Médicos transportam órgão para doação

O sistema de distribui��o e fila � totalmente p�blico no Brasil e mais de 90% das cirurgias s�o feitas pelo SUS

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O apresentador Fausto Silva, o Faust�o, entrou na fila de espera por um transplante de cora��o ap�s seu quadro de insufici�ncia card�aca se agravar.

Aos 73 anos, ele est� internado desde o dia 5 de agosto no Hospital Albert Einstein, em S�o Paulo.

Al�m de Faust�o, mais de 65 mil brasileiros est�o � espera por um transplante no pa�s atualmente, segundo o Minist�rio da Sa�de. Destes, cerca de 380 aguardam por um cora��o.

O Brasil tem uma das maiores filas do mundo, mas tamb�m criou e mant�m o maior sistema p�blico de transplantes.

O pa�s � o segundo que mais realiza esse tipo de procedimento, atr�s apenas dos Estados Unidos, que � privado.

Em 2022, foram quase 26 mil cirurgias de transplante no Brasil, entre os quais 359 de cora��o.

As mais comuns foram de c�rnea (13,98 mil), rim (5,3 mil) e medula �ssea (3,99 mil), segundo a Associa��o Brasileira de Transplantes de �rg�os (ABTO).

O pa�s tem ainda mais de 600 hospitais autorizados a fazer transplantes.

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que o sistema brasileiro � bastante completo e funciona bem, servindo inclusive de modelo para outros pa�ses.

"O sistema de transplantes brasileiros � reconhecido internacionalmente por ser inteiramente p�blico e oferecer servi�os em um pa�s gigantesco e muito povoado", diz Alcindo Ferla, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em sa�de p�blica.

"Al�m disso, tamb�m � reconhecido pela qualidade t�cnica e das pol�ticas p�blicas envolvidas."

Ainda assim, precisa de mais recursos financeiros para se tornar mais eficiente e menos desigual, diz o m�dico Leonardo Borges de Barros e Silva, coordenador da Organiza��o de Procura de �rg�os do Hospital das Cl�nicas da Faculdade de Medicina da Universidade de S�o Paulo (HCFMUSP).

"O processo de doa��o e transplante no Brasil � excelente, especialmente quando comparado a outras partes do Sistema �nico de Sa�de [SUS]. Mas, como todo o sistema, est� subfinanciado e h� desigualdade", diz.

"A espera por um �rg�o pode variar conforme o Estado do Brasil em que o paciente est�. Os �ndices de doa��o tamb�m variam muito entre as regi�es do pa�s."

Segundo os especialistas, o principal gargalo para aumentar a efici�ncia est� no momento da doa��o: muitas fam�lias ainda hesitam em permitir a doa��o ap�s o falecimento e nem sempre h� equipes hospitalares totalmente preparadas para lidar com o momento.

Como funciona o sistema

O primeiro transplante no Brasil foi realizado em 1968, mas o sistema brasileiro como conhecemos hoje s� foi criado muito depois, em 1997.

Ele foi inspirado, entre outros, no modelo da Espanha, considerado um dos mais eficientes do mundo.

O atual sistema � regulamentado pela Lei 9.434 de 1997.

A norma estabelece, entre outras coisas, a exist�ncia de dois tipos de doador: o vivo e o falecido.

No caso do doador vivo, podem ser cedidos um dos rins, parte do f�gado, parte dos pulm�es ou parte da medula �ssea.

Nestes casos, a legisla��o brasileira permite que c�njuges e parentes de at� quarto grau sejam doadores.

Para pessoas que n�o s�o parentes, a doa��o s� � poss�vel com autoriza��o judicial.

No caso de doador falecido, tecidos, �rg�os ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento s� podem ser retirados ap�s o diagn�stico de morte cerebral e com autoriza��o da fam�lia.

Um doador falecido ap�s morte cerebral que n�o tenha sofrido parada cardiorrespirat�ria pode doar cora��o, bem como pulm�es, f�gado, p�ncreas, intestino, rins, c�rnea, vasos, pele, ossos e tend�es.

Ap�s a avalia��o dos �rg�os ou tecidos, as comiss�es dos hospitais cadastram dados relativos �s partes do corpo em um programa informatizado que combina essas informa��es com os dados de poss�veis receptores.


Fausto Silva, o Faustão

O apresentador Fausto Silva, o Faust�o, entrou na fila de espera por um transplante de cora��o

Renato Pizzutto/Band

J� os pacientes s�o separados de acordo com o �rg�o que ser� transplantado, tipos sangu�neos e outras especifica��es t�cnicas, como peso e altura.

Na hora de combinar o �rg�o com o receptor, leva-se em conta a posi��o na lista �nica, mas tamb�m esses crit�rios.

"Pacientes em estado cr�tico podem ser atendidos com prioridade, em raz�o de sua condi��o cl�nica", explica o Minist�rio da Sa�de em nota.

Esse sistema computadorizado � de responsabilidade do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) e gerenciado pela Central de Transplantes de cada Estado.

H� tamb�m outras entidades envolvidas no processo de identifica��o e distribui��o dos �rg�os, tais quais as Organiza��es de Procura de �rg�os (OPO) e os Bancos de �rg�os e Tecidos.

Ap�s identificado um receptor, o �rg�o � enviado pela Central de Transplantes ao hospital onde est� o paciente para que seja implantado pela equipe transplantadora que acompanha a situa��o cl�nica.

Em geral, esses processos n�o levam mais do que algumas horas e, apesar de na maioria das vezes o transporte ser realizado por terra, em casos de mais urg�ncia podem ser usados helic�pteros ou avi�es.

Nesses casos, h� colabora��o da For�a A�rea ou de companhias a�reas privadas que possuem conv�nio com o governo para transporte gratuito de equipes e �rg�os em voos comerciais.

Um cora��o pode demorar no m�ximo quatro horas para ser transplantado ap�s a retirada do corpo do doador. Em contrapartida, um pulm�o ou um f�gado podem esperar at� seis horas.

Cirurgia de transplante do coração

Corrida contra o tempo: um cora��o pode demorar no m�ximo quatro horas para ser transplantado ap�s a retirada do corpo do doador

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Como chefe da OPO do Hospital das Cl�nicas, Leonardo Borges de Barros e Silva explica que h� muitas etapas e pequenos entraves no processo que muitas vezes n�o s�o de conhecimento p�blico.

"A pessoa que se inscreveu h� mais tempo para transplante vai estar no come�o da fila. Mas h� outros crit�rios que incidem no processo, como compatibilidade – no caso do rim se leva em considera��o quest�es imunol�gicas gen�ticas, por exemplo – tamanho, peso e altura do doador e estado de sa�de do receptor", diz.

"Se o primeiro da fila est� com covid, por exemplo, ele n�o poder� receber o �rg�o, e o sistema vai buscar o pr�ximo mais compat�vel."

Os �rg�os geralmente s�o destinados a receptores em uma mesma regi�o, j� que h� pouco tempo para transporte. Mas Barros e Silva explica que, por vezes, h� transporte entre Estados.

"Existem casos de prioriza��o nacional, determinados pelo sistema", diz.

"Mas tamb�m h� casos de Estados que n�o realizam alguns procedimentos, como transplante de cora��o, e a equipe de outra regi�o precisa ir at� l� retirar o �rg�o e transport�-lo".

Para Alcindo Ferla, um dos maiores trunfos do sistema brasileiro � sua transpar�ncia e justi�a.

"Nenhum m�dico ou autoridade pode decidir nada sozinho no processo, seja no momento da doa��o ou do transplante", diz.

"E fatores como condi��es econ�micas tampouco importam, todos t�m que esperar sua vez seguindo os mesmos crit�rios".

Qualquer cidad�o tamb�m pode acompanhar a lista �nica de espera e ter acesso aos crit�ios de prioridade pelo site do Sistema Nacional de Transplantes ou das secretarias estaduais de sa�de.

Custos e manuten��o

O sistema de distribui��o e organiza��o da lista de espera � totalmente p�blico no Brasil, e mais de 90% das cirurgias s�o feitas pelo SUS. Os pacientes recebem toda a assist�ncia, incluindo exames preparat�rios, cirurgia, acompanhamento e medicamentos p�s-transplante

A maioria dos planos privados de sa�de n�o cobre este tipo de tratamento, cujo custo pode variar de R$ 4 mil a R$ 70 mil.

No caso do SUS, o financiamento v�m do Minist�rio da Sa�de e � gerenciado pela Coordena��o-Geral do Sistema Nacional de Transplantes (CGSNT), um �rg�o da pasta.

Para este ano, o investimento previsto no sistema � de R$ 1,33 bilh�o, ante R$ 1,06 bilh�o gasto no ano passado – um aumento de 31%.

Mas Eraldo Moura, coordenador do Sistema Estadual de Transplantes da Bahia, explica que esse n�o � todo o financiamento dispon�vel.

"Na Bahia, por exemplo, temos um cofinanciamento estadual para um programa de incentivo ao transplante e � doa��o de org�os, al�m dos aportes do Minist�rio da Sa�de", diz.

Al�m disso, o processo da cirurgia e o acompanhamento ap�s o procedimento tamb�m contam com a participa��o e o financiamento dos Estados. A responsabilidade pela forma��o dos profissionais especializados tamb�m � dividida.


Homem em cama de hospital

Homem em cama de hospital

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Desigualdade e efici�ncia

Mas apesar de ser refer�ncia em termos de atendimento gratuito e justo, especialistas fazem cr�ticas � efici�ncia do processo de busca de doadores e concretiza��o da doa��o.

O Brasil tem atualmente 13,8 doadores efetivos para cada 1 milh�o de habitantes.

Para efeito de compara��o, Estados Unidos e Espanha, os dois pa�ses com melhores �ndices, tem respectivamente 41,6 e 40,8 doadores efetivos para cada 1 milh�o, segundo os dados mais recentes do Registro Internacional de Doa��o e Transplante de �rg�os.

Em contrapartida, o Brasil est� na frente de outros pa�ses desenvolvidos, como Alemanha, Israel e Coreia do Sul.

"Precisamos melhorar em termos de financiamento, n�o s� para o processo em si, mas tamb�m para a forma��o de profissionais mais especializados e para a produ��o de conhecimento e pesquisa cient�fica sobre o tema", diz Alcindo Ferla, da UFRGS.

Segundo o pesquisador, a popula��o brasileira ainda n�o � t�o envolvida com a doa��o de �rg�os como a de outros pa�ses, o que influencia muito no tamanho da fila de espera no pa�s.

Al�m disso, falta forma��o de profissionais totalmente preparados para lidar com as fam�lias de poss�veis doadores em todo o territ�rio brasileiro, diz.

"A mobiliza��o da sociedade em torno desse tema � um fator importante. Criar uma cultura de doa��o entre a popula��o e colocar o tema na agenda p�blica de debate."

"A expectativa de algum familiar receber um �rg�o se houver necessidade em algum momento precisa ter como contrapartida a disponibilidade de fazer a doa��o e de se envolver mais", diz.


Gráfico de barras mostra o número de doadores efetivos por milhão de habitantes em países selecionados em 2021

Gr�fico de barras mostra o n�mero de doadores efetivos por milh�o de habitantes em pa�ses selecionados em 2021

BBC

Analistas consultados pela BBC News Brasil afirmam ainda que, apesar de o sistema brasileiro ser totalmente p�blico, a desigualdade regional ainda � uma realidade.

"O sistema nacional de transplantes � um reflexo da realidade do pa�s. Os Estados com menor IDH ou PIB per capita s�o os que t�m mais dificuldade com doa��o e transplante tamb�m", diz Barros e Silva, do HCFMUSP.

Os Estados com maior n�mero de transplantes por habitante s�o Paran�, S�o Paulo e Santa Catarina, segundo dados da ABTO. J� os com o menor n�mero s�o Roraima, Alagoas e Maranh�o.

Enquanto no Paran� foram realizados 40,4 transplantes por milh�o de habitantes em 2022, em Rond�nia, a m�dia foi de 2,2 procedimentos por milh�o.


Gráfico de barras mostra número de doadores efetivos por milhão de habitantes nas regiões do Brasil, em 2022

Gr�fico de barras mostra n�mero de doadores efetivos por milh�o de habitantes nas regi�es do Brasil, em 2022

BBC

O maior vs. o mais eficiente

O maior sistema de transplantes do mundo � atualmente o dos Estados Unidos.

O pa�s realizou mais de 42 mil procedimentos em 2022, segundo o governo americano.

O sistema, por�m, n�o � p�blico. Em geral, o receptor do �rg�o ou seu conv�nio m�dico devem pagar pelo procedimento, enquanto a fam�lia do doador n�o � cobrada.

Apesar de os Estados Unidos serem o pa�s que mais realiza transplantes todos os anos, o modelo americano � bastante criticado internamente.

Atualmente, 104 mil pessoas est�o em listas de espera, e 17 pessoas morrem todos os dias � espera de um transplante, segundo a Rede Unida para o Compartilhamento de �rg�os, uma organiza��o ligada ao Departamento de Sa�de e que controla o sistema.

Cr�ticos afirmam que a gest�o da institui��o n�o � eficaz e que pacientes pobres e de minorias raciais s�o menos beneficiados pelo sistema.


Hospital em Madri, na Espanha

O sistema espanhol � considerado por especialistas como o mais eficiente

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J� o sistema espanhol � considerado por especialistas como o mais eficiente.

Os procedimentos s�o realizados pelo sistema p�blico de sa�de de forma gratuita.

Mas diferente do Brasil, na Espanha todos os cidad�os pagam taxas peri�dicas de seguridade social que garantem seu acesso � sa�de p�blica.

Outro ponto que diferencia o sistema � a forma como as doa��es s�o conduzidas.

Segundo a lei local, todo cidad�o � um potencial doador: as fam�lias podem impedir a doa��o ap�s o falecimento, mas se pressup�e que qualquer espanhol que tiver morte encef�lica e estiver em condi��es de sa�de ter� seus �rg�os doados.

No entanto, o governo diz que n�o � esse modelo que garante o sucesso do sistema, mas sim as medidas de conscientiza��o da popula��o e o desenvolvimento das t�cnicas usadas.

"A Espanha � a grande refer�ncia mundial para forma��o de equipes espec�ficas para entrevistas com familiares de poss�veis doadores", diz Eraldo Moura.

"Mas independentemente de qualquer coisa, o cidad�o espanhol � pr�-doa��o de �rg�o. Esse tema j� faz parte da cultura local", completa Barros e Silva.

Segundo os especialistas, a implementa��o do modelo espanhol que considera todo cidad�o como doador n�o necessariamente funcionaria no Brasil.

O pa�s, inclusive, testou por um curto per�odo de tempo o chamado consentimento presumido, segundo o qual os �rg�os de uma pessoa falecida s� n�o seriam doados caso houvesse uma manifesta��o clara da fam�lia.

A regra foi determinada pela pr�pria Lei 9.434 de 1997, mas alterada pelo governo federal por meio de uma Medida Provis�ria em outubro de 1998.

"De nada adianta uma lei assim se n�o h� di�logo com a popula��o sobre os verdadeiros prop�sitos e sobre a import�ncia da doa��o", diz Alcindo Ferla.

"Muitas pessoas acreditam que o corpo do ente falecido vai ser profanado ou t�m cren�as religiosas que as impedem de autorizar a doa��o. Essa falta de conhecimento sobre o tema e a falta de equipes especializadas para conversar com as fam�lias s�o os principais gargalos do sistema atualmente."