
Trinta e cinco minutos. A julgar pela rapidez com que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, reconheceu a vit�ria de Luiz In�cio Lula da Silva (PT) nas elei��es de 2022, a rela��o entre os dois pa�ses prometia entusiasmo e entrosamento.
A mensagem p�blica da Casa Branca ainda na noite do domingo do pleito era tamb�m o desfecho da estrat�gia que os americanos adotaram ao longo dos meses que antecederam a elei��o brasileira.
Seja por meio de diplomatas, de autoridades militares, de enviados da Casa Branca ou at� mesmo do chefe da CIA (Central Intelligence Agency), eles expressaram apoio �s institui��es democr�ticas do Brasil e sinalizaram a militares e civis brasileiros que nenhuma ruptura institucional contaria com o apoio dos EUA. E esperavam que o comportamento geraria conex�o, e at� mesmo gratid�o, do novo governo brasileiro.
At� por isso, os americanos demonstraram confus�o e frustra��o quando, em diferentes ocasi�es nos �ltimos seis meses, foram tamb�m confrontados com declara��es duras de Lula (veja exemplos abaixo). Onde alguns analistas e diplomatas em Washington ouviram ecos de antiamericanismo, a diplomacia brasileira e outros especialistas argumentam haver independ�ncia, busca por multipolaridade e at� mesmo resqu�cios de uma desconfian�a hist�rica.
"� claro que existem ressentimentos hist�ricos e quest�es ideol�gicas, mas o que alguns chamariam hoje de 'antiamericanismo' parece mais uma quest�o de senso de oportunidade no contexto de um mundo com novos l�deres (leia-se, China), do que qualquer outra coisa", diz Fernanda Magnotta, professora de Rela��es Internacionais na FAAP. "Eu resumiria o nosso antiamericanismo como um mix de agir com o c�rebro e agir com o f�gado. Bastante c�rebro e pitadas de f�gado", afirma.J� Ryan Berg, diretor do programa Am�ricas do Center for Strategic & International Studies, v� o governo Biden numa armadilha. “Eles (governo Biden) pintaram Lula como um democrata salvador e agora est�o presos a isso. Lula est� obviamente contrariando interesses americanos, mas n�o podemos critic�-lo como normalmente far�amos, por todo o endosso que foi dado", disse Berg � BBC News Brasil.
"E era bastante �bvio de sa�da que Celso Amorim n�o era o maior f� dos EUA”, segue ele, citando o ex-chanceler e assessor especial de Lula.
Seis intensos meses
- Leia: 'Mundo � melhor com Brasil nele', diz secret�rio adjunto de Estado dos EUA sobre governo Lula
Ao receber o l�der venezuelano Nicol�s Maduro em Bras�lia, o brasileiro argumentou que havia “uma narrativa” sobre as condi��es n�o democr�ticas da Venezuela, declara��o recebida pelos americanos como cr�tica � atua��o deles na regi�o.
E ao expressar a inten��o de desalojar o d�lar da posi��o de moeda de transa��es internacionais ("Quem � que decidiu que era o d�lar a moeda?"), Lula foi visto como entusiasta da redu��o do protagonismo global americano.
Embora tenha se alinhado repetidas vezes aos EUA em condenar a invas�o russa no �mbito da Organiza��o das Na��es Unidas (ONU), o Brasil contrariou os americanos e seus aliados da Organiza��o do Tratado do Atl�ntico Norte (Otan) ao se recusar a transferir armamentos � Ucr�nia, um pedido primeiro feito a Lula pelo chanceler alem�o Olaf Scholz em janeiro.
O governo brasileiro tamb�m permitiu, no come�o do ano, a atracagem de navios militares iranianos sob san��o americana em um porto do Rio de Janeiro, o que levou congressistas mais exaltados a sugerir que a gest�o Biden deveria estender ao Brasil as san��es (o que n�o aconteceu).
A gest�o Lula tamb�m n�o endossou o texto final da C�pula da Democracia de Biden, em mar�o, que trazia uma condena��o � invas�o da R�ssia pela Ucr�nia. E aos olhos dos americanos, Lula precisou ser cobrado a enviar um emiss�rio brasileiro � Kiev, ap�s remeter Celso Amorim para um encontro com Vladimir Putin em Moscou — o pr�prio Amorim acabou indo � Ucr�nia depois.

Em abril, o jornal americano Washington Post listou as rusgas em um texto intitulado: “O Ocidente acreditou que Lula seria um parceiro. Mas ele tinha seus pr�prios planos”.
"A pol�tica externa brasileira n�o � anti-ningu�m, � pr� Brasil", responde a nova embaixadora brasileira em Washington, Maria Luiza Viotti, ao ser questionada pela BBC News Brasil sobre os que apontam poss�vel antiamericanismo na pol�tica externa brasileira. “E o Brasil valoriza as rela��es com os EUA (...). O presidente Lula deu demonstra��o clara nesse sentido ao visitar os EUA apenas quarenta dias ap�s ter tomado posse”, completa.
Viotti relembra que, na tradi��o diplom�tica brasileira, a regra foi uma postura independente em rela��o a superpot�ncias. Get�lio Vargas, por exemplo, mantinha rela��es aquecidas com a Alemanha, de Adolf Hitler, e a It�lia, de Benito Mussolini, logo antes de aderir � Segunda Guerra ao lado dos aliados. J�nio Quadros e Jo�o Goulart fizeram fortes aproxima��es com a China, mesmo contra os interesses americanos.
Nem mesmo o regime militar brasileiro se alinhou por completo aos EUA, salvo no in�cio, sob a batuta de Castelo Branco: manteve rela��es diplom�ticas com a Uni�o Sovi�tica — apesar de o golpe de 1964 ter sido patrocinado pelos americanos.
Exce��es � trajet�ria foram o governo Dutra (1946-1951), no p�s-guerra imediato, e, mais recentemente, o per�odo Jair Bolsonaro - Donald Trump, em que o Brasil experimentou um alinhamento autom�tico em rela��o aos americanos. Em 2019, pela primeira vez na hist�ria, o Brasil votou contra a condena��o ao embargo americano em Cuba, ao lado apenas de EUA e Israel (em um total de 193 pa�ses).
"Hoje Brasil e EUA se reconhecem como duas grandes democracias, que compartilham valores e um consider�vel patrim�nio de interesses comuns, de presen�a rec�proca e de coopera��o", diz Viotti.

O que querem e o que oferecem os americanos?
Publicamente, a diplomacia americana nega ver sinais de antiamericanismo em Lula e calibra suas declara��es entre cr�ticas duras e palavras de apre�o ao aliado.Questionado diretamente sobre o assunto pela BBC News Brasil, o secret�rio adjunto para o Hemisf�rio Ocidental, Brian Nichols, afirmou que “Lula � um grande aliado em tantas �reas”.
“Nem sempre vamos concordar em tudo, mas o mundo � melhor com o Brasil nele”, disse Nichols � BBC News Brasil em junho.
Posicionamento que alguns analistas, especialmente os americanos, veem com ceticismo.
"Acho que o governo Biden lida bem com a situa��o, mas h� pessoas no governo americano muito desapontadas, sugerindo que Lula seja um falso amigo. N�o concordo completamente com isso, mas h� elementos de verdade", afirma Brian Winter, editor da revista americana America’s Quarterly.
“Lula e Celso Amorim acreditam em uma ordem multipolar, com v�rios pa�ses poderosos, e que isso seria melhor para o Brasil. E eu entendo e respeito isso. N�o acho que Lula odeie os EUA, mas, na pr�tica, ele claramente quer ver os americanos n�o t�o poderosos quanto s�o hoje”, resume Winter, que conclui: “Todo mundo em Washington percebe que ele torce contra os EUA. Ent�o, � constrangedor”.
Para analisar a equa��o da rela��o bilateral, � preciso colocar outro elemento no xadrez: a China. Os EUA assistem ao avan�o cont�nuo da influ�ncia de Pequim, sua maior antagonista global, na Am�rica Latina na �ltima d�cada, seja por meio do com�rcio ou por investimento direto, e o Brasil � o principal parceiro chin�s em ambos os quesitos.
J� s�o 21 os pa�ses latinos ou caribenhos a assinarem o acordo de desenvolvimento econ�mico chin�s conhecido como Iniciativa Cintur�o e Rota (BRI, na sigla em ingl�s). E embora o Brasil n�o tenha assinado o BRI, tampouco � signat�rio do Parceria das Am�ricas para a Prosperidade Econ�mica, a tentativa de resposta dos EUA ao BRI que patina em injetar recursos na regi�o.
O Brasil tamb�m tem enviado recados de que n�o pretende ter de escolher entre China e EUA, em rota de tens�o crescente, em temas como a tecnologia de semicondutores.
"N�o temos nenhuma prefer�ncia por uma f�brica de semicondutores chinesa. Mas se eles (chineses) oferecerem boas condi��es, n�o vejo porque a gente recusar. N�o temos medo do lobo mau", disse Celso Amorim � Reuters.
Neste contexto, o Brasil � um pa�s com o qual os EUA precisariam aprofundar rela��es. A visita de Lula � capital americana, em fevereiro, poderia ter servido para avan�ar, mas organizada em clima de correria, frustrou o presidente brasileiro, que esperava ser recebido para uma visita de Estado, n�o apenas de trabalho, e ter a oportunidade de falar ao Congresso dos EUA, o que n�o aconteceu. Em compara��o, o l�der indiano Narendra Modi, cujo pa�s se abst�m de endossar as cr�ticas americanas � invas�o da R�ssia � Ucr�nia na ONU, foi recebido recentemente com a solenidade que Lula n�o recebeu.
Ainda durante a visita do brasileiro, em fevereiro, os americanos ofereceram seu ingresso ao Fundo Amaz�nia, algo desejado e celebrado pelo Brasil. Mas o baixo valor do aporte inicialmente disponibilizado, US$50 milh�es, causou mal-estar no lado brasileiro a ponto de ser exclu�do da declara��o conjunta dos pa�ses. Meses depois, Biden anunciou a inten��o de enviar US$ 500 milh�es � Amaz�nia — remessa que o Congresso dos EUA ainda n�o aprovou.
Antes mesmo do pleito de 2022, no entanto, ao menos um diplomata americano ouvido reservadamente pela BBC News Brasil expressou preocupa��o com as simpatias de Lula a regimes como o cubano, o venezuelano e o nicaraguense. Embora a rela��o entre Bolsonaro e Biden fosse, na pr�tica, inexistente, este diplomata dizia que os americanos apreciavam o modo como Bolsonaro alinhou o Brasil em temas ideol�gicos caros aos americanos e expressava desconfian�a ao que seria a rela��o com Lula.
"Depois de 30 anos do fim da Guerra Fria, pessoas em Washington, republicanos e democratas, ainda acham dif�cil trabalhar com um pa�s latino-americano que fica a meio caminho entre amigo e inimigo. Querem perguntar: 'Ei, Brasil, voc� � amigo ou n�o?' Ningu�m pergunta isso � Fran�a, por exemplo", afirma Brian Winter.
Recentemente, Washington demonstrou insatisfa��o diante de iniciativas brasileiras para suavizar um texto cr�tico a viola��es de direitos humanos do governo de Daniel Ortega, na Nicar�gua, no �mbito da Organiza��o dos Estados Americanos (OEA).
“Lula tem amizade pessoal com todos os esquerdistas da Am�rica Latina. A raz�o pela qual o Brasil quis diluir a resolu��o da OEA sobre a Nicar�gua � justamente a rela��o de Lula com Ortega. Eles se conheceram nos anos 80, relacionamentos s�o importantes e impactam a pol�tica, mesmo d�cadas depois. A outra parte disso � o Brasil tentando se posicionar para uma maior autonomia estrat�gica e, para isso, precisa manter os EUA a certa dist�ncia”, diz Berg, do programa Am�ricas do Center for Strategic & International Studies.
Regionalmente, este n�o � um ponto isolado de discord�ncia. Embora os americanos tenham dito publicamente que gostariam de ter com o Brasil um di�logo para promover elei��es livres na Venezuela no ano que vem, as autoridades dos dois pa�ses n�o t�m discutido o assunto. Em vez disso, h� poucos dias, Lula se uniu ao presidente franc�s Emmanuel Macron para tratar o tema em uma reuni�o com representantes do governo e da oposi��o venezuelana.
Apesar da grande press�o de americanos para que o Brasil compusesse uma for�a militar para ser enviada ao Haiti, onde o pa�s liderou por mais de uma d�cada uma miss�o de paz da ONU, o governo Lula j� os fez saber que n�o embarcar� na proposta.

Interesses brasileiros e multipolaridade
Em um artigo para edi��o de maio/junho da publica��o Foreign Affairs, o professor de Rela��es Internacionais da FGV Matias Spektor afirma que, ao evitar se alinhar com posicionamentos americanos na guerra da Ucr�nia, por exemplo, pa�ses como o Brasil n�o est�o sendo amorais ou acr�ticos, est�o apenas mantendo necess�ria flexibilidade de compromissos para se adaptar a poss�veis novos cen�rios geopol�ticos.
“Os pa�ses do Sul global est�o preparados para abrir caminho em meados do s�culo 21. Eles se protegem n�o apenas para obter concess�es materiais, mas tamb�m para elevar seu status, e abra�am a multipolaridade como uma oportunidade de subir na ordem internacional. Se quiser permanecer em primeiro lugar entre as grandes pot�ncias em um mundo multipolar, os Estados Unidos devem enfrentar o Sul global em seus pr�prios termos”, conclui Spektor.
� exatamente isso o que dizem tr�s diplomatas brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil sobre o assunto.
Segundo eles, ao retomar a proximidade com a Venezuela em termos que desagradam os americanos, Lula est� cuidando do que interessa ao pa�s: manter boas rela��es com vizinho de fronteira e reaver dinheiro de empr�stimo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econ�mico e Social (BNDES) para o pa�s.
Os pr�prios americanos, recordam eles, flexibilizaram san��es ao petr�leo venezuelano quando isso atendia ao interesse de baixar o pre�o da commodity, diante da guerra na Ucr�nia.
Do mesmo modo, ao advogar por transa��es em outras moedas que n�o o d�lar, Lula estaria buscando facilitar trocas comerciais com qualquer parceiro, j� que o Brasil n�o est� em condi��o de escolher de quem comprar ou para quem vender.
Com os EUA, interessa aos brasileiros tocar as agendas em comum: democracia, meio ambiente, com�rcio bilateral.
"Toda pol�tica externa tem componente ideol�gico, tem motiva��es normativas, morais. Sempre tem uma vis�o de mundo ali. Mas � preciso olhar para a pol�tica externa a partir de indicadores objetivos: atra��o de investimentos, facilita��o de fluxo de pessoas, atra��o de eventos de porte ao pa�s. Isso � o que interessa", argumenta Dawisson Bel�m Lopes, professor de Pol�tica Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais.
Segundo Bel�m Lopes, se quer liderar a regi�o e exercer protagonismo global, Lula tem que se comportar de maneira distinta da defendida pelo presidente do Chile, Gabriel Boric, que n�o refreia cr�ticas �s esquerdas na Am�rica Latina e expressou forte apoio � Ucr�nia. Esta semana, Lula disse que Boric � jovem e apressado em seus posicionamentos.
"O Brasil tem que lidar com Maduro e Ortega. O Brasil � metade da Am�rica do Sul, tem que lidar com muito mais gente do que o Chile, precisa se relacionar com muitos se quiser liderar a regi�o, o que � a nossa proposta. Para a gente conseguir ter aspira��es globais, a gente tem que se cacifar como l�der regional", afirma Bel�m Lopes, que completa: "Tem custos? Tem. A forma como Lula faz � a melhor? N�o sei. Mas certamente � melhor do que havia antes".
H� quem, no entanto, veja riscos na estrat�gia de Lula at� agora.
"O grande projeto diplom�tico de uma nova 'ordem mundial' de Lula vai causar problemas para o Brasil nas suas rela��es com os pa�ses ocidentais, com repercuss�es sobre interesses militares em equipamento e coopera��o", afirma o embaixador aposentado Paulo Roberto de Almeida.
Recentemente a Alemanha bloqueou a exporta��o para as Filipinas dos tanques Guarani, fabricados pelo Brasil, com componentes alem�es. A negativa veio depois que o Brasil se recusou a repassar muni��es para a Alemanha que chegariam � Ucr�nia. A justificativa oficial alem� foi a de que o governo filipino comete viola��es aos Direitos Humanos. Produtos da Embraer tamb�m podem ser afetados nesta din�mica.
Os americanos t�m expressado que, embora defendam uma reforma do Conselho de Seguran�a da ONU, pleito hist�rico do Brasil, n�o endossar�o uma eventual candidatura brasileira. Para o embaixador Rubens Ricupero, as a��es de Lula podem reduzir a disposi��o dos americanos de cooperar em temas centrais para o Brasil, como o meio ambiente e a democracia. Ele n�o v� vantagens estrat�gicas no comportamento do presidente.
"S� posso atribuir isso ao ressentimento (alguns dizem que Lula culpa em parte os americanos pela Lava Jato e sua condena��o) e, em parte, ao c�lculo, com vistas talvez a agradar setores mais radicais do PT e de apoiadores acaso insatisfeitos com a pol�tica econ�mica e outras orienta��es do governo", diz Ricupero, recordando a aprova��o recente do arcabou�o fiscal na C�mara, que n�o contou com o apoio de setores da esquerda que comp�em a base do governo Lula.
"N�o acho que essa linha v� gerar apoio interno, pois a opini�o p�blica brasileira em geral � simp�tica aos EUA fora os setores de esquerda e nacionalistas mais radicais", afirma o embaixador.

Desconfian�as recentes e hist�ricas
Ricupero n�o � o �nico a citar o hist�rico da Opera��o Lava Jato para explicar poss�veis desconfian�as de Lula com os EUA. Houve colabora��o formal e informal do Departamento de Justi�a dos EUA com investigadores e autoridades brasileiras no caso que levou Lula � pris�o e � inelegibilidade em 2018. Os processos contra Lula acabaram anulados pelo Supremo Tribunal Federal.
“N�o vejo Lula como antiamericano. Eu acho que o que se percebe por parte dele � uma desconfian�a, mas n�o hostilidade. Isso tem a ver primeiramente com a sensa��o pessoal do presidente de que Washington — especialmente o Departamento de Justi�a — teria contribu�do de alguma forma para sua pris�o”, diz Andr� Pagliarini, professor de Hist�ria do Hampden-Sydney College, na Virg�nia, e colaborador do Washington Brazil Office, organiza��o que faz a interface entre sociedade civil brasileira e o Congresso americano.
Para ilustrar o que considera um “trauma” de Lula com os americanos, Pagliarini conta uma anedota.
“H� dois anos, conversei com uma pessoa do c�rculo de Lula que me contou da tentativa de planejar uma viagem aos EUA (ainda antes das elei��es brasileiras). Mas parte deles temia que Lula seria preso ao descer do avi�o. Eu e outros falamos que isso era um absurdo, n�o aconteceria de jeito nenhum. Eles n�o confiavam e a visita n�o rolou. Sempre achei isso emblem�tico e acho que ajuda a explicar uma certa vis�o equivocada sobre os EUA hoje”, diz Pagliarini.
Em junho de 2021, a BBC News Brasil revelou que 23 deputados democratas pediram ao governo Biden que tornasse p�blicas as informa��es sobre coopera��es na investiga��o. Dois anos mais tarde, o Departamento de Justi�a jamais respondeu aos deputados. A demanda tinha sido feita em uma articula��o com a sociedade civil brasileira, representada pelo Washington Brasil Office na capital americana.
Se o governo Biden n�o tem colaborado pra esclarecer o passado recente das rela��es entre o Departamento de Justi�a e as autoridades brasileiras, coube ao pr�prio Joe Biden, ent�o vice de Obama, realizar uma das maiores aberturas de arquivos americanos sobre o Brasil, em 2014.
Em visita a Bras�lia, Biden entregou pessoalmente � ent�o presidente Dilma Rousseff 43 documentos produzidos por autoridades americanas entre os anos de 1967 e 1977 sobre censura, tortura e assassinatos cometidos pelo regime militar do Brasil. O material abasteceu a Comiss�o Nacional da Verdade, estabelecida no governo Dilma.
O gesto dos americanos, no entanto, n�o era desinteressado. Era, na verdade, uma tentativa de reaquecer rela��es abaladas depois que se tornou p�blica a espionagem do pa�s contra Dilma. Vazamentos de documentos diplom�ticos americanos pelo site Wikileaks, em 2013, apontavam que a Ag�ncia Nacional de Seguran�a (NSA, na sigla em ingl�s) tinha grampeado at� mesmo a linha telef�nica usada pela presidente no avi�o presidencial. Como retalia��o, Dilma cancelou uma visita de Estado que faria a Barack Obama em Washington D.C.
Em julho, o jornal El Pa�s revelou uma nova suposta espionagem levada a cabo por uma ag�ncia espanhola a pedido dos EUA, em 2018, e que tinha como alvo reuni�es do ex-presidente do Equador Rafael Correa (2007-2017) com os ex-presidentes da Argentina, Brasil e Uruguai, Cristina Fern�ndez de Kirchner , Lula, Dilma e Jos� Mujica, em 2018.
Nos �ltimos dias, deputados democratas da ala � esquerda do partido tentaram passar uma emenda legislativa para for�ar os EUA a abrir supostos arquivos adicionais sobre a ditadura brasileira. A emenda n�o foi aprovada. Uma fonte do Departamento de Estado dos EUA especializada em Am�rica Latina disse � BBC News Brasil que j� n�o h� material relevante dispon�vel ainda sob sigilo no arquivo americano.

“O �pice do antiamericanismo no Brasil veio com o golpe militar, que completar� 60 anos no ano que vem. Temos que lembrar que os EUA participaram ativamente da derrubada do governo Jo�o Goulart, o que gerou uma profunda desconfian�a, justificada, nos americanos a partir da�. Os americanos foram nefastos em 1964”, afirma o historiador James Green, da Brown University, um dos maiores especialistas americanos em ditadura militar no Brasil.
O golpe no Brasil foi apenas uma das a��es dos americanos na regi�o durante a Guerra Fria que mobilizaram sentimentos contra os EUA n�o s� nas esquerdas, mas nas lideran�as pol�ticas latinas em geral.
No per�odo, os americanos tentaram, com maior ou menor sucesso, suprimir revolu��es ou governos democr�ticos socialistas na regi�o, em sua disputa por hegemonia econ�mica e geopol�tica com a socialista Uni�o Sovi�tica.
Da Cuba de Fidel Castro ao Chile de Salvador Allende, a interfer�ncia pol�tica americana em assuntos dom�sticos na regi�o era palp�vel no s�culo 20 e os governos americanos tamb�m sabiam e acobertaram viola��es de direitos humanos cometidas sistematicamente pelo regime brasileiro (e tamb�m pelos demais) contra seus opositores pol�ticos e chegaram a oferecer treinamento para militares brasileiros com aulas te�ricas e pr�ticas de t�cnicas de tortura e de estrat�gias de combate a guerrilhas.
Essas informa��es foram descritas pelos pr�prios americanos em documentos oficiais tornados p�blicos nos �ltimos anos.
“Historicamente, o antiamericanismo passou a ser uma for�a enorme e capaz de aglutinar a esquerda da Am�rica Latina, animar a milit�ncia, gerar identidade ideol�gica. O problema � que ele faz cada vez menos sentido concreta e estrategicamente”, afirma Felipe Krause, professor do Centro de Estudos Latino Americanos da Universidade Cambridge.
Segundo Krause, a partir da d�cada de 1990, progressivamente, os americanos entenderam que a estabilidade da regi�o era mais facilmente atingida se os ritos democr�ticos fossem respeitados em cada pa�s — o que reduziu o intervencionismo.
Al�m disso, setores da esquerda latina aumentaram sua interlocu��o com a sociedade civil americana, que adotou um eficiente sistema de press�o sobre os congressistas e a pr�pria Casa Branca. Em certa medida, foi exatamente isso o que se viu nas repetidas manifesta��es cr�ticas da gest�o Biden e do parlamento americano � pol�tica ambiental e indigenista do governo de Jair Bolsonaro, ou na estrat�gia americana de apoio � democracia do Brasil.
Mas enquanto parte da esquerda latina passou a atuar por dentro da pol�tica dos EUA, outra segue recusando iniciativas americanas, mesmo quando os interesses s�o coincidentes.
“Uma parte da esquerda brasileira n�o consegue atualizar o quadro geopol�tico. Desconfia at� mesmo dos supostos reais interesses de Biden ao defender a democracia no Brasil, como se fosse uma fachada para controlar o pa�s, tomar a Amaz�nia. Quando a explica��o � muito simples, os americanos passaram por algo semelhante com Trump e conseguem entender a gravidade da situa��o e ter empatia”, diz James Green.