Maria Catelli, 74, sofreu sequelas irrevers�veis por causa da hansen�ase, como a atrofia dos dedos das m�os, amputa��o da perna esquerda e de um dedo em cada p�
Mas para que a transmiss�o ocorra, o contato precisa ser prolongado e pr�ximo — como o de pessoas que vivem na mesma casa, por exemplo —, diferentemente de outras doen�as infecciosas como a COVID-19, que podem ser disseminadas por um contato mais superficial.
Ainda assim, n�o s�o todas as pessoas que entram em contato com a bact�ria que desenvolvem a doen�a. "� necess�rio ter uma suscetibilidade gen�tica � doen�a, relacionada a falhas na imunidade inata, ou seja, que vem desde o nascimento. Cerca de 10% da popula��o � mais suscet�vel � hansen�ase, mas isso n�o quer dizer que os outros 90% n�o possam ficar doentes - s� � prov�vel que desenvolvam quadros mais leves", explica Egon Daxbacher, m�dico do departamento de hansen�ase da SBD (Sociedade Brasileira de Dermatologia).
Embora a hansen�ase seja marcada por feridas grosseiras na pele, que estigmatizam a apar�ncia dos acometidos, sua import�ncia para a sa�de p�blica est� relacionada aos danos que o bacilo de Hansen pode causar no sistema nervoso perif�rico (termina��es nervosas livres e troncos nervosos), que podem ocorrer quando a doen�a n�o � diagnosticada e tratada precocemente.
Nesses casos, os doentes sofrem com a perda de sensibilidade nos membros, paralisias musculares e at� incapacidades f�sicas permanentes, como atrofias ou necessidade de amputa��o de membros, quando o bacilo causa danos irrevers�veis nas termina��es nervosas.
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O tratamento feito da forma correta pode durar at� um ano e meio e permite a cura — mas n�o impede, caso demore a ser feito, que o paciente sofra com sequelas irrevers�veis.

Hansen�ase pode causar marcas na pele e atrofia nos membros
visual7/Getty ImagesInterna��o compuls�ria marcou hist�ria da doen�a no Brasil
Por s�culos, no Brasil e no mundo, pensava-se que a hansen�ase era muito mais contagiosa do que realmente �, o que resultou no isolamento e segrega��o de milh�es de pessoas.
"O Brasil foi um dos primeiros pa�ses que se sabe, por conta da comunica��o prec�ria da �poca, a ter casos da doen�a, por volta do ano 1600, quando surgiram relatos no Rio de Janeiro. A coroa portuguesa investiu muito pouco, como em tudo no pa�s, o que contribuiu para a dissemina��o da hansen�ase", diz a m�dica Patr�cia Deps, dermatologista e refer�ncia no combate � Hansen�ase no Brasil, que foi selecionada como membro na "WHO Technical Advisory Group-Leprosy control", um programa de combate � doen�a da OMS (Organiza��o Mundial da Sa�de), no qual ir� atuar entre os anos de 2022 e 2025.
"O olhar mais cuidadoso para a hansen�ase no in�cio do s�culo 20, na 'era dos sanitaristas' [quando o Brasil come�ou a ter pol�ticas voltadas para � sa�de p�blica, como a vacina��o em massa]", complementa Deps.
O conhecimento, no entanto, n�o era abrangente, e parte da solu��o encontrada com o passar do tempo � hoje vista como medida que fere os direitos humanos. "Pacientes com hansen�ase passaram a ser internados em institui��es focadas apenas na doen�a. A ideia era tratar os doentes — embora na �poca n�o existisse tratamento realmente efetivo — e proteger a popula��o saud�vel", aponta.
Entre 1920 e 1950, foram inaugurados quarenta hospitais-col�nias (chamados pejorativamente de lepros�rios) em todo o Brasil — a maioria deles criados no governo de Get�lio Vargas.
Em 1949, o isolamento for�ado dos hansenianos virou lei federal, que vigorou at� 1986. A legisla��o permitia at� mesmo separar filhos de suas m�es.
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Em 2007, a lei foi tida como um erro das pol�ticas p�blicas e pacientes que foram internados at� 31 de dezembro de 1986 foram considerados aptos a receber pens�o mensal vital�cia de R$ 750 conforme o art. 1º da Lei nº 11.520/2007.
'N�o era capaz nem de segurar uma escova de dentes'
Maria Catelli, 74, foi uma das milhares de brasileiras que passaram por uma instala��o com foco no tratamento e reabilita��o de pacientes hansenianos. Moradora de Maring�, no Paran�, ela foi internada em 1986, quando o isolamento j� n�o era mais obrigat�rio.
M�e solteira de tr�s crian�as pequenas, Maria j� sofria com a doen�a havia anos, mas foi durante uma crise que provocou dores intensas que concordou em ser internada.
"Tr�s anos antes, eu perdi um chinelo porque meu p� inchou demais, sem explica��o. Era o primeiro sinal. Depois as articula��es tamb�m aumentaram de tamanho. Fizeram um teste de hansen�ase no qual pegaram uma amostra de pele, mas como eu n�o tinha feridas, foi inconclusivo. O diagn�stico demorou meses, s� veio depois de v�rios exames", conta.
Enquanto esperava o diagn�stico, Maria foi perdendo a for�a. Quando carregava uma caixa de bebidas na padaria em que trabalhava, sentiu as m�os falharem e derrubou a encomenda. Foi o �ltimo trabalho que teve.
Mesmo seguindo o tratamento indicado pelos m�dicos, os medicamentos n�o controlavam a doen�a por completo e ,alguns anos depois do diagn�stico, Maria teve o que os m�dicos chamam de rea��o hans�nica, quadro que causa sintomas dolorosos.
"Em 1986 tive uma crise muito forte, com febre e dor que n�o passavam, e me encaminharam para interna��o em Curitiba, no Paran�. Quando cheguei l�, n�o era capaz nem de segurar uma escova de dentes."
Foram quatro meses de interna��o com rem�dios para controle de dor, fisioterapia e atividades para ocupar a mente, como oficinas de artesanato.
L�, Maria conta ter sido bem tratada e presenciado hist�rias tristes de outros pacientes com hansen�ase. "Havia muitas pessoas com problemas mentais e com membros amputados. Me lembro de uma menina bem jovem, 20 e poucos anos, que chorava muito por que ela perderia a perna. No centro cir�rgico ela teve complica��es e acabou falecendo."
A m�dica Patr�cia Deps explica que, mesmo com o fim da interna��o compuls�ria, os pacientes continuaram a ir para os hospitais-col�nias por anos, n�o s� por motivos de crise, como no caso de Maria, mas tamb�m por conta do estigma que os acompanhava.
"A vida era t�o ruim para as pessoas na comunidade, que sofriam preconceito e tinham um pavor enorme de infectar as pessoas amadas, que �s vezes preferiam se isolar", explica a m�dica.
Maria contou que j� foi hostilizada mesmo sem apresentar marcas graves na pele. "Houve um burburinho na igreja onde eu frequentava os cultos. As pessoas come�aram a falar que eu tinha hansen�ase e pedir uns aos outros para n�o se aproximarem de mim."
Passados alguns anos da interna��o em Curitiba, Maria come�ou a apresentar �lceras na pele, as feridas caracter�sticas da doen�a. A gravidade das les�es resultou em amputa��es. Ela perdeu os dois dedos menores dos p�s.
Ela tamb�m desenvolveu uma osteomielite, infec��o �ssea grave geralmente causada por bact�rias, micobact�rias (g�nero de bact�rias) ou fungos, que resultou na amputa��o de sua perna esquerda. "Os m�dicos me explicaram que essas perdas ao longo dos anos foram todas sequelas da hansen�ase", conta Maria.

M�os de Maria Catelli foram atrofiadas pela hansen�ase
Arquivo pessoalMaria conta que tentou conseguir a pens�o mensal oferecida pelo governo para pessoas que foram internadas em hospitais-col�nias, mas ela n�o tinha todos os documentos necess�rios.
"H� 40 anos, as pessoas tinham muito mais preconceito com a doen�a, apesar de ainda existir. Eu agrade�o a Deus por ter me mantido forte, porque sei que a hansen�ase fez muita gente perder a cabe�a."
Tratamento e preven��o da hansen�ase
Ainda n�o h� uma vacina considerada completamente efetiva que proteja contra a hansen�ase. A BCG, oferecida contra a tuberculose na inf�ncia, parece oferecer alguma prote��o.
A melhor forma de conseguir um desfecho positivo � come�ar o tratamento antes que a doen�a avance demais. Nesse sentido, o Brasil tem um ponto positivo: foi o primeiro pa�s do mundo a oferecer teste r�pido e gratuito, via SUS (Sistema �nico de Sa�de), para detec��o precoce da hansen�ase.
"Campanhas, exames de contato e busca ativa s�o essenciais em um pa�s com tantos casos como o Brasil. Mas junto a isso, precisamos formar profissionais que entendam da doen�a e reconhe�am as rea��es - a hansen�ase � uma doen�a complexa com manifesta��es cl�nicas diversificadas", aponta a dermatologista Patr�cia Deps.
O tratamento contra a hansen�ase demorou a evoluir. Na d�cada de 1940, foi descoberta a dapsona, primeiro antibi�tico empregado contra o bacilo de Hansen. Na d�cada de 1960, a clofazimina, rem�dio antibacteriano, tamb�m passou a ser usado. Na d�cada seguinte, 1970, outro antibi�tico, a rifampicina, entrou em cena. A utiliza��o conjunta dos f�rmacos trouxe a t�o esperada cura.
Em 1981, a OMS passou a recomendar, em n�vel mundial, a terapia m�ltipla ou PQT (poliquimioterapia), incluindo os tr�s medicamentos.
Na maioria dos casos, a terapia conjunta, que est� dispon�vel gratuitamente no SUS, � capaz de matar o bacilo, tornando invi�vel a transmiss�o da doen�a, al�m de evitar a evolu��o dos quadros e consequentemente as incapacidades e sequelas causadas por ele.
Efeitos colaterais podem incluir irrita��o g�strica, dor de cabe�a, fotodermatite (sensibilidade ao sol), anemia, at� condi��es mais graves (e tamb�m mais raras) como agranulocitose (doen�a aguda do sangue) e hepatite.
"Mas h� tamb�m pessoas que s�o resistentes ao tratamento padr�o. Nesses pacientes, mesmo com rem�dios, os bacilos continuam �ntegros, o que pode causar as rea��es hans�nicas. Se a resist�ncia for comprovada, rem�dios como os antibi�ticos minociclina e ofloxacina e o antibacteriano claritromicina podem ser usados", explica Deps.
Na avalia��o da m�dica, h� uma necessidade de cria��o de novos f�rmacos. "Temos relatos de resist�ncia � dapsona e fincina, principalmente. Falta aten��o, investimento farmac�utico e pesquisa sobre hansen�ase. � uma das 20 doen�as negligenciadas no Brasil."

Brasil � o segundo pa�s com mais casos de hansen�ase no mundo, atr�s apenas da �ndia
Getty ImagesNo Brasil, COVID-19 pode ter causado 'falsa redu��o' de casos de hansen�ase
A Sociedade Brasileira de Dermatologia aponta que a pandemia da COVID-19 pode ter levado a um n�mero de diagn�sticos menor do que a realidade apresenta, uma situa��o marcada pela reorganiza��o de profissionais que precisaram focar em atender pacientes infectados pelo Sars-CoV-2, servi�os fechados e pol�ticas de distanciamento.
Em 2019, antes da pandemia da COVID-19, foram notificados 27.864 casos de hansen�ase no Brasi, de acordo com o Boletim Epidemiol�gico do Minist�rio da Sa�de. Em 2020, no primeiro ano da pandemia, foram 17.979 casos - uma queda de 35%.
Em n�vel mundial, a OMS estima que 37% dos novos casos em 2020 n�o foram diagnosticados. Como o Brasil � a segunda maior na��o com casos da doen�a, � esperado que muitas pessoas n�o tenham sido diagnosticadas aqui.
"Essas pessoas que n�o foram tratadas podem ter sequelas graves. E como o per�odo de incuba��o � de 3 a 7 anos at� desenvolver a doen�a, passado esse tempo, poderemos ter um n�mero ainda maior de pessoas com hansen�ase no Brasil", conclui Deps.
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