Alguns dos personagens do livro se tornaram pacientes da psiquiatra por ferir gravemente outras pessoas em ataques psic�ticos
FOLHAPRESS - � preciso um bocado de coragem para tentar compreender o que leva uma pessoa a cometer crimes violentos, em vez de simplesmente classific�-la como algu�m que fez por merecer a condi��o de p�ria. Esse tipo t�o raro de bravura perpassa as p�ginas de "O Mal Que Nos Habita", livro escrito pela psiquiatra Gwen Adshead e pela dramaturga Eileen Horne.
"S� um ter�o dos criminosos violentos satisfaz os crit�rios para psicopatia. Al�m disso, algumas pessoas cometem atos de viol�ncia ‘do nada’, sem nenhuma hist�ria criminal anterior, e esse r�tulo n�o � capaz de explicar o que fizeram, mesmo que seja algo cruel e incomum", disseram as autoras em entrevista � Folha por email. "Infelizmente, a palavra ‘psicopata’ perdeu boa parte de seu sentido com o excesso de uso ou o uso incorreto, inclusive por parte da ind�stria do entretenimento."
Adshead trabalhou durante tr�s d�cadas no Hospital Broadmoor, o mais antigo centro m�dico de seguran�a m�xima do Reino Unido, onde podem ficar serial killers, mas tamb�m autores de crimes menos chocantes com problemas graves de sa�de mental. Al�m disso, ela costuma fazer avalia��es psicol�gicas e ministrar sess�es de terapia a outras pessoas na mira da Justi�a brit�nica.
A experi�ncia direta com esses casos, portanto, n�o falta � psiquiatra, mas os cap�tulos do livro, embora sejam batizados com os nomes de cada paciente, na verdade n�o correspondem a indiv�duos reais —ao menos n�o de forma direta. Por raz�es �ticas e legais, os retratos de cada cap�tulo s�o compostos de m�ltiplas pessoas.
"Usando as habilidades de Eileen como contadora de hist�rias e dramaturga profissional, essa abordagem nos permitiu criar uma esp�cie de escudo entre os casos do livro e as pessoas reais que Gwen tratou", explica a dupla. "Al�m disso, o nosso objetivo era tentar destilar os 30 anos de experi�ncia cl�nica e de pesquisa de Gwen em apenas uma d�zia de hist�rias. Assim, criamos um m�todo que enxergamos como o de um ‘retrato em mosaico’. Por exemplo, ela j� trabalhou com dezenas de ‘stalkers’: a mulher que chamamos de ‘Lydia’ � derivada de uma delas, mas seu nome, apar�ncia e hist�ria pessoal foram alterados, e detalhes de outros casos foram mesclados ao dela. J� as cenas de terapias s�o todas precisas e factuais do ponto de vista cl�nico."
Alguns dos personagens do livro se tornaram pacientes da psiquiatra por ferir gravemente outras pessoas em ataques psic�ticos, por tentar se matar repetidas vezes ateando fogo na pr�pria casa ou ap�s cumprir pena por pedofilia. Em comum, eles podem ser enxergados pelo prisma de complexidade da g�nese dos comportamentos violentos, proposto por Adshead e apelidado por ela de modelo do cadeado de bicicleta.
Assim como � preciso acertar a combina��o de v�rias pe�as do cadeado para abri-lo, compara a m�dica, uma s�rie de fatores —que envolvem quest�es como g�nero, classe social, exposi��o anterior � viol�ncia e detalhes ainda mais espec�ficos de cada trajet�ria de vida— precisa aparecer de forma combinada para que uma pessoa acabe pondo a vida dos outros deliberadamente em risco.
"Os profissionais forenses precisam entender o contexto e o significado que as a��es t�m para os perpetradores", explica Adshead. "� assim que podemos formular um plano para enfrentar os diferentes fatores de risco, que vale para cada pessoa de maneira individual", diz ela.
Apesar das limita��es do "retrato em mosaico", a capacidade das autoras de retratar cada personagem composto como um indiv�duo �nico, algu�m que frequentemente est� envolto numa trag�dia na qual ele � ao mesmo tempo algoz e v�tima, � impressionante. H� hist�rias de transforma��o, embora infelizmente elas n�o sejam a regra. Sabendo o que sabemos hoje sobre como funciona a mente humana e levando em conta a complexidade do "cadeado de bicicleta", ainda � poss�vel fazer essas pessoas retomarem a responsabilidade pelos seus atos e aumentar sua capacidade de control�-los?
"� verdade que muitas dessas pessoas sentem que t�m pouca escolha quando agem de forma violenta. Mas restaurar a sensa��o de controle e responsabilidade de fato � crucial tanto para os que est�o hospitalizados quanto para prisioneiros sem um diagn�stico de doen�a mental. � uma jornada que vai da voz passiva para a ativa, quando a pessoa deixa de falar ‘o crime aconteceu com Fulano’, passa a falar ‘meu crime’ e finalmente reconhece ‘eu � que fiz essa coisa’. Essa capacidade de explorar e entender a pr�pria hist�ria pode fazer a diferen�a."
O Mal Que Nos Habita
Autoras Gwen Adshead e Eileen Horne
Tradu��o Pedro Maia Soares
Editora Companhia das Letras
Quanto R$ 99,90; 392 p�gs.
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