
S�rgio Buarque de Holanda, um dos maiores e mais influentes intelectuais brasileiros do s�culo XX, popularizou, em Ra�zes do Brasil, livro publicado originalmente em 1936, a express�o “homem cordial”, para definir as caracter�sticas do brasileiro m�dio. Ele afirma que “a contribui��o brasileira para a civiliza��o ser� a cordialidade – daremos ao mundo o ‘homem cordial’.
A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes t�o gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um tra�o definido do car�ter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influ�ncia ancestral dos padr�es de conv�vio humano, informados no meio rural e patriarcal”.
A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes t�o gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um tra�o definido do car�ter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influ�ncia ancestral dos padr�es de conv�vio humano, informados no meio rural e patriarcal”.
Pode parecer, em princ�pio, que S�rgio Buarque de Holanda interpreta, por meio da met�fora do homem cordial, o car�ter do brasileiro m�dio atrav�s de uma lente otimista. Muito pelo contr�rio, j� que logo em seguida ele nos adverte que “seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. S�o antes de tudo express�es leg�timas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade h� qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e senten�as”.
Holanda quer nos fazer entender que a cordialidade, que vem de cora��o, faz com que misturemos o p�blico e o privado, tratando, frequentemente, aquele como se fosse este. Ademais, a cordialidade por ter como base o transbordamento das emo��es, pode ser extremamente violenta e transformar em coisa �ntima aquilo que � de todos.
� poss�vel verificar a ubiquidade dessa convers�o do p�blico em privado, do racional em emocional, em uma infinidade de h�bitos comuns dos brasileiros, independentemente da classe social ou origem geogr�fica.
Ela est� presente no “agrado” que se oferece ao policial para evitar ser multado, no h�bito de parar em fila dupla ao deixar os filhos na escola, ao contratar empregadas dom�sticas informalmente para fugir de suas responsabilidades fiscais, ao sonegar impostos, ao tratar discricionariamente aqueles que n�o nos s�o pr�ximos, tudo em profunda consonante com a m�xima maquiavelista: “aos amigos os favores, aos inimigos a lei”.
Ela est� presente no “agrado” que se oferece ao policial para evitar ser multado, no h�bito de parar em fila dupla ao deixar os filhos na escola, ao contratar empregadas dom�sticas informalmente para fugir de suas responsabilidades fiscais, ao sonegar impostos, ao tratar discricionariamente aqueles que n�o nos s�o pr�ximos, tudo em profunda consonante com a m�xima maquiavelista: “aos amigos os favores, aos inimigos a lei”.
A cordialidade emotiva transbordante desnuda n�o apenas o cidad�o comum mas desvela, sobretudo, as formas de governar e a privatiza��o dos neg�cios do Estado, Afinal, algu�m provavelmente j� deve ter dito que n�o h� governo virtuoso na aus�ncia de uma sociedade civil igualmente virtuosa.
O governo �, afinal, um grande espelho que reflete e amplifica as qualidades e defeitos de seu povo. E, no Brasil, os governos t�m sido marcados, ami�de, pela corrup��o expl�cita, personalismo, casu�smo, clientelismo, nepotismo e, em situa��es extremas como a que estamos vivendo no governo Bolsonaro, completa falta de dire��o e �dio explicito ao povo que governa.
O governo �, afinal, um grande espelho que reflete e amplifica as qualidades e defeitos de seu povo. E, no Brasil, os governos t�m sido marcados, ami�de, pela corrup��o expl�cita, personalismo, casu�smo, clientelismo, nepotismo e, em situa��es extremas como a que estamos vivendo no governo Bolsonaro, completa falta de dire��o e �dio explicito ao povo que governa.
Apenas para fazer um contraponto, gostaria de lembrar que o maquiavelismo tamb�m compreende que o bom governo � aquele no qual o bem comum orienta o escopo de toda a a��o pol�tica, de acordo com as regras estabelecidas, com o direito pol�tico, em defesa de uma liberdade republicana dos cidad�os e garantindo que estes sejam chamados a pronunciar-se acerca das op��es p�blicas do Governo. Voc�s conseguem observar alguma dessas caracter�sticas no atual (ou mesmo nos antecessores) governo brasileiro? Eu n�o.
Vejamos o que as not�cias do cen�rio pol�tico que mais impacto geraram nas �ltimas semanas revelam sobre a perman�ncia, e aprofundamento, do diagn�stico da realidade brasileira proposta por Sergio Buarque de Holanda h� quase 90 anos. Vimos Paulo Guedes reclamar, sociopaticamente como � do seu feitio, do impacto que o aumento da expectativa de vida do brasileiro ter� na economia. O ministro mais importante e celebrado do governo deseja a morte precoce dos cidad�os. � poss�vel imaginar perspectiva mais torpe de sociedade?
O mesmo Guedes, ao demonizar o ensino superior brasileiro, respons�vel por 90% de toda pesquisa cientifica feita na Am�rica Latina e por dar oportunidades reais de ascens�o social e expans�o do horizonte intelectual para os filhos e filhas das classes trabalhadores (me refiro aqui h� todos aqueles que vivem do sal�rio) dos estratos baixos, m�dios e altos da popula��o se ressente do filho do porteiro vislumbrar fazer uma faculdade e romper com o ciclo de pobreza?
Mais uma vis�o torpe, distorcida e anti-povo, pois n�o imagina uma sociedade com menos desigualdade, com trabalhadores mais bem qualificados e capazes de contribuir para que o Brasil deixe, um dia, de ser mero exportador de commodities e passe a competir num mercado global onde a alta qualifica��o e especializa��o da m�o de obra � condi��o si ne qua non para o sucesso.
O mesmo Guedes, ao demonizar o ensino superior brasileiro, respons�vel por 90% de toda pesquisa cientifica feita na Am�rica Latina e por dar oportunidades reais de ascens�o social e expans�o do horizonte intelectual para os filhos e filhas das classes trabalhadores (me refiro aqui h� todos aqueles que vivem do sal�rio) dos estratos baixos, m�dios e altos da popula��o se ressente do filho do porteiro vislumbrar fazer uma faculdade e romper com o ciclo de pobreza?
Mais uma vis�o torpe, distorcida e anti-povo, pois n�o imagina uma sociedade com menos desigualdade, com trabalhadores mais bem qualificados e capazes de contribuir para que o Brasil deixe, um dia, de ser mero exportador de commodities e passe a competir num mercado global onde a alta qualifica��o e especializa��o da m�o de obra � condi��o si ne qua non para o sucesso.
Acompanhamos tamb�m o cont�nuo descaso do governo com a pandemia, apesar de ser poss�vel afirmar que o Brasil concentra hoje aproximadamente um ter�o das mortes di�rias por COVID-19 no mundo, mesmo com 3% da popula��o mundial. Al�m disso, morreram mais pessoas por COVID no Brasil, apenas no m�s de mar�o, do que na pandemia inteira em 109 pa�ses, que soma 1,6 bilh�o de habitantes. E nunca � demais lembrar que a maioria dessas mortes poderia ter sido evitada, pois j� h� vacinas dispon�veis contra o COVID. Mas, em vez de priorizar o bem comum, o governo preferiu recusar por 11 vezes ofertas para compra de vacinas.
E o cen�rio de filme de terror s� piora, j� que o presidente insiste em contemporizar com a China e, em contrapartida, o pa�s asi�tico cria empecilhos para que os insumos necess�rios para a produ��o de vacinas sejam enviadas para o Brasil. Em bom portugu�s, este � um governo empenhado em exterminar seu povo. �, sim, genocida.
E o cen�rio de filme de terror s� piora, j� que o presidente insiste em contemporizar com a China e, em contrapartida, o pa�s asi�tico cria empecilhos para que os insumos necess�rios para a produ��o de vacinas sejam enviadas para o Brasil. Em bom portugu�s, este � um governo empenhado em exterminar seu povo. �, sim, genocida.
Vimos tamb�m a aprova��o do or�amento, com redu��o dr�stica de recursos para as universidades federais, que receber�o o equivalente ao que recebiam em 2004, mas com o dobro de estudantes. O or�amento tamb�m n�o previu recursos para a realiza��o do Censo em 2021. O que, se confirmado, pode gerar um apag�o na produ��o de dados e impactar negativamente a elabora��o e implementa��o de pol�ticas p�blicas nos pr�ximos anos.
E, absurdo dos absurdos, ficamos sabendo de um “or�amento secreto”, um acordo entre o executivo e o grupo de parlamentares mais “fi�is” ao governo com a destina��o de 3 bilh�es de reais para o Minist�rio do Desenvolvimento Regional. Parte dos recursos foi utilizada, via emendas parlamentares para a compra de tratores e outras m�quinas agr�colas a pre�os superfaturados.
E, absurdo dos absurdos, ficamos sabendo de um “or�amento secreto”, um acordo entre o executivo e o grupo de parlamentares mais “fi�is” ao governo com a destina��o de 3 bilh�es de reais para o Minist�rio do Desenvolvimento Regional. Parte dos recursos foi utilizada, via emendas parlamentares para a compra de tratores e outras m�quinas agr�colas a pre�os superfaturados.
Esse governo, cordial, anti-povo e corrupto, contribui para o exterm�nio da popula��o de duas formas: pela ina��o e pela a��o. As mortes de 0,2% da popula��o brasileira, e a proje��o de que se possa chegar a um milh�o de mortos durante uma terceira onda da COVID prevista para junho, � fruto da ina��o governamental. Mas o governo tamb�m age ativamente para o exterm�nio da popula��o.
O caso mais recente foi a chacina na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Uma a��o coordenada por policiais civis invadiu a favela e executou 28 pessoas. As cenas do crime foram adulteradas para dificultar a per�cia e os corpos dos morados assassinados foram retirados da favela pelos pr�prios policiais que os mataram.
O caso mais recente foi a chacina na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Uma a��o coordenada por policiais civis invadiu a favela e executou 28 pessoas. As cenas do crime foram adulteradas para dificultar a per�cia e os corpos dos morados assassinados foram retirados da favela pelos pr�prios policiais que os mataram.
A execu��o de cidad�os brasileiros, pobres e em sua maioria negra, � o ep�tome da atualidade da met�fora do homem cordial, conforme definida por Sergio Buarque de Holanda. O presidente celebrou a a��o; a pol�cia civil, em entrevista coletiva, considerou a��o um sucesso e mostrou-se consternada apenas com a morte de um policial. Na imprensa, as chamadas davam aten��o para o fato de que a maioria das pessoas assassinadas tinha algum envolvimento criminal ou passagem pela pol�cia.
Mas, de maneira c�mplice, deixaram de noticiar que no Brasil n�o h� pena de morte e que a execu��o de qualquer cidad�o, tenha ele cometido crime ou n�o, � ilegal, posto que nega a elei direito de ser julgado de forma justa e possa se defender e recorrer a todas as inst�ncias poss�veis. At� na hora da morte, a cidadania de alguns brasileiros vale menos do que a de outros. Ou, como diz uma frase popular entre negros e mais pobres: nossa dor n�o sai no jornal.
Mas, de maneira c�mplice, deixaram de noticiar que no Brasil n�o h� pena de morte e que a execu��o de qualquer cidad�o, tenha ele cometido crime ou n�o, � ilegal, posto que nega a elei direito de ser julgado de forma justa e possa se defender e recorrer a todas as inst�ncias poss�veis. At� na hora da morte, a cidadania de alguns brasileiros vale menos do que a de outros. Ou, como diz uma frase popular entre negros e mais pobres: nossa dor n�o sai no jornal.
E o cidad�o m�dio, o homem cordial, emotivo que � o brasileiro? O que ele pensa sobre a execu��o de seus concidad�os? Bem, ele aprova, aplaude e acredita que bandido bom � bandido morto, afinal n�o � algu�m pr�ximo a ele nem um morador branco de uma regi�o nobre. O homem cordial aposta na vingan�a e celebra o extermino dos seus cong�neres.
Ele n�o quer justi�a, pois se v� detentor de credenciais sociais e privil�gios que impedem de ser v�tima do mesmo Estado genocida que ele aplaude por matar pobres e pretos. Mas, cedo ou tarde, ele tamb�m ser� v�tima do �dio que destina aos seus concidad�os do v�rtice inferior do triangulo desigual brasileiro.
Ele n�o quer justi�a, pois se v� detentor de credenciais sociais e privil�gios que impedem de ser v�tima do mesmo Estado genocida que ele aplaude por matar pobres e pretos. Mas, cedo ou tarde, ele tamb�m ser� v�tima do �dio que destina aos seus concidad�os do v�rtice inferior do triangulo desigual brasileiro.
Precisamos urgentemente reconstruir o Brasil, criar la�os de solidariedade e solapar a cordialidade incivil do nosso conv�vio na esfera p�blica. Isso exigir� o tempo e o esfor�o de mais de uma gera��o. Enquanto isso, devemos ao menos garantir que esses versos cantados na d�cada de 90 por Cidinho e Doca se concretizem:
Eu s� quero � ser feliz
Andar tranquilamente na favela onde eu nasci, �
E poder me orgulhar
E ter a consci�ncia que o pobre tem seu lugar
Mas eu s� quero � ser feliz, feliz, feliz, feliz, feliz
Onde eu nasci
E poder me orgulhar
E ter a consci�ncia que o pobre tem seu lugar