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Cartas de amor, de despedida, de vida, de morte, de nascimento, de desculpas, de li��es, de datas especiais, de avisos... As palavras no papel percorrem caminhos inimagin�veis e surpreendentes porque a origem est� no cora��o, na emo��o, no desenho de cada letra. Se perdeu for�a como tradi��o e h�bito, o resgate da carta manuscrita na p�s-modernidade � um jeito de acalentar a alma, buscar aconchego e dar outro sentido ao tempo.

 

� preciso apenas adentrar o cora��o e levar os sentimentos para o papel, possibilitando-os simplesmente se desvelar, genu�nos e aut�nticos

Renta Feldman, psic�loga cl�nica, escritora e palestrante

“Sempre gostei de escrever – poesia, reda��o de escola, bilhetes, cartas. Lembro-me de que cheguei a me inscrever em um programa internacional de correspond�ncias, o Pen Pal Friends. Tinha por volta de 12 anos e passei a escrever para uma 'amiga' na It�lia, chamada Andrea. Qual a minha surpresa quando ela me mandou uma foto e vi que na verdade era um amigo que eu tinha! Na It�lia Andrea � um nome masculino, eu n�o sabia. A confus�o rendeu boas risadas! N�s nos correspondemos por um bom tempo, experenciando a ansiedade boa de escrever e esperar pela chegada de uma carta, vinda de t�o longe."

E tamb�m destaca: "Outra paix�o que cultivava era uma cole��o de pap�is de carta, lindos e perfumados, que guardava em uma pasta plastificada. Todos os dias a levava � escola e aguardava ansiosamente a hora do recreio, quando mostrava a cole��o �s minhas amigas e realizava poss�veis trocas.” As lembran�as da psic�loga cl�nica, escritora e palestrante Renata Feldman traduzem a diversidade e os in�meros significados que sempre ter�o em comum: a uni�o de pensamentos e a aproxima��o das pessoas. O que faz da carta, sim, ferramenta de sa�de mental. 
 
Qual o significado da carta manuscrita nos dias de hoje?
Nos tempos atuais, em que a vida digital impera e um simples comando no teclado envia mensagens instant�neas, uma carta escrita carrega uma ideia de passado, nostalgia, rel�quia, raridade e – quanto parodoxo! – inova��o: receber hoje uma carta pelo correio, escrita a m�o, no m�nimo causa grande impacto e surpresa.

Daniella Castro/Divulga��o
A carta pode ser uma ferramenta terap�utica? 
Cartas podem ser extremamente terap�uticas, transformadoras. Utilizo bastante esse recurso no consult�rio e vejo efeitos lindos surgirem da�. � uma forma de transferir para o papel (ou para a tela do computador) o que anda pesando a cabe�a e o cora��o – uma esp�cie de catarse emocional. Al�m disso, a carta permite a quem escreve organizar os pensamentos e ideias, clareando o que se sente e muitas vezes gerando insights importantes. Geralmente, sugiro que sejam escritas cartas envolvendo rela��es em conflito (ou palavras que n�o puderam ser ditas), expressando tudo o que se est� sentindo, sem censura. Pode ser para um pai, m�e, filho, ex-namorado, chefe, amigo, professor... A princ�pio, n�o precisam ser entregues, apenas redigidas. Em alguns casos, avaliamos em conjunto a possibilidade de serem efetivamente envidadas. As cartas trazem al�vio, crescimento, for�a. E contribuem bastante para o desenvolvimento do processo psicoter�pico.

Hoje, qual o perfil de quem escreve cartas? Qual tipo de personalidade tra�aria? 
Acredito que pessoas mais velhas, conservadoras, nost�lgicas, que ainda n�o se renderam aos apelos tecnol�gicos. Podemos pensar em um certo apego ao passado, rigidez ou simplesmente no gosto por escrever cartas � moda antiga.

Voc� � uma das autoras de O livro das cartas. Como foi participar? Qual contribui��o imagina para o leitor?
Minha carta � uma “pequena” volta no tempo: a Renata, de 13 anos, que pegou um �nibus para ir ao encontro de uma psic�loga, na maior ansiedade, fazer sua primeira sess�o de terapia. Escrevo para essa psic�loga fazendo uma breve retrospectiva dessa rela��o t�o cheia de significado e delicadeza para mim. Uma rela��o que tanto influenciou a pessoa que sou hoje e tamb�m a profiss�o que exer�o, uma de minhas grandes paix�es. Divido no livro um espa�o com mais 19 autores, que escreveram cartas para destinat�rios diversos: pai, m�e, filhos, tempo, morte, entre outros. Acredito que a colet�nea possa contribuir no sentido de tocar o leitor, faz�-lo pensar, causando uma positiva identifica��o com p�ginas da pr�pria vida.

A carta escrita a m�o pode ser uma forma de express�o das emo��es e sentimentos? 
Sim, claro. � medida que o l�pis ou a caneta v�o deslizando pelo papel, sentimentos e emo��es v�o deslizando tamb�m. � como se o cora��o ditasse o que precisa ser dito, expressando por meio de letras mi�das, garrafais ou tremidas, de tra�o forte ou fraco, a intensidade da emo��o que ele carrega. Escrever � rem�dio para quem est� fragilizado, �s voltas com suas dores emocionais. E tamb�m vitamina, dose di�ria de sa�de para quem est� de bem com a vida, apenas buscando registrar seus sentimentos e se conhecer melhor.

Para quem n�o tem o h�bito, tem medo, n�o sabe como come�ar, como levar os sentimentos para o papel? Eles chegam reais ou mascarados?
N�o tem segredo, e n�o � preciso temer o papel. Ele fala por si s�, junto do cora��o. Basta olhar para dentro e se encontrar: perdido, valente, fr�gil, sozinho, motivado, feliz, qualquer que seja o sentimento. O que vale � a sede de se expressar. Tamb�m n�o � preciso se preocupar com a letra, gram�tica, t�cnica ou linguagem. � preciso apenas adentrar o cora��o e levar os sentimentos para o papel, possibilitando-os simplesmente se desvelar, genu�nos e aut�nticos.

Voc� revelou que o namoro com seu marido come�ou com uma carta. Uma rela��o j� de 30 anos. Pode contar como foi esse momento? 
Ele ainda n�o era meu namorado, mas j� est�vamos conversando h� uma semana, todos os dias. Sa�mos uma vez e o encontro seguinte eu tive que cancelar porque o meu av� morreu justo no dia. Meu futuro namorado/marido acabou indo para a minha casa e permaneceu um bom tempo comigo e com a minha irm�, nos apoiando. No dia seguinte, cometi uma “heresia”: tirei da pasta o meu papel de carta mais bonito, escrevi para ele (agradecendo pela amizade e carinho) e postei no correio. Na semana seguinte come�amos a namorar.

CARTA: A ORIGEM*

As cartas s�o consideradas o meio de comunica��o mais antigo do mundo. N�o se sabe ao certo quando elas surgiram, mas os reis do antigo Oriente M�dio j� as escreviam. Por ser um dos registros mais antigos, alguns estudiosos apontam, inclusive, que a carta � a m�e de todos os g�neros textuais, ao lado dos mitos e contos populares. J� no Egito, mais de 4 mil anos antes da Era Crist�, j� existiam os sigmanacis, mensageiros que levavam recados escritos a p� ou montados em cavalos e camelos. Entre os livros que formam a B�blia est�o publicadas 21 cartas, escritas por Paulo e outros seguidores de Cristo, direcionadas a povos como os romanos e os habitantes da cidade de Corinto, na Gr�cia Antiga. No Brasil, as cartas chegaram com os primeiros portugueses. Assim que a esquadra de Cabral aportou, Pero Vaz de Caminha enviou uma correspond�ncia ao rei comunicando o descobrimento das novas terras.

CARTAS E LIVROS 

1 - Todas as cartas, de Clarice Lispector (editora Rocco): re�ne correspond�ncias escritas por Clarice Lispector ao longo de sua vida.

2 - Cartas extraordin�rias: A correspond�ncia inesquec�vel de pessoas not�veis (editora Companhia das Letras): colet�nea de mais de 125 cartas que oferece um olhar in�dito sobre os eventos e as pessoas not�veis da nossa hist�ria. � uma celebra��o do poder da correspond�ncia escrita, que vai do comovente bilhete suicida de Virginia Woolf � receita que a rainha Elizabeth II enviou ao presidente americano Eisenhower; do pedido especial que Fidel Castro, aos 14 anos, faz a Franklin D. Roosevelt, � carta em que Gandhi suplica a Hitler que tenha calma e muito mais.

3 - Fernando Pessoa e Of�lia Queiroz. Correspond�ncia amorosa completa (editora Capivara): re�ne toda a correspond�ncia amorosa trocada entre Fernando Pessoa e sua �nica namorada, Of�lia Queiroz, de 1919 a 1935, com 156 cartas in�ditas.

4 - Carlos e M�rio: Correspond�ncia de Carlos Drummond de Andrade e M�rio de Andrade (editora Bem-Te-Vi): correspond�ncia mantida entre 1924 e 1945 entre Drummond e Andrade.

5 - Cartas a um jovem poeta (editora L&PM): Paris, fevereiro de 1903. Rainer Maria Rilke recebe uma carta de um jovem chamado Franz Kappus, que aspira se tornar poeta e que pede conselhos ao j� famoso escritor.

6 - Cartas entre Freud e Pfister. Um di�logo entre a psican�lise e a f� crist� (editora Ultimato): � fascinante acompanhar o di�logo e a constru��o da amizade entre Freud e Pfister. Freud era judeu e ateu. Pfister, pastor protestante. Trocam ideias, textos, compartilham vida.

CURIOSIDADES DA COMUNICA��O

1 - Pombo-correio: os pombos-correios foram usados h� anos para carregar mensagens escritas em papel colocadas em um tubo pequeno unido ao p�. Inclusive na Primeira Guerra Mundial, quando n�o havia comunica��o por r�dio e eles levavam recados entre os batalh�es.

2 - T�buas de argila: as t�buas de argila eram o “bloco de notas da Mesopot�mia”. A origem da carta � relacionada � necessidade do homem de se comunicar e as tabuinhas de argila tiveram grande import�ncia. Foram encontrados registros em t�buas de argila contendo material com inscri��es mais antigas.

3 - Correio: em 1840, na Inglaterra, surgiu o primeiro servi�o de envio de documentos com pagamento do selo postal, o Penny Black. O correio possibilitou o envio de informa��es escritas com mais seguran�a para qualquer localidade.

4 - Tel�grafo: o problema da longa espera por uma carta foi resolvido com o surgimento do tel�grafo, em 6 de janeiro de 1835. Gra�as a esse meio de comunica��o, as informa��es escritas passaram a ser transmitidas a longas dist�ncias, com a utiliza��o de c�digos. O criador do sistema telegr�fico foi o f�sico Samuel Morse (1791 – 1872), que aprimorou o tel�grafo el�trico e passou a usar uma codifica��o espec�fica, chamada de C�digo Morse.

5 – Telefone, r�dio, TV e internet: depois do tel�grafo, veio o telefone, cria��o de Alexandre Graham Bell em 1876; o r�dio 30 anos ap�s a inven��o do aparelho telef�nico, em 1896; seguido da televis�o e, enfim, a internet, nos anos 1960.