Por Rubens Valente, Caio de Freitas Paes, Alice Maciel, Bruno Fonseca, Laura Scofield, Thiago Domenici, da Ag�ncia P�blica
Na manh� de 7 de julho de 2021, o ent�o diretor-geral da Ag�ncia Brasileira de Intelig�ncia (Abin), Alexandre Ramagem, participou de uma audi�ncia p�blica na Comiss�o de Rela��es Exteriores e Defesa Nacional (CREDN) da C�mara dos Deputados.
Na �poca havia den�ncias de supostas atividades ilegais do governo de Jair Bolsonaro, como um alegado uso pol�tico da ag�ncia em favor do senador Fl�vio Bolsonaro (PL-RJ) e a confec��o de "dossi�s" sobre professores e policiais do movimento antifascista realizado por outra �rea do governo, o Minist�rio da Justi�a, suspensa pelo STF em 2020 e declarada ilegal em 2022.
"N�s n�o fazemos monitoramento de pessoas", disse o ent�o respons�vel pela Abin, atual deputado federal pelo PL do Rio de Janeiro. Em resposta a uma pergunta da ent�o integrante da CREDN, hoje ex-deputada, Perp�tua Almeida, ele reiterou: "N�o fazemos an�lises de indiv�duos".
Mas um documento agora obtido com exclusividade pela Ag�ncia P�blica por meio da Lei de Acesso � Informa��o - ap�s dois anos e meio de negativas do governo de Jair Bolsonaro (PL) - contradiz as afirma��es do ex-diretor da Abin ao Congresso Nacional.
O relat�rio obtido pela reportagem foi enviado em 2020 � Casa Civil, pasta ent�o comandada pelo general do Ex�rcito Walter Braga Netto, ex-candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro em 2022, na qual funcionava um grupo interministerial criado para coordenar o combate � pandemia da Covid-19. O documento integra um conjunto de 170 arquivos produzidos pela Abin, de mar�o a junho de 2020, ao qual a P�blica teve acesso.
Sob a dire��o de Ramagem, em 16 de abril de 2020 a Abin produziu um documento de tr�s p�ginas intitulado "Painel de Monitoramento dos Transportadores Aut�nomos de Cargas". O relat�rio � um fichamento de oito lideran�as caminhoneiras no pa�s, com fotos, nomes e apelidos, al�m dos seus estados de atua��o e os n�veis de "amea�a" que cada um deles representaria ao governo.
Ao lado das fotos dos caminhoneiros h� qualifica��es separadas entre "alta", "m�dia" e "baixa" sobre atividades das lideran�as. A avalia��o inclui supostos n�veis de "amea�a" que elas representariam, comparando-os a um sem�foro de tr�nsito - sendo verde, o n�vel m�nimo, amarelo, o intermedi�rio, e vermelho o grau m�ximo de alerta.
"O n�vel de amea�a � obtido automaticamente por meio de ferramenta anal�tica espec�fica alimentada com as avalia��es dos aspectos mencionados, segundo f�rmulas de c�lculo pr�-estabelecidas", diz uma nota explicativa no material obtido pela reportagem.
N�o h� informa��o, por�m, sobre qual "ferramenta anal�tica" teria sido usada pela Abin para avaliar os n�veis de "amea�a" dos caminhoneiros, nem detalhes sobre as "f�rmulas de c�lculos" para chegar a estes n�veis. Conforme revelado pela P�blica, a gest�o de Ramagem ficou marcada pelo aumento de compras de ferramentas 'espi�s' sem licita��o, transpar�ncia ou qualquer tipo de controle cidad�o.
Para determinar o grau de "amea�a" dos caminhoneiros, a Abin levou em conta "acesso a canais formais de comunica��o, prolifera��o de mensagens do ator [caminhoneiro] em redes sociais; presen�a em pontos de bloqueio anteriores; agressividade do discurso; vincula��o a grupos pol�ticos de oposi��o, capacidade e inten��o de mobiliza��o".
O documento apresenta as "reivindica��es" de cada l�der fichado, como "libera��o dos ped�gios", "aumento do aux�lio [emergencial] de 600 reais", "piso m�nimo de frete" e concord�ncia - ou discord�ncia - "com o pacote de medidas econ�micas e preventivas para a Covid-19" implementadas pelo governo de Bolsonaro.
Abin admite que pode incluir pessoas em an�lise de "amea�as"
Procurada pela P�blica para que comentasse o documento, a Abin informou nesta quinta-feira (25), por e-mail, que "n�o monitora indiv�duos indiscriminadamente, mas cen�rios nacionais ou internacionais. Ao acompanhar uma amea�a, h� a possibilidade de pessoas eventualmente ligadas aos eventos passarem a compor o cen�rio analisado". Leia, ao final do texto, a �ntegra da manifesta��o.
A fala da Abin se choca com a negativa feita taxativamente por Ramagem ao Congresso Nacional em 2021, quando afirmou que a ag�ncia n�o monitorava pessoas nem analisava indiv�duos.
As v�timas do 'fichamento'
A lista dos caminhoneiros fichados pela Abin inclui dirigentes de entidades representativas em �mbito nacional, como a Confedera��o Nacional dos Trabalhadores em Transportes e Log�stica (CNTTL) e a Confedera��o Nacional dos Transportadores Aut�nomos (CNTA), e tamb�m lideran�as aut�nomas, desvinculadas de associa��es do setor. Tr�s dos caminhoneiros localizados pela P�blica nesta quarta-feira (24) manifestaram indigna��o ao saber do documento (leia aqui).
O nome mais conhecido na lista � o do atual presidente da Associa��o Brasileira de Condutores de Ve�culos Automotores (Abrava), Wallace Landim, o Chor�o, que ganhou notoriedade com a greve geral dos caminhoneiros em 2018 durante o governo de Michel Temer.
Outro nome de destaque � o do l�der aut�nomo Ubirajara Nobre Carlos, o Bira Nobre. Ele disputou as elei��es de 2022 pelo PL do ex-presidente Bolsonaro, concorrendo, sem sucesso, a uma vaga para deputado estadual pelo Esp�rito Santo.
Ap�s o pleito, a Delegacia de Repress�o �s A��es Criminosas Organizadas (Draco) e o Minist�rio P�blico Estadual do Esp�rito Santo suspeitaram que Bira Nobre fosse um dos l�deres de protestos golpistas no estado - conforme noticiado pela emissora SBT e pelo jornal A Gazeta.
Os outros caminhoneiros fichados pela Abin s�o: Ariovaldo de Almeida J�nior, o Calopsita ou J�nior, de S�o Paulo, presidente do Sindicato dos Caminhoneiros de Ourinhos (SP); Carlos Alberto Dahmer, o Litti, do Rio Grande do Sul, atual diretor da CNTTL e ligado ao Sindicato dos Transportadores Aut�nomos de Carga de Iju� (RS); Diumar Deleo de Cunha Bueno, do Paran�, ent�o presidente da CNTA; Marconi Fran�a, o Cowboy, de Pernambuco, l�der aut�nomo da categoria no estado; Salvador Edmilson Carneiro, o Dod�, da Bahia, lideran�a aut�noma dos caminhoneiros no estado; e Fabiano M�rcio da Silva, o Careca, de Minas Gerais, tamb�m l�der aut�nomo do setor no estado.
No fichamento da Abin, Bueno, Landim e Nobre foram tratados como uma amea�a de n�vel "verde", ou seja, baixa. Os outros tiveram uma amea�a considerada "amarela", isto �, m�dia.
"Desvio de finalidade e afronta aos direitos fundamentais"
No mesmo ano da confec��o do fichamento dos caminhoneiros, em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu em plen�rio que o governo Bolsonaro n�o deveria usar �rg�os de intelig�ncia para monitorar ou produzir "dossi�s" sobre pessoas.
A decis�o ocorreu no caso do dossi� contra professores e policiais antifascistas feito pela Secretaria de Opera��es Integradas (Seopi), do Minist�rio da Justi�a e Seguran�a P�blica (MJSP), no come�o da gest�o de Andr� Mendon�a - que, depois disso, tornou-se um dos onze ministros do STF. Na gest�o anterior, do atual senador S�rgio Moro (Podemos-PR), a Seopi foi turbinada e ganhou status de secretaria.
Em setembro de 2020, por nove votos a um, os ministros do STF proibiram a confec��o de tais dossi�s sobre pessoas e, em maio de 2022, declararam a pr�tica do governo Bolsonaro como "ilegal".
A relatora do caso, ministra Carmen L�cia, disse em seu voto que "o uso da m�quina estatal" para coleta de informa��es sobre pessoas - no caso em julgamento, servidores p�blicos contr�rios ao governo Bolsonaro - "caracteriza desvio de finalidade e afronta aos direitos fundamentais de livre manifesta��o do pensamento, de privacidade, reuni�o e associa��o".
As cr�ticas foram repetidas por outros ministros da Corte. O ministro Luiz Edson Fachin disse que a atividade de intelig�ncia n�o deve investir contra as liberdades individuais e lembrou do per�odo da ditadura militar (1964-1985). "O direito � livre manifesta��o e o direito ao protesto", afirma o ministro, "n�o � - diremos � exaust�o - infra��o penal e n�o est�, portanto, sujeito, seja � investiga��o penal, seja � atividade de intelig�ncia".
"Como bem mostrou o Relat�rio Final da Comiss�o Nacional da Verdade, o modelo adotado, ao longo do Regime Militar pelo Servi�o Nacional de Informa��es (SNI)", diz ainda Fachin, "n�o pode, sob nenhuma hip�tese, ser o mesmo do atual sistema de intelig�ncia".
Em seu voto, contr�rio � fabrica��o dos dossi�s, o ministro Alexandre de Moraes estendeu sua an�lise para al�m do setor de intelig�ncia do MJSP, a Seopi. "Qualquer sistema de intelig�ncia, n�o � poss�vel que qualquer �rg�o p�blico possa atuar fora dos limites da legalidade e possa, fora desses limites, come�ar a produzir e compartilhar informa��es de vida pessoal, escolhas pessoais, pol�ticas, sai da an�lise dos fatos - obviamente a legisla��o autoriza dentro dos fatos - [...] mas n�o bisbilhotar e supor que essas pessoas, principalmente servidores p�blicos da �rea de seguran�a, s�o a favor ou contra o governo, s�o a favor ou contra essa ideologia. Isso � grave, certo?"
J� para o ministro Gilmar Mendes, atual decano da Corte, os dossi�s "teriam sido produzidos n�o em virtude do risco" ou para "evitar a ocorr�ncia de eventuais atos criminosos ou terroristas, mas sim em virtude do exerc�cio da liberdade de express�o e de cr�tica das pessoas monitoradas, o que � incompat�vel com o regime de prote��o �s liberdades constitucionalmente estabelecido".
O papel da Abin no combate � Covid-19 do governo Bolsonaro
O fichamento dos caminhoneiros integra um conjunto de documentos produzidos pela Abin na �poca do combate � Covid-19, que na Presid�ncia da Rep�blica de Jair Bolsonaro ficou sob a coordena��o do Centro de Coordena��o das Opera��es do Comit� de Crise da Covid-19 (CCOP) da Casa Civil. A mem�ria das reuni�es da CCOP foi revelada com exclusividade pela P�blica na s�rie de reportagens As Atas Secretas da Covid-19.
Tanto as atas secretas da CCOP quanto os documentos agora revelados n�o foram acessados nem analisados pela CPI da Pandemia, que funcionou no Senado Federal em 2021. Ap�s a publica��o da s�rie de reportagens, a c�pula da comiss�o aventou a possibilidade de pedir a reabertura de inqu�ritos arquivados pela Procuradoria-Geral da Rep�blica (PGR) com base na revela��o das atas secretas.
Na maior parte do tempo, os trabalhos do CCOP foram coordenados pelo tenente-coronel reformado do Ex�rcito Heitor Freire de Abreu, ent�o subchefe de Articula��o e Monitoramento da Casa Civil - um subordinado direto do general Braga Netto.
Conforme apurado pela P�blica, parte dos materiais produzidos pela Abin era entregue pessoalmente � assessoria do ent�o ministro da Casa Civil, em papel e com a informa��o sobre qual setor da ag�ncia era respons�vel pela confec��o dos documentos. Os materiais da Abin n�o eram levados para as reuni�es do comit�.
A reportagem teve acesso a outros relat�rios da Abin sobre a atua��o dos caminhoneiros. Um deles, datado de 13 de abril de 2020 - ou seja, tr�s dias antes do fichamento das lideran�as do setor - � denominado "Briefing Covid-19 - Transportadores de Carga".
Com doze p�ginas, o relat�rio enumera as "principais reivindica��es" da categoria � �poca, detalha o "medo do cont�gio" pelos transportadores e os impactos do "fechamento dos pontos locais de apoio", al�m dos "impactos econ�micos na demanda do frete" - que na �poca estava em decl�nio conforme aumentava o n�mero de casos de caminhoneiros contaminados pela Covid-19.
No mesmo documento, a Abin faz uma avalia��o detalhada sobre as "medidas governamentais" para o setor de transporte, tendo em vista riscos de desabastecimento e tamb�m eventuais manifesta��es contr�rias ao governo Bolsonaro.
O material apresenta avalia��es das medidas tomadas pela Ag�ncia Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), pelo Minist�rio da Infraestrutura e pela Pol�cia Rodovi�ria Federal (PRF) - esta �ltima estaria contribuindo, segundo a Abin no documento, para o "arrefecimento do �mpeto de paralisa��o dos transportadores".
Quanto � pasta de Infraestrutura, ent�o comandada pelo militar da reserva Tarc�sio de Freitas (Republicanos-SP), a Abin avaliou que a plataforma Fala, Caminhoneiro!, que permitia ao governo "conhecer as reivindica��es dos motoristas sem intermedi�rios", tinha "potencial para mitigar a atomiza��o de lideran�as dos transportadores aut�nomos no futuro". Isto �, para a Abin, a ferramenta poderia evitar o surgimento de novos l�deres caminhoneiros no transcorrer da pandemia.
Com base "na avalia��o dos caminhoneiros", a Abin relatava que a ANTT "n�o tomou novas iniciativas concretas para aliviar os efeitos econ�micos imediatos da pandemia, principalmente sobre os transportadores aut�nomos". "Novos dados obtidos revelam que as medidas j� adotadas parecem n�o arrefecer o �mpeto mobilizat�rio dos aut�nomos pela retomada plena das atividades econ�micas", segundo o relat�rio obtido pela P�blica.
Medidas do governo n�o eram suficientes para caminhoneiros, diz outro relat�rio
Em um terceiro documento que cita caminhoneiros, de cinco p�ginas, a Abin analisou as "condi��es de abastecimento nos Estados brasileiros". Datado de 8 de abril, ou seja, oito dias antes do fichamento dos l�deres caminhoneiros, a ag�ncia faz uma cr�tica velada sobre o comportamento do governo federal no atendimento � categoria.
"Foi notado tamb�m que faltam orienta��es consistentes sobre a preven��o do Covid-19 voltadas aos transportadores de carga. Algumas iniciativas de distribui��o de itens de prote��o b�sica contra o v�rus foram feitas pelo Servi�o Social do Transporte e pelo Servi�o Nacional de Aprendizagem do Transporte, pelo Minist�rio de Infraestrutura, pela PRF e por entidades representativas, mas elas n�o s�o suficientes para atender toda a categoria", diz o material obtido pela P�blica.
No mesmo documento a ag�ncia tamb�m alerta sobre a situa��o de vulnerabilidade dos caminhoneiros e lembra que n�o havia cura para a doen�a at� aquela data. � �poca de produ��o do material tamb�m n�o havia prazo para a fabrica��o de uma vacina contra o v�rus da Covid-19.
"A epidemia de Covid-19 tem alta capacidade de cont�gio e propaga��o, n�o havendo at� o momento vacina ou tratamento dispon�vel capaz de combater o v�rus. Por isso, o Minist�rio da Sa�de preconiza a ado��o de medidas que visam evitar o contato social. Entre elas destacam-se: fechamento de com�rcio de bens n�o essenciais, proibi��o de eventos, suspens�o de aulas e, em casos extremos, proibi��o da circula��o de pessoas."
Dias depois, em 12 de abril de 2020, o ent�o presidente Jair Bolsonaro declarou: "Parece que est� come�ando a ir embora a quest�o do v�rus". A advert�ncia sobre os riscos da doen�a, que consta no documento da Abin, contradiz Bolsonaro. Criada em 1999, a Abin tem como uma de suas atribui��es, previstas na lei 9.883/99, obter e analisar dados "para a produ��o de conhecimentos destinados a assessorar o Presidente da Rep�blica".
Atual deputado federal, o diretor da Abin na �poca da produ��o do fichamento dos caminhoneiros, Alexandre Ramagem (PL-RJ), foi procurado pela P�blica em seu gabinete na tarde desta quarta-feira (24) em Bras�lia, mas n�o foi localizado. O gabinete disse que Ramagem estava no Congresso e que iria a comiss�es da C�mara e a uma entrevista coletiva no Sal�o Verde. A reportagem esteve nestes lugares, mas n�o localizou o parlamentar. Foi deixado recado no gabinete sobre a necessidade de ouvi-lo, mas n�o houve retorno at� o fechamento deste texto.
A seguir, a �ntegra da nota enviada pela Abin � P�blica:
"A Ag�ncia Brasileira de Intelig�ncia (ABIN) acompanha eventos com foco na seguran�a do Estado. O objetivo � identificar cen�rios de risco e gerar alertas oportunos acerca de amea�as contra a sociedade relacionadas a, por exemplo, terrorismo, crime organizado e preven��o de crises em setores estrat�gicos.
A Pol�tica Nacional de Intelig�ncia (PNI), publicada pelo Decreto nº 8.793, de 2016, define os par�metros e limites de atua��o da atividade de Intelig�ncia e lista as principais amea�as a respeito das quais a ABIN e o Sistema Brasileiro de Intelig�ncia devem produzir Intelig�ncia.