'Deixei de ter um filho presente e carinhoso para ter um que se isola e se rebela', lamenta m�e; pesquisa de Harvard mostra elo entre sa�de mental de pais e adolescentes
Ana � professora de ensino m�dio, mas a proximidade que ela tem com os alunos adolescentes foi de pouca serventia para quando seu pr�prio filho entrou nessa fase da vida. O uso intenso de telas e os questionamentos comuns a essa faixa et�ria t�m tornado muito dif�cil a conviv�ncia de m�e e filho, hoje com 14 anos.
“Deixei de ter o papel da m�e que brinca. Deixei de ter um filho presente e carinhoso para ter um que se isola e se rebela. Ter os limites testados o tempo todo � algo que esgota muito”, diz ela, que � divorciada.
Ana afirma que n�o tem com quem compartilhar ou desabafar as ang�stias. O dif�cil, diz, � sentir que “voc� deixa de ser algu�m que tenha alguma prioridade na vida dele (filho) para ficar escanteada, s� servir para pagar contas”.
As mudan�as sociais e hormonais t�picas da adolesc�ncia, somadas ao isolamento da pandemia de covid-19 e aos efeitos das redes sociais, ampliaram as discuss�es sobre depress�o e ansiedade nos adolescentes nos �ltimos anos.
Mas o debate costuma deixar de lado um ponto crucial: os problemas de sa�de mental que afetam tamb�m pais e m�es desses jovens. E mais: como a sa�de mental das duas faixas et�rias — pais e adolescentes — est� interconectada.
'Hist�ria ignorada'

M�es e pais sofrem de depress�o e ansiedade em n�veis semelhantes aos de adolescentes, mas problema costuma ser ignorado
Getty ImagesEm dezembro de 2022, duas pesquisas feitas nos EUA pela Universidade Harvard — uma com jovens e outra com pais e cuidadores — identificaram que os pais e os adolescentes sofrem com �ndices parecidos de problemas de sa�de mental.
Enquanto 18% dos adolescentes diziam sofrer de ansiedade, o mesmo valia para 20% das m�es e 15% dos pais.
J� a depress�o afetava 15% dos adolescentes e, ao mesmo tempo, 16% das m�es e 10% dos pais.
Isso n�o quer dizer que eles experimentavam momentos de tristeza, que � um sentimento normal. Mas sim que tinham “pouco interesse ou prazer nas suas atividades” e se sentiam “mal, deprimidos ou desesperan�osos” mais da metade do tempo — ou seja, em n�veis considerados alarmantes pelos especialistas.
Outro dado preocupante: a pesquisa estima que um ter�o dos adolescentes americanos tenha ao menos um dos pais sofrendo de ansiedade ou depress�o. E 40% desses jovens se diziam preocupados com o estado mental de seus pais.
“Um relato amplamente ignorado � o das pessoas centrais na vida dos adolescentes: seus pais e cuidadores. A sa�de emocional de pais e de adolescentes � profundamente interconectada (...). T�o importante quanto soar o alarme sobre a sa�de mental dos adolescentes � faz�-lo com a sa�de mental dos pais”, diz o estudo, parte do projeto Making Caring Common (MCC, ou “popularizando o cuidado”, em tradu��o livre), da Faculdade de Educa��o de Harvard.
“Pais e adolescentes depressivos ou ansiosos podem inflamar e ferir uns aos outros de muitas formas. E nossos dados indicam que adolescentes deprimidos t�m cinco vezes mais chance de ter um pai ou m�e deprimido”, agrega o relat�rio.
'Voc� � t�o feliz quanto seu filho menos feliz'
Mas qual � o ponto de partida desses problemas de sa�de mental que retroalimentam duas gera��es?
A depress�o pode come�ar tanto nos pais como no adolescente, diz � BBC News Brasil Richard Weissbourd, diretor do MCC em Harvard e coautor da pesquisa.
“Ocorre em ambos os sentidos. Existe aquela express�o que diz ‘voc� � t�o feliz quanto seu filho menos feliz’. E ter um adolescente deprimido ou muito ansioso costuma ser desgastante e contribuir para que voc� pr�prio tenha ansiedade e depress�o”, ele explica.
“Mas se voc� � um adolescente que convive com um pai depressivo, retra�do, cr�tico e raivoso — h� pais que gerenciam bem sua depress�o, mas h� aqueles que n�o conseguem —, pode sentir que seus pais n�o te amam e est�o decepcionados com voc�. E isso realmente afeta a autoestima, porque voc� acha que os humores dos pais s�o culpa sua.”
Al�m disso, em uma idade em que naturalmente adolescentes buscam seu pr�prio espa�o e autonomia, desafiando limites, estes �ltimos costumam naturalmente se sentir mais desconectados — e preocupados — com os filhos, mas sem saber a quem recorrer. � um dos motivos por que pais dessa faixa et�ria est�o entre os mais vulner�veis a problemas de sa�de mental.
“Muitos pais sofrem porque est�o solit�rios. Eles receberam muito pouca aten��o (das pol�ticas p�blicas). Realmente acho que eles est�o sendo negligenciados”, diz Weissbourd, apontando que esses pais vinham deprimindo em mais intensidade mesmo antes da pandemia de covid-19.

Uso intenso de telas � um dos desafios de pais de adolescentes
Getty ImagesBrasil: 'sa�de mental fr�gil'
No Brasil, levantamento recente do Panorama da Sa�de Mental aponta que jovens entre 16 e 24 anos est�o entre os mais afetados por problemas como baixa autoestima, desinteresse pelas atividades cotidianas e conflitos familiares.
Em 2021, pesquisa da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) j� havia identificado que 36% dos jovens apresentavam sinais de depress�o ou ansiedade.
Embora fosse o retrato de um per�odo particularmente dif�cil de estresse e isolamento durante a pandemia, corroborava a exist�ncia de um problema mais amplo: “a sa�de mental da popula��o em geral est� muito fr�gil”, diz � BBC News Brasil Guilherme Polanczyk, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Cl�nicas da FMUSP.
Os motivos por tr�s desse quadro s�o complexos, mas incluem, no Brasil, um contexto de mais sensa��o de solid�o e viol�ncia na vida urbana e tamb�m uma vulnerabilidade socioecon�mica em grande parte da popula��o.
“No Instituto de Psiquiatria, a gente atende pessoas de baixa renda e v� situa��es em que a fam�lia n�o sabe se vai haver comida para a pr�xima refei��o. Ent�o nesse contexto de estresse enorme, de viol�ncia, � muito dif�cil falar ‘senta com seu filho e conversa com ele, isso vai melhorar sua sa�de mental’”, aponta Polanczyk.
Mesmo em circunst�ncias menos extremas, adolescentes costumam se distanciar dos pais nessa etapa — com o agravante, nos tempos atuais, da liga��o dos jovens com eletr�nicos e redes sociais.
� esse o principal desafio da professora Ana, cujo depoimento abriu esta reportagem.
“Sei que a adolesc�ncia � uma fase natural, todos passamos por nossas diverg�ncias com nossos pais e tentamos construir nossos espa�os. Essa parte eu at� entendo. Mas a parte da tecnologia tem sido muito dif�cil de controlar”, diz.
“A nossa gera��o n�o tinha essa necessidade de estar em constante contato com jogos, computadores. Se pe�o para o meu filho lavar a lou�a, ele logo diz que se cansa e que quer conversar com os amigos no celular. Qualquer atividade s� interessa se tiver o est�mulo constante de um v�deo de TikTok”, lamenta.
Depoimentos parecidos abundam entre as mais de 10 mil participantes do grupo de Facebook “M�es de Adolescentes e Pr�-adolescentes”. Muitas se queixam da sensa��o de terem perdido a conex�o com filhos que, at� pouco anos antes, eram crian�as pr�ximas e carinhosas.
Ros�ngela Casseano, que � m�e e psic�loga, criou o grupo no Facebook quando o pr�prio filho virou pr�-adolescente. Ela sentia que havia poucos espa�os para m�es desabafarem e pedirem conselhos sem se sentirem julgadas e culpabilizadas.
“� muito verdade que existe essa sensa��o de isolamento. As m�es t�m medo de contar o que est�o passando com seus filhos adolescentes porque n�o querem ouvir cr�ticas de que ‘n�o souberam educar’”, diz Casseano.
Mas a psic�loga acha que, no que diz respeito � rela��o entre m�es e filhos, as tens�es de hoje s�o parecidas �s de gera��es anteriores.
“Isso de os jovens buscarem seu espa�o sempre aconteceu. A novidade de agora � o instrumento (a internet e as telas). Faz parte do desenvolvimento do adolescente esse afastamento. S� que os pais ficam muito assustados em ver os filhos no computador, sem interagir com a fam�lia.”
Um ajuda o outro
Apesar de tudo isso, os especialistas dizem que h� muito o que pais e filhos podem fazer para se ajudar mutuamente a sair do ciclo nocivo � sa�de mental.
E o primeiro passo, diz Weissbourd, � conversar — algo crucial, embora nem sempre f�cil.
Mas talvez surpreenda os pais saber que os pr�prios adolescentes desejam serem ouvidos.
Dos jovens entrevistados na pesquisa de Harvard, 40% diziam ansiar por seus pais “perguntarem mais como eles est�o — e realmente escutarem”.
Mesmo que os pais estejam passando por depress�o e ansiedade, “ajuda muito quando eles conseguem compartilhar esses sentimentos com seus filhos e dizer 'n�o � culpa sua'", explica o pesquisador de Harvard.
“E os adolescentes de hoje est�o muito mais conscientes, t�m um vocabul�rio psicol�gico mais amplo do que em qualquer outra �poca da hist�ria e n�o sentem tanto o estigma que cercava a sa�de mental”.
“H� estudos que mostram que fazer uma refei��o por dia em fam�lia j� melhora os sintomas depressivos. (Mas) uma refei��o sem eletr�nicos, em que os pais possam conversar com os filhos”, aponta Guilherme Polanczyk, da USP.
“Gosto de propor �s m�es que tenham um tempo com seus filhos. E isso n�o precisa ser uma viagem � Disney e nem mesmo um fim de semana inteiro. Pode ser uma caminhada, uma ida � padaria, algo que d� um tempo de qualidade, sendo ouvinte, com afeto”, diz Ros�ngela Casseano.
Outras quest�es cruciais s�o, segundo especialistas, cuidar do sono — cujo d�ficit � fortemente associado a problemas de sa�de mental, especialmente entre adolescentes — e cultivar h�bitos em fam�lia.
“Pais podem ajudar na ansiedade e depress�o dos filhos ao engaj�-los em atividades focadas neles mesmos ou em outras pessoas, atreladas a princ�pios e objetivos maiores que eles pr�prios — algo que � uma fonte rica de significado e prop�sito”, diz o relat�rio de Harvard.
E, � claro, a ajuda m�dica pode ser fundamental se sinais de depress�o e ansiedade persistirem.
“Muitas vezes isso se resolve com aconselhamento (profissional), uma psicoterapia em grupo, e eventualmente com tratamento medicamentoso pontual. Quando (o transtorno) � identificado precocemente, � absolutamente trat�vel, e as pessoas vivem muito bem”, afirma Polanczyk.

Especialista recomendam medidas como cuidado com sono e cultivar h�bitos em fam�lia
Getty ImagesComponente gen�tico e inf�ncia respeitosa
H� tamb�m outros dois fatores importantes a se prestar aten��o, segundo os especialistas.
O primeiro � que existe um componente gen�tico nos transtornos mentais. Esse � um dos mecanismos pelos quais ansiedade e depress�o afetam pais e filhos ao mesmo tempo, aponta o psiquiatra da USP.
Esse fator gen�tico, ali�s, fez a fot�grafa paulista Andreia tremer quando o filho mais velho, ent�o com 15 anos, disse a ela que “n�o estava com vontade de viver, n�o estava feliz e n�o queria decepcion�-la”.
O motivo que mais a preocupou � que, uma d�cada antes, o pai do menino havia se afundado na depress�o e se suicidado.
“Tive muito medo de perder o meu filho da mesma forma”, ela conta.
Ao mesmo tempo em que marcou todos profundamente, a experi�ncia traum�tica fez a fam�lia ter consci�ncia da import�ncia em prestar aten��o a sinais de depress�o uns nos outros. O filho de Andreia passou por terapia — pela segunda vez, j� que havia sido tratado depois da morte do pai — e hoje est� bem.
Em segundo lugar, outro fator importante destacado por especialistas � manter uma rela��o respeitosa e n�o violenta com as crian�as desde a inf�ncia. Tudo o que ela vive em seus primeiros anos de vida servir� como base para a sa�de mental futura, tanto na adolesc�ncia quanto na vida adulta.
“As experi�ncias na inf�ncia marcam — elas influenciam como o c�rebro se desenvolve e como, do ponto de vista emocional, aquele indiv�duo vai se desenvolver”, afirma Polanczyk. “Situa��es de abuso f�sico e emocional geram um estresse grande, que de fato leva a transtornos mentais”.
Por fim, Weissbourd, de Harvard, lembra que a adolesc�ncia � uma fase turbulenta, mas tamb�m enriquecedora.
“Aqui nos EUA, as pessoas tendem a ter medo, a serem t�o negativas com adolescentes, como se fossem criaturas de outra tribo — mas acho que h� tantas coisas interessantes neles”, afirma o pesquisador.
“Muito da raiva, da frustra��o e da tristeza que eles expressam � uma resposta apropriada a coisas dif�ceis na vida e no mundo. E os adolescentes est�o hoje muito conscientes sobre o que acontece no mundo, e muitos s�o bastante comprometidos moralmente, incorporam causas com muita paix�o. Eles nos questionam e nos criticam, o que � muito dif�cil, mas tamb�m � algo bom de muitas formas. Ent�o tamb�m h� muitas coisas empolgantes em se criar um adolescente.”
*Para comentar, fa�a seu login ou assine