
Na semana em que o Brasil ultrapassou a assombrosa marca de 300 mil mortos pelo novo coronav�rus, com milhares de infectados graves sem UTIs para receb�-los, houve algo n�o visto desde 1º de janeiro de 2019: Jair Bolsonaro acuado pelos l�deres pol�ticos aos quais se aliou no Congresso para afastar o risco de impeachment e buscar a reelei��o.
Poucas vezes ele ouviu, desde sua elei��o, reprimenda t�o expl�cita como a do discurso do presidente da C�mara, Arthur Lira, na noite do mesmo dia em que horas antes os titulares dos tr�s poderes da Rep�blica selaram um pacto contra a pandemia com base em vacinas, n�o nas charlatanices do tratamento precoce nem com sabotagens �s medidas de distanciamento social de governadores e prefeitos.
“Como presidente da C�mara dos Deputados, quero deixar claro que n�o ficaremos alienados aqui, votando mat�rias te�ricas como se o mundo real fosse apenas algo que existisse no notici�rio”, disse Lira.
O introito de sua fala destaca a dimens�o da cadeira que ele ocupa, �nica com a prerrogativa constitucional de dar in�cio a um processo de impeachment.
Ex-deputado, Bolsonaro conhece as regras. Seu aviso foi claro. “Estou apertando hoje um sinal amarelo para quem quiser enxergar: n�o vamos continuar aqui votando e seguindo um protocolo legislativo com o compromisso de n�o errar com o pa�s se, fora daqui, erros prim�rios, erros desnecess�rios, erros in�teis, erros que s�o muito menores do que os acertos cometidos continuarem a ser praticados.”
Intercalou gentileza com dureza.
Os rem�dios pol�ticos do Congresso, avisou, “s�o conhecidos e s�o todos amargos. Alguns, fatais. Muitas vezes s�o aplicados quando a espiral de erros de avalia��o se torna uma escala geom�trica incontrol�vel. N�o � essa a inten��o desta Presid�ncia. Preferimos que as atuais anomalias se curem por si, frutos da autocr�tica, do instinto de sobreviv�ncia, da sabedoria, da intelig�ncia emocional e da capacidade pol�tica. Mas alerto que, entre todas as mazelas brasileiras, nenhuma � mais importante do que a pandemia”.
O dado para alguns desconcertante � um discurso de chamada � raz�o de Bolsonaro ter sido feito por um dos pr�ceres do centr�o, a massa amorfa de partidos que apoiam qualquer governo em troca de cargos, verbas e prioridade aos setores econ�micos que representam.
Importa avaliar, na fala de Lira, do Progressistas (ex-PP) de Alagoas, que a situa��o da sa�de � grav�ssima. Ou ele n�o chegaria a tanto.
N�o falou de improviso – personagens relevantes da pol�tica, do mundo empresarial e da alta burocracia foram consultados. E agora?
Povo ama quem o protege
Filiado a partidos do centr�o em seus 28 anos passados na C�mara Federal, a maior parte dos quais na bancada de Lira e do seu aliado senador Ciro Nogueira, presidente do PP, n�o � cr�vel dizer que Bolsonaro foi surpreendido. N�o lhe faltam defeitos, menos o da inoc�ncia. Bolsonaro n�o � um pol�tico tolo, ao contr�rio.
Ao se aproximar do centr�o para afastar o grupo de Rodrigo Maia da dire��o da C�mara, al�m de eleger outro aliado, Rodrigo Pacheco, do mesmo DEM de Maia, para presidir o Senado, Bolsonaro esperava pagar apenas o custo habitual da “velha pol�tica” que dizia odiar.
O que talvez n�o esperasse � que seus excessos na pandemia fossem incomodar at� a nata da pol�tica que exerce o poder h� gera��es.
S� que tudo passa, o mundo gira. Como ensinava o genial florentino Maquiavel, deve-se ver a realidade tal como �, n�o como se deseja que seja. Quem governa deve ser temido pelos advers�rios e amado por quem � o respons�vel pela sua manuten��o no poder, o povo. Ele n�o haver� de amar quem se mostra indiferente com a sua sorte.
Aviso aos ditos liberais
� este o contexto da fala de Lira. Ela teve recados sutis at� aos que vinham aceitando a trama macabra da extrema-direita que cerca o presidente na expectativa das reformas ditas liberais da economia – a raz�o de o ministro Paulo Guedes manter o apoio dos traders do mercado financeiro, apesar de seus p�fios resultados.
“Esta n�o � a casa da privatiza��o, n�o � a casa das reformas, n�o � nem mesmo a casa das leis”, dramatizou o presidente da C�mara. “� a casa do povo brasileiro. E, quando o povo brasileiro est� sob risco, nenhum outro tema ou pauta � mais priorit�rio.” Ou seja: ou chegam juntos ou nada mais passa at� o fim desta legislatura.
O manifesto do centr�o lido por Lira re�ne o sentimento de que n�o h� salva��o pol�tica a ningu�m enquanto vidas continuarem morrendo e sofrendo com a des�dia do Minist�rio da Sa�de; indica tamb�m a percep��o de que Bolsonaro s� serve � extrema-direita, que � muito pequena no eleitorado, al�m de divorciada do nacionalismo militar e advers�ria da direita conservadora representada por tais partidos; e, enfim, perderam o medo dos ataques nas redes sociais promovidos pelos radicais pilotados por assessores palacianos.
Interesses estrat�gicos
Interesses decisivos e estrat�gicos, tanto quanto o risco de que o eleitorado se volte contra eles todos, tamb�m aclaram o �mpeto algo in�dito do centr�o no protagonismo que passou a reivindicar.
N�o � de somenos o pa�s estar alheado das tend�ncias geopol�ticas, pondo em risco o agroneg�cio, dependente de exporta��es � China e Europa, e o pr�-sal, em que China � tamb�m o maior importador de petr�leo e grande investidor.
Nesse cen�rio, dois ministros que representam a face extremista do governo est�o pressionados: Ernesto Ara�jo, de Rela��es Exteriores, e Ricardo Salles, do Meio Ambiente. Bolsonaro j� cedeu na Sa�de, ao trocar o confuso general Pazuello pelo m�dico Marcelo Queiroga, um bolsonarista ma non tropo, se o comit� contra a pandemia, mediado pelo senador Pacheco, articular os governadores e n�o for sabotado. A situa��o � inst�vel e delicada.