Censo Escolar 2022 contabilizou 26.815 alunos com altas habilidades ou superdota��o na educa��o b�sica brasileira
Em uma manh� de s�bado nublada, no fim de junho, o universit�rio Rafael Rocha foi at� o Parque Tecnol�gico S�o Jos� dos Campos, no interior de S�o Paulo, por conta de uma antiga desconfian�a sua: a de que � superdotado.
“Sempre soube fazer [a forma dos] os n�meros, e eles [na escola] fazem voc� repetir v�rias vezes. Nem me lembro quando comecei a aprender a escrever, porque j� sabia com 5 anos”, conta Rafael, que tem 21 anos e estuda Ci�ncia de Dados.
Ele foi uma das tr�s pessoas que foram naquele s�bado fazer um teste de QI com dura��o de apenas seis minutos, aplicado pela organiza��o Mensa Brasil, cujo formato � mantido em segredo.
A Mensa Brasil � o bra�o local da Mensa Internacional, uma organiza��o fundada em 1946 no Reino Unido para reunir superdotados.
Para ser aprovado e se associar � Mensa, � preciso fazer mais de 130 pontos no teste de QI — a m�dia no Brasil � de pouco mais de 83 pontos, segundo os cientistas Richard Lynn e David Becker, no livro The Intelligence of Nations (A Intelig�ncia das Na��es, em tradu��o livre), de 2019.

Rafael Rocha, 21, diz que o bullying na inf�ncia 'travou' sua intelig�ncia
BBCOutro candidato, Rafael Moreira, de 35 anos, foi parar naquela prova um pouco por acaso. O profissional de tecnologia est� investigando se tem transtorno do d�ficit de aten��o com hiperatividade (TDAH) e, durante uma avalia��o neuropsicol�gica, um dos testes constatou que ele tinha alto QI.
Assim, surgiu a possibilidade de que sua falta de concentra��o em diversas atividades seja consequ�ncia n�o do TDAH, mas de uma superdota��o.
"A avalia��o neuropsicol�gica nem era sobre QI. O objetivo era para tratamento psicol�gico. A� saiu [o resultado]. Achei estranho, vi o valor e achei alto", diz Moreira, que resolveu fazer mais um teste, dessa vez aplicado pela Mensa.
Os resultados dos testes realizados naquele s�bado seriam comunicados aos candidatos dentro de duas semanas.
N�o existe uma defini��o consolidada para o que s�o pessoas superdotadas, mas esse termo se popularizou para identificar quem tem uma intelig�ncia muito acima da m�dia.
Alguns especialistas argumentam que o racioc�nio l�gico, que � medido pelos testes de QI, n�o deve ser a �nica e pode n�o ser a melhor medida para identificar pessoas muito inteligentes.
Por isso, alguns optam pelo termo “altas habilidades”, usado para apontar quem � fora da curva em mais �reas, como artes, comunica��o e esportes.
As estimativas de quantas pessoas s�o superdotadas tamb�m variam bastante.
A Mensa trabalha com a estimativa de que 2% da popula��o mundial tem alto QI (com resultado igual ou maior que 130 pontos no teste).
Com este percentual, considerando que o Brasil tem 203 milh�es de pessoas, segundo o �ltimo Censo Demogr�fico, haveria cerca de 4 milh�es de brasileiros “superinteligentes” — termo que a Mensa prefere usar.
Mas at� agora, a organiza��o identificou apenas 2,6 mil deles e, por isso, diz que o Brasil � uma “pot�ncia intelectual adormecida”.
Enquanto isso, o Censo Escolar do ano passado apontou que h� 26.815 alunos identificados com altas habilidades ou superdota��o nas escolas do pa�s — o equivalente a 0,5% de todos os estudantes da educa��o b�sica.
Mesmo esse n�mero parece ser subestimado se comparado �s estimativas de outros pa�ses reunidas pela Organiza��o para Com�rcio e Desenvolvimento Econ�mico (OCDE).
Na China, calcula-se que 1 a 3% dos estudantes s�o superdotados. Nos Estados Unidos, entre 1% e 11% dos alunos recebem algum tipo de assist�ncia por superdota��o, a depender do Estado. J� o M�xico informa que 3% dos menores de idade t�m QI alto.
Levando em conta estes percentuais, haveria entre 470 mil e 4,7 milh�es de estudantes superdotados no Brasil — e isso apenas nas escolas, sem contar quem n�o est� nelas.
� frequente na imprensa, em publica��es governamentais e at� em artigos cient�ficos a men��o ao que seria uma estimativa da Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS), de que cerca de 5% da popula��o de todo o mundo teria superdota��o.
Mas a OMS disse � BBC News Brasil que n�o reconhece esse dado e que n�o tem estimativas sobre o percentual de superdotados.
A OCDE alerta que varia bastante, de pa�s para pa�s, os percentuais, os m�todos de c�lculo e a defini��o do que � a superdota��o.

Relat�rio da OCDE encontrou diferentes defini��es e percentuais de superdotados pelo mundo
Getty ImagesDiferente da Mensa, a Associa��o Paulista para Altas Habilidades/Superdota��o (Apahsd) vai al�m do teste de QI e recorre tamb�m a avalia��es com especialistas que analisam se uma pessoa tem alta habilidade em suas �reas — como Biologia, Matem�tica, Artes Pl�sticas, entre outras.
“O teste de QI n�o mede a �rea cultural, art�stica, musical, interpessoal... Ele avalia a �rea cognitiva. � mais um instrumento. N�o � o �nico nem o definitivo”, diz a pedagoga Ada Cristina Toscanini, presidente da Apahsd.
Em uma mat�ria de 2009 da revista New Scientist, o pesquisador David Perkins, da Escola de Educa��o da Universidade de Harvard, argumentou que “um alto QI � como a altura para um jogador de basquete”.
“H� muito mais [necess�rio] para ser um bom jogador de basquete do que ser alto, e h� muito mais para ser um bom pensador do que ter um alto QI.”
A pedagoga Regina Helena Campos, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), est� entre os que dizem que o QI n�o � uma medida absoluta da intelig�ncia.
“O que ele [o teste] faz � apenas avaliar uma determinada caracter�stica em rela��o ao grupo. � uma medida em rela��o ao grupo, n�o � uma medida absoluta. A gente n�o tem uma medida absoluta do que � ser inteligente”, aponta a psic�loga.
Campos reconhece que os estudos da intelig�ncia na Psicologia s�o um campo antigo, f�rtil e consolidado de pesquisa, mas diz que h� aspectos da intelig�ncia dif�ceis de serem quantificados.
“Existe uma intelig�ncia que � de grupo: quando voc� participa de uma atividade coletiva, de uma institui��o de pesquisa, por exemplo, voc� troca informa��o e isso alimenta o outro”, diz ela.
Carlos Eduardo Fonseca, vice-presidente da Mensa Brasil, defende que os testes de QI s�o um crit�rio objetivo para selecionar associados, s�o adotados em diversos pa�ses que t�m boas pr�ticas de educa��o e s�o referendados cientificamente pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) no Brasil.
Fonseca afirma que os testes de QI n�o exigem forma��o avan�ada, por exemplo em C�lculo ou Estat�stica. Pelo contr�rio: muitas vezes eles usam apenas imagens, n�o demandando nem a alfabetiza��o, em alguns casos.
A superdota��o n�o � uma condi��o m�dica e nem um transtorno de neurodesenvolvimento e, sim, uma caracter�stica individual.
A pedagoga Ada Cristina Toscanini, da Apahsd, explica que os cientistas ainda estudam a origem da superdota��o, mas acredita-se que ela pode ser explicada em parte por fatores gen�ticos e em parte por fatores ambientais, como h�bitos, cria��o e cultura.
“Em escolas p�blicas, j� ouvi professoras perguntando: voc� acha que vai achar superdotados aqui? E encontramos. A alta habilidade n�o escolhe ra�a, n�o escolhe fam�lia abastada, n�o escolhe nada.”
No ano passado, a BBC News Brasil mostrou as hist�rias de duas crian�as que foram identificadas como superdotadas.
Theo e Nicolle chamaram a aten��o em suas escolas, e seus pais receberam da equipe pedag�gica a orienta��o para fazer consulta com neuropsic�logos. A alta habilidade foi confirmada nos dois casos.
Fonseca, da Mensa Brasil, diz que, quanto mais cedo a superdota��o for detectada, melhor, porque estas pessoas podem ser logo acompanhadas de forma apropriada.
Em caso de desconfian�a de que uma crian�a ou adulto tenha superdota��o, ele indica procurar psic�logos especializados ou neuropsic�logos, ou ainda a rede municipal de educa��o — segundo ele, a principal porta de entrada para a educa��o especial.
Mas h� pais que preferem esperar o momento mais oportuno para verificar se seu filho � superdotado, como a fam�lia da menina Alice, que ficou famosa na internet por falar palavras dif�ceis com 2 anos de idade.
No in�cio de julho, ela, agora com 4 anos, tornou-se apresentadora do quadro “Pequenos G�nios”, do programa Doming�o com Huck, na TV Globo.
No quadro, crian�as com altas habilidades, distribu�das em oito equipes, competem em desafios de Matem�tica, mem�ria e racioc�nio. A equipe vencedora ganhar� um pr�mio em dinheiro que pode chegar a R$ 50 mil.
“Entendemos que o diagn�stico de altas habilidades pode ser ben�fico em muitos casos, mas at� este momento n�o sentimos que seja necess�rio para o caso da Alice”, diz a m�e de Alice, Morgana Secco, � BBC News Brasil.
"Ter uma poss�vel confirma��o de altas habilidades n�o mudaria a nossa condu��o na educa��o dela e acarretaria um r�tulo que pode ser pesado de carregar. Talvez quando ela entrar na escola e se sentirmos necessidade, procuraremos especialistas, mas por enquanto seguiremos assim."

Profissionais de psicologia s�o os �nicos habilitados a aplicar testes de intelig�ncia no Brasil
Getty Images'Cuidado com a press�o'
Toscanini avalia que, no Brasil, a busca por superdotados est� chegando “muito tarde” e, muitas vezes, a superdota��o � confundida com hiperatividade, d�ficit de aten��o, dist�rbio desafiador opositor e autismo
Por outro lado, a pedagoga Regina Helena Campos avalia que a falta de identifica��o se deve em parte a problemas mais urgentes da educa��o no Brasil.
"O problema, para a gente, � incluir todo mundo [primeiro]", diz.
Os profissionais formados em psicologia s�o os �nicos autorizados a fazer testes de intelig�ncia no pa�s.
Tanto a Mensa quanto a Aspadh cobram pelos testes para detectar altas habilidades e por atividades de acompanhamento posteriores, ap�s a detec��o — por exemplo, encontros para estimular tais habilidades ou orienta��es sobre como lidar com a escola e os colegas.
A inscri��o no teste da Mensa custa R$ 98, e os membros pagam R$ 133 de anuidade. A Apahsd n�o divulgou os valores cobrados e diz que oferece isen��es para crian�as de baixa renda.
Os testes da Mensa s�o apenas para maiores de 17 anos. Para crian�as e adolescentes mais novos, a fam�lia deve realizar � parte testes com um psicol�go e depois apresentar os resultados � organiza��o.
Fonseca afirma que o acompanhamento e os encontros organizados pela Mensa buscam acolher apropriadamente pessoas identificadas com alto QI e alerta que � preciso cuidado, no caso das crian�as, com a press�o.
“Pessoas com alto QI t�m normalmente uma press�o grande por resultados, os pais enchem de expectativas”, alerta Fonseca, que foi identificado com um alto QI aos 35 anos.
“Muita fam�lia que chega nesse universo da superdota��o e do alto QI fica um pouco deslumbrada. A gente tem que ter cuidado com esse perfil. V� ensinar o seu filho, d� muito conte�do para ele, para estimular o potencial dele, mas fique atento �s quest�es da crian�a, aos limites [da sobrecarga].”
A Lei de Diretrizes e Bases da Educa��o Nacional (LDB) inclui alunos com “altas habilidades ou superdota��o” — sem definir ou diferenciar os dois termos — no grupo daqueles que t�m direito � educa��o especial, assim como alunos com defici�ncia e transtornos globais do desenvolvimento.

Algumas entidades, como a Apahsd, consideram formas variadas de intelig�ncia %u2014 indo al�m do racioc�nio l�gico
Getty ImagesNas escolas p�blicas e privadas, n�o � preciso fazer um teste de QI ou ser avaliado por especialistas para confirmar a superdota��o e receber assist�ncia especial — como a complementa��o de atividades e a acelera��o no progresso das s�ries.
A equipe pedag�gica pode apontar as altas habilidades por conta pr�pria, explica a psic�loga Cristina Delou, presidente do Conselho Brasileiro para Superdota��o (ConBraSD), uma organiza��o nacional sem fins lucrativos dedicada � defesa dos direitos dos superdotados.
“Quando a escola tem consci�ncia que o aluno tem compet�ncias acima da classe onde est� e que ele est� sofrendo, porque n�o tem desafio ali, a escola faz o movimento da acelera��o de estudos. Mas n�o � toda escola que faz isso”, diz Delou.
Uma altera��o na LDB de 2015 previu a cria��o de um “cadastro nacional de alunos com altas habilidades ou superdota��o matriculados na educa��o b�sica e na educa��o superior”. At� hoje, o cadastro n�o saiu do papel.
A BBC News Brasil procurou o Minist�rio da Educa��o para saber se h� planos e prazos para implementar o cadastro nacional, mas a pasta n�o respondeu essa quest�o.
O �rg�o afirmou apenas que, “no tocante �s pessoas com altas habilidades/superdota��o, esse Minist�rio torna p�blico o seu compromisso em romper com a invisibilidade hist�rica, desse p�blico, nas pol�ticas de educa��o.”
Carlos Eduardo Fonseca, da Mensa Brasil, diz que as pol�ticas p�blicas para identificar superdotados est�o defasadas.
“Onde est� o erro? Na minha opini�o, come�a na identifica��o. N�o tem investiga��o, n�o tem est�mulo a um pai, uma m�e, uma escola entender qual o volume da popula��o de superdotados ali dentro de um munic�pio, dentro do Estado e do pa�s", afirma Fonseca.
Ele diz que outro exemplo disso � que faltam nas universidades programas para indiv�duos com QI alto.
“A gente n�o tem nada otimizado para eles. Nunca ouvi falar de ningu�m que acelerou os estudos numa universidade. A educa��o brasileira n�o est� preocupada em identificar as pessoas com alto QI.”
Rafael Rocha diz que sofreu muito bullying na escola por ter uma intelig�ncia acima da m�dia.
Isso � bastante comum, explicam especialistas, com pessoas que s�o superdotadas mas n�o foram identificadas como tais, porque h� um desencaixe em rela��o � turma que pode gerar conflitos e estranhamento.
“No come�o, eu era rejeitado pelas outras crian�as. Depois, eu me enturmei, e depois fui rejeitado de novo. Minha intelig�ncia ficou travada por muitos anos por conta de bullying na inf�ncia”, diz Rocha.

Rafael Moreira, 35, foi parar no teste da Mensa em meio � investiga��o sobre transtorno do d�ficit de aten��o com hiperatividade (TDAH)
BBCDas tr�s pessoas que fizeram o teste de QI da Mensa, ele foi o �nico aprovado.
Rocha diz que espera que, como membro da Mensa, algumas portas se abram, por exemplo, bolsas de estudos no exterior — onde ele diz que sempre quis morar, principalmente nos Estados Unidos ou na Europa: "� o meu sonho."
J� Rafael Moreira n�o passou no teste e diz que ainda est� pensando se vai tentar de novo.
"N�o fiquei chateado, levei de boa", diz Moreira. "As m�tricas sobre intelig�ncia s�o um assunto novo para mim, mas eu acredito que � um indicativo de predisposi��o e n�o um fator qualitativo para comparar as pessoas.”
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