito � sa�de — como uma queda dr�stica na vacina��o de crian�as, um or�amento para a �rea bem mais baixo que o recomendado e um minist�rio remexido por uma grande altern�ncia no comando da pasta nos �ltimos quatro anos.
Esses s�o alguns dos principais desafios a serem enfrentados pela pr�xima gest�o, segundo especialistas na �rea entrevistados pela BBC News Brasil.
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A reportagem buscou tamb�m dados para quantificar o tamanho desses desafios naquilo que � responsabilidade do governo federal, respons�vel por coordenar as a��es, com Estados e munic�pios, do Sistema �nico de Sa�de (SUS) — do qual a maioria da popula��o depende exclusivamente, uma vez que apenas 25,6% da popula��o tem planos de sa�de, segundo dados de julho da Ag�ncia Nacional de Sa�de Suplementar (ANS).
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Na campanha eleitoral, Lula apresentou como propostas para a sa�de o atendimento a demandas represadas na pandemia de COVID-19 e a pessoas com sequelas da covid; a retomada dos programas Mais M�dicos e Farm�cia Popular; o est�mulo � ind�stria nacional de sa�de; e o atendimento a mulheres considerando "as particularidades de cada fase de suas vidas".
Uma das propostas de Lula foi tamb�m "retomar o reconhecido programa nacional de vacina��o", algo apontado pelos entrevistados como uma das quest�es mais urgentes na sa�de brasileira atualmente. A queda brusca da cobertura vacinal contra v�rias doen�as j� foi alvo de alertas disparados por institui��es como a Funda��o Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Organiza��o Pan-Americana de Sa�de (Opas) e o Fundo das Na��es Unidas para a Inf�ncia (Unicef).
Por exemplo, a vacina BCG, que previne contra a tuberculose e tradicionalmente tem alta taxa de vacina��o por ser aplicada no primeiro m�s de vida do beb�, n�o tem 100% de cobertura desde 2015. Segundo n�meros do DataSUS, a partir de 2020, a cobertura ficou abaixo de 80%: foi de 75,6% em 2020 e 70,7% em 2021 (entretanto, dados mais recentes, de 2021 e 2022, est�o mais sujeitos a altera��es, por isso s�o considerados parciais).
A imuniza��o contra a poliomielite teve 100% de cobertura pela �ltima vez em 2013. Desde 2016, ficou abaixo dos 90%, chegando a 76,1% em 2020 e a 69,9% em 2021. Com essa queda, a Opas colocou o Brasil como um dos pa�ses sob alto risco de volta da poliomielite.
A tr�plice viral D1, que previne contra o sarampo, caxumba e rub�ola, tamb�m vem registrando constante diminui��o, saindo da total cobertura em 2014 para 79,7% em 2020.
"A gente n�o atingiu meta (de cobertura) em todas as vacinas. J� havia uma queda que se iniciou em 2015 e agora, durante a pandemia, se acentuou", aponta o infectologista Julio Croda, da Fiocruz Mato Grosso do Sul.
"A gente sempre teve um Programa Nacional de Imuniza��es (PNI) muito forte. O que est� acontecendo � grave, porque vacina � a principal interven��o custo-efetiva, � a que mais salva vidas do ponto de vista de interven��es na �rea de sa�de."
A diminui��o da vacina��o infantil � um fen�meno global recente, segundo a Unicef. Entretanto, para Croda, o governo federal falhou nos �ltimos anos em garantir sistemas de informatiza��o adequados e uma comunica��o que combatesse not�cias falsas contra vacinas.

Essas falhas fazem parte de um quadro mais geral de desorganiza��o do Minist�rio da Sa�de durante o mandato de Jair Bolsonaro (PL), segundo Croda. Ele diz isso n�o apenas como especialista, mas tamb�m testemunha, j� que foi, de 2019 a 2020, diretor do Departamento de Imuniza��es e Doen�as Transmiss�veis da Secretaria de Vigil�ncia em Sa�de (SVS) da pasta.
Bolsonaro teve em seu mandato quatro ministros da Sa�de: Luiz Henrique Mandetta (Uni�o-MS), Nelson Teich, Eduardo Pazuello (PL-RJ) e Marcelo Queiroga, o atual titular. Comparando com outros presidentes desde a redemocratiza��o, essa rotatividade de ministros � menor apenas do que na gest�o do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que teve cinco ministros, mas em dois mandatos.
O n�mero de ministros de Bolsonaro � igual ao que teve em dois mandatos Luiz In�cio Lula da Silva (PT), que venceu a elei��o e ter� seu terceiro mandato, e Fernando Collor (PTB), em seu curto per�odo na Presid�ncia antes de renunciar.
"� muito preocupante, porque, quando voc� tem uma troca muito constante, voc� n�o consegue implementar nenhum programa. Cada ministro que entra tem uma ideia diferente sobre o SUS, tem propostas diferentes, e essas propostas nunca s�o conclu�das. A gest�o fica uma colcha de retalhos, n�o tem come�o, meio e fim", diz Croda, que � presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.
O infectologista critica ainda a falta de compromisso da gest�o Bolsonaro com o conhecimento t�cnico em Sa�de — apontando-a como o motivo para sua decis�o de sair do minist�rio em 2020, primeiro ano da pandemia de coronav�rus. A covid-19 matou mais de 688 mil brasileiros, oficialmente o segundo maior n�mero absoluto no mundo, atr�s dos Estados Unidos.
"Quando veio a pandemia, Bolsonaro n�o apoiou as medidas n�o farmacol�gicas de distanciamento, ent�o, antes do Mandetta sair, eu sa�. Entendi que n�o ia ter uma participa��o t�cnica, que o governo n�o ia seguir as recomenda��es da OMS (Organiza��o Mundial da Sa�de)", lembra Croda, acrescentando que a chegada da covid-19 e da var�ola dos macacos mostraram que o Brasil est� pouco preparado para poss�veis pandemias e epidemias no futuro, o que exige, entre outras medidas, que o pa�s aumente sua pr�pria produ��o de itens de sa�de.
"A gente n�o teve testes, depois as vacinas e, agora, medicamentos. A gente n�o tem o paxlovid, que � um rem�dio que j� est� sendo utilizado no mundo todo. N�s s� temos uma vacina brasileira, que � a da Fiocruz, mas n�o tem nenhuma vacina de RNA. Agora, com a monkeypox (var�ola dos macacos), a gente n�o tinha estoque estrat�gico de vacina de var�ola. At� hoje, n�o temos dispon�vel a vacina para ofertar � popula��o."
Em nota, o Minist�rio da Sa�de afirmou que "o enfrentamento � covid-19 no Brasil garantiu um dos resultados mais exitosos do mundo" e que o governo atual dedicou "R$ 106 bilh�es em cr�ditos extraordin�rios" exclusivamente para o combate � pandemia: "O governo federal garantiu a distribui��o de mais de 518,8 milh�es de doses de vacinas em uma das maiores campanhas de vacina��o da hist�ria do pa�s. O resultado da ampla campanha de imuniza��o resulta hoje na cobertura vacinal de mais de 84,2% da popula��o com ao menos a primeira dose da vacina. E 78% com duas doses".
Quanto �s outras vacinas destinadas �s crian�as e que est�o com a cobertura reduzida, a pasta destacou ter o objetivo "de alcan�ar cobertura vacinal maior de 95%, al�m de reduzir o n�mero de n�o vacinados" — afirmando que, para isso, tem divulgado sua campanha nacional de vacina��o "nos principais meios de comunica��o e em locais de grande circula��o de pessoas" e refor�ado a articula��o com munic�pios e Estados.
Problemas b�sicos
A m�dica psicanalista Rosana Onocko Campos, presidente da Associa��o Brasileira de Sa�de Coletiva (Abrasco), tamb�m critica fortemente a desorganiza��o do Minist�rio da Sa�de no mandato de Bolsonaro e d� exemplos da pandemia.
"Tenho insistido que o pr�ximo governo vai ter que tomar medidas extraordin�rias, porque n�o estamos vivendo uma situa��o ordin�ria. Por conta da pandemia, sim, mas tamb�m por esse descontrole do governo. Qualquer indicador que voc� pega, cobertura de vacinas, interna��es evit�veis pela aten��o prim�ria, filas de cirurgias... H� in�meros trabalhos mostrando piora. Precisamente pela falta de compet�ncia t�cnica e pelo descaso com a coordena��o do sistema de sa�de. Tem algumas partes do Minist�rio da Sa�de que ningu�m coordena mais", diz Onocko Campos, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Enquanto isso, diz Onocko Campos, faltam dados unificados e atualizados para saber qual � o tamanho das filas para exames, consultas e cirurgias no pa�s. "� como dirigir o carro com os olhos vendados. � preciso restabelecer e melhorar os sistemas de informa��o, que nunca foram muito amig�veis, mas j� foram melhores."

Na outra ponta de atendimentos complexos como uma cirurgia ou a interna��o em unidade de tratamento intensivo (UTI), est� outra parte fundamental do SUS, lembrada por todos os entrevistados: a chamada aten��o prim�ria, considerada a porta de entrada do atendimento em sa�de e que tem como representantes essenciais as equipes de sa�de da fam�lia.
Essa �rea � movida pelos ideais de preven��o, vida comunit�ria e multidisciplinaridade — um retrato disso � o dos agentes comunit�rios de sa�de circulando na vizinhan�a, conversando com moradores para averiguar se a vacina��o est� em dia ou se rem�dios de rotina est�o sendo tomados corretamente, e talvez indicar atendimento com algum psic�logo em um Centro de Aten��o Psicossocial (Caps) ou com um m�dico em uma Unidade B�sica de Sa�de (UBS).
O economista Arthur Aguillar, do Instituto de Estudos para Pol�ticas de Sa�de (Ieps), diz que o programa Estrat�gia Sa�de da Fam�lia (ESF) � a "espinha dorsal" da aten��o prim�ria e do pr�prio SUS. Para ele, a expans�o desse programa de 1990 at� 2017 foi "uma das hist�rias mais bem-sucedidas de pol�tica p�blicas" no Brasil, mas lamenta a desacelera��o nos anos recentes.
Embora a aten��o prim�ria seja em boa parte responsabilidade dos munic�pios e Estados, o governo federal tem um papel importante no seu financiamento e no direcionamento de normas e metas.
"Desde 2017, o ESF parou de se expandir. Um pouco por raz�es or�ament�rias, mas um pouco por quest�es de prioridade tamb�m", explica Aguillar, que defende a retomada da expans�o nos pr�ximos anos.
Segundo um relat�rio do Ieps, em 1998, havia no Brasil 2.646 equipes de sa�de da fam�lia cobrindo 5,6% da popula��o; em 2008, 28.884 equipes e 48,7% da popula��o; e em 2019, 42.307 equipes e 62,7%.
"Todo brasileiro deveria ter acesso a uma equipe de sa�de da fam�lia, mas um ter�o da popula��o n�o tem. Parte importante desse um ter�o tem acesso a plano de sa�de, mas, mesmo para essas pessoas, o ESF � fundamental. � ele que vai olhar para quest�es como dengue, zika e doen�as infecciosas", exemplifica o economista.
Uma das atividades desempenhadas na aten��o prim�ria � o pr�-natal, e, ao que tudo indica, este e outros cuidados relativos �s gestantes precisar�o de maior aten��o, porque a mortalidade materna cresceu nacionalmente e em todas as regi�es do pa�s de 2019 para 2020, segundo documento do pr�prio Minist�rio da Sa�de.
O Brasil registrou 57,9 �bitos para cada 100 mil nascimentos em 2019 e 74,7 em 2020. Segundo dados preliminares levantados pela Federa��o Brasileira das Associa��es de Ginecologia e Obstetr�cia (Febrasgo), em 2021, o n�mero chegou a 107 a cada 100 mil nascimentos. Um estudo recente do Ieps mostrou que as mulheres pretas est�o ainda mais vulner�veis � mortalidade materna do que as brancas.
Tamb�m economista no Ieps, Rony Coelho explica que as causas do aumento ainda est�o em estudo. "Temos um trabalho preliminar em curso, e � poss�vel indicar que houve um aumento muito grande da mortalidade por doen�as virais em 2020 e 2021, o que � um indicativo que est�o associadas mais diretamente � covid. Mas, provavelmente, o excesso de morte se deu tamb�m pelo colapso do sistema de sa�de (na pandemia)", diz Coelho.
"� sempre bom lembrar, mais de 90% das mortes maternas s�o por causas evit�veis, como apontam diversos estudos e especialistas, e boa parte dessas causas podem ser previamente diagnosticadas justamente na aten��o prim�ria, que estava com sobrecarga (nos primeiros anos da pandemia)."
O Minist�rio da Sa�de atual defendeu, em nota, a cria��o da Rede de Aten��o Materna e Infantil "para ampliar o cuidado da sa�de de m�es e beb�s no SUS".
As disputas entre os projetos do PT e de Jair Bolsonaro se mostraram tamb�m em um programa importante da aten��o prim�ria: o M�dicos pelo Brasil, que substituiu o Mais M�dicos, este lan�ado em 2013 pelo governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). A contrariedade ao modelo dos Mais M�dicos, principalmente pela participa��o de profissionais cubanos como bolsistas, foi uma das principais bandeiras da candidatura de Bolsonaro em 2018. O governo dele lan�ou o M�dicos pelo Brasil em 2019, mas o primeiro edital s� foi publicado em dezembro de 2021.
De acordo com as propostas de Lula, por�m, ser� a vez do M�dicos pelo Brasil ser substitu�do pelo Mais M�dicos — programa previsto para ser "retomado", segundo a campanha petista.
Muitas demandas, verbas insuficientes
Em abril, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica (IBGE) publicou um dado que, � primeira vista, poderia ser um bom sinal: em 2019, as despesas com sa�de no Brasil corresponderam a 9,6% do Produto Interno Bruto (PIB), um percentual maior que a m�dia (8,8%) de pa�ses selecionados da Organiza��o para a Coopera��o e Desenvolvimento Econ�mico (OCDE). Tamb�m foi o maior percentual para o Brasil desde 2010.
Entretanto, a maior parte dos gastos (5,8%) saiu dos bolsos das fam�lias, com uma parcela menor (3,8%) de despesas do governo. Esse gasto p�blico fica abaixo da m�dia da OCDE (6,5%).
"Se voc� olhar s� para o financiamento p�blico, que � uma prerrogativa de um sistema universal como � o SUS e o NHS, que � o sistema ingl�s, voc� vai ver que o Brasil tem uma propor��o de gastos p�blicos muito menor do que os pa�ses da OCDE e at� mesmo do que dos Estados Unidos, que um sistema arquet�pico privado", aponta Arthur Aguillar, do Ieps.
"A primeira coisa que a gente tem que resolver � como aumentar o or�amento do SUS. O Brasil est� envelhecendo, e o tipo de doen�a que as pessoas mais velhas t�m, em geral, custam mais caro para o sistema, que s�o as doen�as cr�nicas n�o transmiss�veis, como c�ncer, diabetes, doen�as cardiovasculares... Essas coisas fazem com que voc� precise de mais recursos."
Com base no projeto enviado pelo governo ao Congresso, uma nota t�cnica do Congresso calculou que a proposta or�ament�ria para o Minist�rio da Sa�de em 2023 ter� a menor verba desde 2014 em valores reais — ou seja, j� consideradas as varia��es da infla��o. Em compara��o com or�amento autorizado para 2022, a proposta or�ament�ria para o minist�rio tem queda real de cerca de R$ 16,6 bilh�es.
Para cumprir o gasto m�nimo em sa�de determinado pela Constitui��o, o governo conta com R$ 9,9 bilh�es de emendas do relator, que s�o criticadas pela falta de transpar�ncia e sustentam a��es n�o planejadas diretamente pelo minist�rio. Segundo a nota t�cnica do Congresso, a destina��o desse tipo de emenda para cumprir o piso da sa�de "n�o encontra previs�o legal" e dever� ser alterada pelos parlamentares.
*Colaboraram Andr� Biernath e Giulia Granchi, da BBC News Brasil em S�o Paulo
Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63069465