
Antes de ser um homem trans, eu sou um homem negro retinto. E infelizmente, diante do racismo de cada dia, por diversas vezes em supermercados e lojas de departamento, j� fui abordado por outros clientes com perguntas como: “Voc� trabalha aqui?”, “� mo�o, onde fica tal produto”.
� importante ressaltar que n�o h� dem�rito em trabalhar nesses estabelecimentos. A grande quest�o aqui � que, para muitas pessoas, meu corpo negro s� pode ocupar determinados espa�os se for para servir. Esse Imagin�rio social racista, que coloca a pessoa negra sempre no papel de subservi�ncia, � um legado direto da escravid�o no Brasil.
“Arthur, tamb�m sou uma pessoa negra e j� passei por isso algumas vezes. O que posso fazer nessas horas?”. Nos �ltimos anos tenho refletido muito sobre isso.
Como j� escrevi nesta coluna, crian�as negras sentem a dor do racismo desde muito cedo. E as humilha��es, persegui��es, constrangimentos e rejei��es por conta do racismo deixam marcas t�o profundas. T�o profundas que consigo lembrar com detalhes da primeira vez que sofri racismo na escola. Tinha no m�ximo 6, 7 anos e, mesmo 30 anos depois, ainda consigo sentir a sensa��o horr�vel naquele momento. Lembro que as professoras na �poca viram tudo e n�o fizeram nada. N�o orientaram a crian�a que reproduziu o racismo, n�o chamaram e nem orientaram as pessoas respons�veis por essa crian�a sobre o assunto, e claro, em nenhum momento me acolheram. Ver adultos que poderiam ter agido, se posicionado e n�o fizeram nada, tamb�m me doeu. Infelizmente, crescemos vendo profissionais da educa��o, vizinhos e parentes escolhendo n�o se posicionar diante de situa��es racistas. De forma inconsciente, essa aus�ncia de a��o refor�ou a ideia de que n�o era poss�vel fazer nada, que n�o dever�amos nos posicionar, que era para aguentar tudo calados e caladas.
Para piorar a situa��o, sempre h� pessoas que se apressam em defender os racistas com frases como: "calma, Arthur, ele n�o quis dizer isso exatamente", "eu sei que voc� se sentiu ofendido, mas se voc� o confrontar, vai criar um clima ruim", "tente levar na brincadeira, Arthur, n�o fa�a um esc�ndalo" ou "Deixa pra l�, Arthur, ele n�o teve m�s inten��es. Se voc� o questionar agora, pode gerar conflito".
Percebem que, geralmente, t�m o mesmo perfil? N�o se preocupam em acolher aqueles que s�o alvo do racismo, mas sempre demonstram muito cuidado e prote��o com aqueles que praticam o racismo. Elas at� pressionam a pessoa que sofreu a agress�o racista para que ela n�o questione nada. � um verdadeiro silenciamento.
Ou seja, no Brasil, quem pratica o racismo � visto por muitas pessoas como algu�m que n�o deve ser contrariado, que n�o deve ser questionado.
Por isso, nos �ltimos anos, como especialista e palestrante em diversidade e inclus�o, e como um homem negro de pele escura, tenho me proposto a n�o mais permitir que pessoas racistas se sintam confort�veis.
Lembra da pergunta que ouvi tantas vezes nos supermercados: "Voc� trabalha aqui?"? Decidi devolver essa pergunta com outra: "Engra�ado, eu estava prestes a te perguntar a mesma coisa. Voc� trabalha aqui? Estou procurando o macarr�o".
Voc�s precisam ver a express�o de surpresa que as pessoas fazem. Essa surpresa � seguida de rea��es irritadas, como: "como assim? Por que voc� est� me perguntando isso?" ou "por que voc� acha que eu trabalho aqui?". Por que elas reagem com tanta revolta � devolu��o dessa pergunta? Percebem como essa pergunta, que � dirigida apenas a pessoas negras, � repleta de racismo?
Devolver o constrangimento �s pessoas racistas tamb�m se aplica a outras situa��es, como "piadas" e "brincadeiras" racistas. Assim que escuto a “piada” aprendi a devolver com a seguinte pergunta: “n�o entendi essa “piada”, como voc� explica? Mas quero que voc� explique com detalhes”. Quando fa�o essa pergunta, a pessoa que fez a "piada" racista se sente desconfort�vel, com vergonha e n�o sabe onde esconder a cara. No m�nimo, comigo, ela nunca mais ter� esse comportamento.
Essa abordagem de perguntar tranquilamente: "N�o entendi a ‘piada’, voc� poderia explic�-la com detalhes?" tamb�m pode ser usada em rela��o a "piadas" discriminat�rias contra pessoas com defici�ncia, pessoas LGBTQIAP+, estereotipa��o de pessoas de diferentes classes sociais, machismo, entre outras formas de preconceito.
Al�m disso, mesmo se voc� n�o fizer parte de grupos minorit�rios, diante de microagress�es, como "piadas" e "brincadeiras" preconceituosas, tamb�m � poss�vel adotar essa t�tica de fazer a pessoa explicar a "piada" com detalhes.
Ali�s, separei alguns pontos para voc�, que n�o faz parte de grupos minorizados, e deseja aprender a se posicionar e ser uma pessoa aliada de fato:
Ofere�a uma escuta atenta e afetuosa: Quando algu�m compartilhar uma experi�ncia de discrimina��o, esteja aberto para ouvir e validar seus sentimentos. Evite minimizar ou negar a dor que essas pessoas enfrentam. N�o reduza a dor do outro.
Informe-se: Procure ler livros, artigos, assistir document�rios e participar de discuss�es que abordem quest�es relacionadas ao racismo. Quanto mais conhecimento voc� adquirir, melhor preparado estar� para se posicionar.
Autoavalia��o/revisite seus vieses inconscientes: Reflita sobre seus pr�prios preconceitos e privil�gios. Reconhecer seus pr�prios vieses � um passo importante para ser um aliado efetivo.
Amplie seu conhecimento sobre direitos humanos: Familiarize-se com as leis e regulamenta��es relacionadas aos direitos humanos e � igualdade. Isso pode ajudar voc� a entender melhor os mecanismos legais dispon�veis para combater a discrimina��o.
Denuncie: Racismo e inj�ria racial s�o crime! Se presenciar um ato de racismo, denuncie a situa��o para as autoridades competentes ou para organiza��es especializadas. Isso ajuda a combater essas formas de opress�o e proteger as v�timas. Vale lembrar que a Lei 14.532/2023, publicada em janeiro deste ano, equipara a inj�ria racial ao crime de racismo. Com isso, a pena tornou-se mais severa com reclus�o de dois a cinco anos, al�m de multa, n�o cabe mais fian�a e o crime � imprescrit�vel.
Posicionar-se diante de situa��es de racismo � fundamental.