"Aos 15 anos, meus dentes começaram a cair. O diagnóstico veio aos 58"
Após 12 cirurgias nas pernas, o quadro de dores e deformidades de Maria Lúcia foi identificado como raquitismo hipofosfatêmico ligado ao cromossomo X
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Siga noLogo no primeiro ano de vida de Maria Lúcia de Almeida Gomes, seus pais perceberam que algo estava errado: suas pernas começaram a entortar, formando um arco. Aos dois anos de idade, Maria Lúcia iniciou um ciclo doloroso que se estenderia por décadas, visando melhorar as deformidades. “Ao todo, foram 12 cirurgias para tentar corrigir o arqueamento dos membros inferiores, mas, conforme eu crescia, minhas pernas voltavam a entortar. E com isso vinham dores nos fêmures e nos pés”, relembra.
Apesar das cirurgias, Maria Lúcia não encontrava alívio permanente para os sintomas. Passou a maior parte da vida à base de analgésicos e anti-inflamatórios, sem saber a real causa das deformidades, das dores crônicas, da perda dentária precoce — iniciada aos 15 anos — e de uma mandíbula que se deslocava com frequência. O sofrimento físico veio acompanhado de um forte impacto emocional.
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“Além da dificuldade de estudar, trabalhar e tentar levar uma vida minimamente normal em meio a dores constantes, havia vergonha. Imagina, aos 15 anos, já com dentes faltando, enfrentando preconceito e sem nenhuma resposta. Cheguei a tomar mais de dez comprimidos por dia, tentando apenas suportar a dor e, muitas vezes, acabava sobrecarregando os rins”, conta.
Foi apenas aos 58 anos, já aposentada e com a saúde debilitada, que a história começou a mudar. “Procurei uma endocrinologista que se dedicou a investigar meu caso. Ela pediu mais de 50 exames e, depois de quase um ano, veio a confirmação: eu tinha raquitismo hipofosfatêmico ligado ao cromossomo X, ou, XLH”, relata.
Apesar da demora, o diagnóstico permitiu que Maria Lúcia, hoje com 65 anos, recebesse um tratamento adequado, capaz de agir diretamente na causa da doença, controlando os níveis da proteína FGF23 — responsável pela perda de fósforo. “Em poucos meses, minha vida era outra. As dores sumiram e me senti viva de novo. Foi como voltar a ter dignidade após 58 anos”, diz.
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Em 2023, no entanto, ela ficou um longo período sem acesso ao tratamento e os sintomas reapareceram rapidamente. “Foi como voltar à estaca zero. As dores no fêmur e nas costelas retornaram. Atividades rotineiras passaram a ser um desafio — não conseguia mais praticar natação nem tomar banho direito. Limpar a casa se tornou impossível.” Felizmente, com a retomada do uso regular, recuperou a mobilidade e hoje leva uma vida sem dores.
Em sua família, Maria Lúcia não é a única com o diagnóstico. Mais quatro parentes próximos também foram diagnosticados com XLH. “Duas irmãs faleceram, possivelmente por complicações da doença sem tratamento, e um sobrinho, que chegou a depender de cadeira de rodas, hoje anda graças ao diagnóstico precoce e à intervenção correta”, conta.
Qualidade de vida com a doença
O XLH é uma condição genética hereditária rara, causada por uma mutação no gene PHEX, que compromete a regulação do fósforo no organismo. De acordo com a nefrologista pediátrica Maria Helena Vaisbich, há perda de fósforo pela urina e deficiência da vitamina D ativa, o que resulta em níveis baixos de fósforo no sangue. Isso ocorre devido ao aumento do hormônio fosfatonina circulante (FGF23), que em excesso pode provocar diversas alterações funcionais, incluindo cardiopatias, como a hipertrofia do ventrículo esquerdo.
“O fósforo é um mineral essencial para o bom funcionamento do organismo. Ele compõe o ATP, uma molécula que funciona como a principal fonte de energia para as células, além de participar de diversas reações enzimáticas e ter papel fundamental na formação e manutenção de ossos e dentes. Portanto, essa disfunção afeta diretamente a formação e a resistência dos ossos, além de provocar dores importantes, fadiga, fraqueza muscular e alterações nos dentes. É uma doença progressiva que, sem tratamento, gera deformidades, fraturas e compromete seriamente a qualidade de vida”, explica.
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A especialista explica que o diagnóstico é desafiador, visto que muitas vezes o XLH é confundido com outras condições. “Quando a criança começa a andar, já apresenta arqueamento dos membros inferiores e, em geral, é encaminhada ao ortopedista. Se o profissional não estiver familiarizado com a doença, pode adotar um tratamento que não atinge a causa real do problema”, explica.
Apesar dos avanços, o acesso ao tratamento ainda é restrito. Hoje, o Sistema Único de Saúde (SUS) disponibiliza uma opção terapêutica, porém apenas para pacientes com até 18 anos, o que exclui adultos como Maria Lúcia, que precisam recorrer a outros meios para obtenção do tratamento. “A terapia disponível hoje tem melhorado muito a qualidade de vida de pacientes adultos e pediátricos. Não podemos aceitar que pacientes não tenham acesso a um tratamento eficaz, quando ele existe”, ressalta a médica.
Aos 65 anos, Maria Lúcia faz questão de compartilhar sua experiência. “Se eu tivesse recebido o diagnóstico lá atrás, minha história teria sido muito diferente. Mas, mesmo assim, quero que minha experiência sirva para alertar outras pessoas. Dores crônicas e deformidades não devem ser normalizadas. É difícil, mas é possível buscar um diagnóstico e ter mais qualidade de vida”, destaca.
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