
O que uma crian�a vivendo nas ruas e fora da escola em S�o Paulo e uma jovem negra formada na universidade que n�o consegue emprego em Salvador t�m em comum?
Ambas fazem parte do contingente de talentos que s�o desperdi�ados todos os dias no Brasil.
Uma crian�a brasileira nascida em 2019 deve alcan�ar em m�dia apenas 60% do seu capital humano potencial ao completar 18 anos, calcula estudo in�dito do Banco Mundial, ao qual a BBC News Brasil teve acesso.
Isso significa que 40% de todo o talento brasileiro � deixado de lado, na m�dia nacional.
Nos rinc�es mais vulner�veis, o desperd�cio de potencial superava os 55% antes da pandemia, estima a institui��o. Com a crise sanit�ria, a situa��o se agravou e, em apenas dois anos, o Brasil reverteu dez anos de avan�os no ac�mulo de capital humano de suas crian�as.
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"Agora, mais do que nunca, as a��es n�o podem esperar", alerta o banco, no Relat�rio de Capital Humano Brasileiro, que dever� ser lan�ado nesta semana.
O estudo � parte do Human Capital Project do Banco Mundial, iniciativa lan�ada em 2018 para alertar governos quanto � import�ncia de se investir em pessoas. O relat�rio brasileiro � o primeiro focado em um pa�s espec�fico.
O banco estima que o PIB (Produto Interno Bruto, soma de bens e servi�os produzidos por um pa�s) do Brasil poderia ser 2,5 vezes maior (158%), se as crian�as brasileiras desenvolvessem suas habilidades ao m�ximo e o pa�s chegasse ao pleno emprego.
Capital humano e potencial desperdi�ado
Capital humano � o conjunto de habilidades que os indiv�duos acumulam ao longo da vida, explica Ildo Lautharte, economista do Banco Mundial e um dos autores do estudo.
Essas habilidades acumuladas determinam, por exemplo, o n�vel de renda e as oportunidades de trabalho que uma pessoa vai ter em sua vida. E impactam a produtividade, o tamanho do PIB e a capacidade de gerar riqueza de um pa�s.
Para comparar esse potencial acumulado nos diferentes pa�ses e nas diversas regi�es, Estados e munic�pios em cada pa�s, o Banco Mundial desenvolveu o ICH (�ndice de Capital Humano), um indicador que combina dados de educa��o e sa�de, para estimar a produtividade da pr�xima gera��o de trabalhadores, se as condi��es atuais n�o mudarem.
Os dados que comp�em o ICH s�o: taxas de mortalidade e d�ficit de crescimento infantil; anos esperados de escolaridade e resultados de aprendizagem; e taxa de sobreviv�ncia dos adultos.
Com base nesse conjunto de dados, o indicador varia de 0 a 1, sendo 1 o potencial pleno — ou seja, n�o ter d�ficit de crescimento ou morrer antes dos 5 anos, receber educa��o de qualidade e se tornar um adulto saud�vel.
Aplicando essa metodologia ao Brasil, o banco chegou a um ICH de 0,60, que significa que uma crian�a brasileira nascida em 2019 deve atingir apenas 60% de todo seu potencial aos 18 anos.
O pa�s est� abaixo de pa�ses de desenvolvidos como Jap�o (0,81) e Estados Unidos (0,70) e de pares latino-americanos como Chile (0,65) e M�xico (0,61), mas acima de outros pa�ses em desenvolvimento mais pobres como �ndia (0,49), �frica do Sul (0,43) e Angola (0,36).
"O Brasil precisaria de 60 anos para alcan�ar o n�vel de capital humano alcan�ado pelos pa�ses desenvolvidos ainda em 2019", estima o Banco Mundial. "N�o h� tempo a perder."
'Muitos Brasis'
A institui��o financeira internacional alerta, por�m, que a m�dia nacional � apenas uma parte da hist�ria e que h� muitas desigualdades dentro do pa�s.
Por regi�es, por exemplo, em 2019, o ICH do Norte e do Nordeste era de 56,2% e 57,3%, enquanto para Sul, Centro-Oeste e Sudeste variava de 61,6% a 62,2%.

"60% a 70% dessa desigualdade regional � explicada pela educa��o", afirma Lautharte. "Isso inclui tanto os anos que a crian�a fica na escola, como a qualidade da educa��o, isto �, se ela consegue aprender aquilo que deveria ter aprendido na escola."
"Mas al�m dessa desigualdade regional, que j� � esperada por quem conhece o Brasil, chama aten��o a desigualdade dentro de um mesmo Estado ou uma mesma regi�o", observa.
Por exemplo, enquanto o munic�pio de Ibirataia na Bahia tem um ICH de 44,9%, similar a pa�ses africanos muito pobres como Gana e Gab�o, Cocal dos Alves no Piau�, com um ICH de 74%, est� mais pr�ximo dos �ndices da It�lia e da �ustria.
Embora todas as regi�es tenham melhorado seu ICH ao longo dos anos — o estudo analisa o per�odo de 2007 a 2019 —, a desigualdade persiste com o passar do tempo.
Por exemplo, o �ndice de Capital Humano m�dio das regi�es Norte e Nordeste em 2019 era similar ao das regi�es Sul, Sudeste e Centro-Oeste em 2007 — ou seja, uma lacuna de 12 anos.

Desigualdade racial crescente
O Banco Mundial chama aten��o tamb�m para a desigualdade racial no desenvolvimento do potencial dos brasileiros.
Segundo o estudo, a produtividade esperada de uma crian�a branca em 2019 era de 63% do seu potencial, comparado a 56% para uma crian�a negra e 52% para uma ind�gena.
Mas, ainda mais grave, � que essa desigualdade est� aumentando ao longo do tempo.
Isso porque o ICH das crian�as brancas avan�ou 14,6% entre 2007 e 2019, enquanto o �ndice para crian�as negras variou 10,2% e o das ind�genas ficou praticamente est�vel (0,97%).

Para Ildo Lautharte, a explica��o aqui novamente est� nas desigualdades educacionais.
"O Brasil teve muito sucesso em termos de acesso � educa��o, conseguimos fazer com que a quase totalidade das crian�as esteja na escola. A grande quest�o agora � a qualidade dessa educa��o e isso tem um componente racial muito elevado", diz o economista.
Lautharte observa que essa diferen�a nos resultados de aprendizagem est� ligada tanto � qualidade do ensino, quanto �s condi��es das crian�as, que partem de bases muito desiguais.
Mercado de trabalho e o talento desperdi�ado das mulheres
O Banco Mundial analisa tamb�m o que acontece quando todo esse potencial chega ao mercado de trabalho. E aqui, o quadro � ainda mais preocupante.
O ICHU (�ndice de Capital Humano Utilizado) pondera o ICH com a taxa de emprego nos mercados de trabalho formal e informal. O objetivo � analisar quanto do capital humano � de fato aproveitado pelo mercado de trabalho.
No Brasil, o ICHU � de 39%, estima o Banco Mundial, o que significa que o mercado de trabalho brasileiro desperdi�a boa parte dos seus talentos devido � baixa ocupa��o.

Aqui, chama a aten��o tamb�m a desigualdade entre homens e mulheres.
Olhando para o ICH, as mulheres chegam aos 18 anos com potencial acima dos homens. Elas tinham um �ndice de Capital Humano de 60% em 2019, contra 53% para eles.
A diferen�a se explica por fatores diversos. Por exemplo, as mulheres tendem a abandonar menos a escola para trabalhar e, por isso, acumulam em m�dia mais tempo de estudo do que os homens. Al�m disso, elas tendem a viver mais, tanto por quest�es de sa�de, como da maior propens�o dos homens (particularmente dos negros) a morrer por causas violentas.
No entanto, apesar de as mulheres terem ac�mulo de capital humano acima dos homens aos 18 anos, elas s�o menos aproveitadas no mercado de trabalho.
Enquanto o ICHU delas � de 32%, o deles � de 40%. Isso se deve a fatores que v�o desde profiss�es que ainda hoje s�o entendidas como predominantemente masculinas, at� a desigualdade no trabalho dom�stico e no cuidado dos filhos.
"S� pol�tica p�blica pode fazer com que essa diferen�a entre homens e mulheres no mercado de trabalho diminua", diz Lautharte.
"Esse � um ponto onde o Brasil ainda engatinha, outros pa�ses j� est�o fazendo muito mais, com pol�ticas muito mais ativas para aumentar a inser��o da mulher no mercado de trabalho. Esse desperd�cio � particularmente grave entre mulheres negras, s�o talentos desperdi�ados."
Pandemia fez Brasil andar dez anos para tr�s
Se o Brasil j� desperdi�ava o potencial de suas crian�as antes da pandemia, a crise sanit�ria s� agravou essa situa��o, destaca o Banco Mundial.
"Em termos de sa�de infantil, por exemplo, mais 3,5 em cada 10 mil crian�as n�o sobreviveram at� os 5 anos de idade em 2021, em compara��o a 2019, no Sudeste do Brasil", cita o banco, no relat�rio. "Al�m disso, cerca de 80 mil crian�as podem sofrer d�ficit de crescimento no Brasil devido � pandemia."
Na educa��o, as escolas ficaram fechadas por 78 semanas, um dos fechamentos mais longos do mundo. Consequentemente, a parcela de crian�as que n�o sabem ler e escrever saltou 15 pontos percentuais entre 2019 e 2021, observa a institui��o financeira internacional.
Com tudo isso, o �ndice de Capital Humano do Brasil caiu de 60% para 54% entre 2019 e 2021, estima o Banco Mundial, voltando ao n�vel de 2009. "Em dois anos, a pandemia de Covid-19 reverteu o equivalente a uma d�cada de avan�os do ICH no Brasil", observa o Banco Mundial.

O caminho para a recupera��o ser� longo, diz a institui��o.
"Considerando-se a taxa de crescimento antes da pandemia, o ICH levar� de 10 a 13 anos para retornar ao patamar de 2019 no Brasil. Ou seja, o Brasil chegaria novamente ao ICH de 2019 somente em 2035."
Para Lautharte, reverter esse quadro passa por um grande esfor�o de pol�ticas p�blicas, com recomposi��o da aprendizagem, que deve ser combinado com a agenda de combate � fome, de fortalecimento dos programas de transfer�ncia de renda e de pol�ticas de sa�de p�blica.
Al�m disso, diz o economista, o Brasil precisa aprender consigo mesmo. Por exemplo, a bem sucedida experi�ncia educacional do Cear� pode ser replicada em outros Estados e munic�pios.
"Mesmo antes da pandemia, o Brasil tinha 52% das crian�as com 10 anos que n�o conseguiam ler um par�grafo adaptado para a idade delas. Ent�o nosso objetivo n�o deve ser voltar para o pr�-pandemia, mas avan�ar para um cen�rio melhor", diz Lautharte.
"Temos agora uma oportunidade para repensar algumas coisas e fortalecer outras. Ent�o conhecer os 'muitos Brasis' � fundamental para saber onde investir e quem precisa de mais ajuda."
- Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62018496
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