
Nessa ter�a (27/6), foi conclu�da a leitura do voto do relator da a��o de investiga��o judicial eleitoral movida contra Bolsonaro, concluindo pela inelegibilidade do ex-presidente at� 2030. Faltam ainda os votos dos demais ministros, mas a tend�ncia � pela confirma��o do voto do relator e consolida��o da hip�tese de inelegibilidade do ex-presidente.
Isso � o que todo mundo est� falando e, por �bvio, n�o � o que eu quero tratar neste texto. Imagino que se voc� tem algum interesse sobre a mat�ria j� deve estar saturado de tanto mais do mesmo.
E da� que a minha proposta � te mostrar algo que n�o vi na m�dia e que � extremamente importante para entender este caso, goste voc� do resultado da a��o ou n�o. Afinal, entender os “porqu�s” de qualquer coisa � fundamental e n�o tem vincula��o com as conclus�es que dali ser�o extra�das.
E eis o que eu quero te mostrar neste caso. A resposta de uma pergunta aparentemente inocente, mas fundamental: por que este caso (a reuni�o com os embaixadores) chamou tanta aten��o em meio a tantas manifesta��es semelhantes do ex-presidente?
Tente dar uma resposta sem pensar e sem ler at� o final e provavelmente voc� vai concluir, como o que est� expresso no voto do relator, que pode configurar abuso de poder pol�tico. Outros podem concluir que o ex-presidente quis difamar o sistema eleitoral perante a comunidade internacional. Talvez alguns imaginem que foi porque a reuni�o criou um constrangimento diplom�tico.
Entretanto, se essas foram algumas das suas hip�teses, sinto informar mas est�o todas erradas. A quest�o n�o � bem essa.
Eu j� tive mais de uma oportunidade de afirmar aqui que o Brasil n�o tem uma cultura muito s�lida em rela��es internacionais, o que pode ser explicado pelas dimens�es continentais do pa�s e praticamente aus�ncia de fronteiras.
Par�ntesis 1: j� parou para pensar nisso? O Brasil � um dos maiores pa�ses do mundo e praticamente n�o tem fronteira! Metade do pa�s � mar e na outra metade 60% � mata fechada! Fronteira mesmo, no sentido de rela��es internacionais, � a menor parte. Apenas em compara��o, tem muito europeu que mora em um pa�s e vai trabalhar no outro e passa menos tempo no tr�nsito do que voc�.
Voltando: por causa dessa caracter�stica, a gente � pouco h�bil em lidar com essas quest�es que envolvem rela��es entre pa�ses, autoridades estrangeiras e intera��es internacionais em geral. E isso deixou escapar uma filigrana fundamental para entender esse imbr�glio todo.
E que filigrana � essa: como se d� a rela��o entre pa�ses no plano internacional. O processo de rela��es internacionais existe h� s�culos, para os mais variados fins. Entretanto, a ideia de que seria preciso sistematizar a forma como as rela��es internacionais seriam executadas se consolidou no p�s 1945, mais especificamente com a promulga��o da Carta da ONU de 1948.
Os motivos s�o bem �bvios, dado que o saldo de cad�veres daquele contexto n�o permitia conclus�o diversa sen�o a no sentido de que a anarquia internacional precisava de algum regramento e algum limite. Como todos sabemos (e tememos at� hoje), o mundo n�o suportar� uma III Guerra.
Pois bem, constitu�da a ONU (e eu n�o quero me demorar neste ponto), em 1969 foi assinada a Conven��o de Viena sobre o Direito dos Tratados. Essa conven��o organiza a forma como os pa�ses v�o se relacionar uns com os outros, os elementos b�sicos e necess�rios para a validade dos tratados e alguns mecanismos para dar possibilidade de cumprimento dos mesmos, at� porque precisamos lembrar que n�o h� um governo global com jurisdi��o acima dos Estados Nacionais (apesar de alguns conspiradores insistirem nisso).
Par�ntesis 2: � surreal, mas a Conven��o de Viena, apesar de assinada em 1969, s� entrou em vigor em 1980, quando alcan�ou a marca m�nima de 35 ratifica��es para ter validade internacional. Pois �, em rela��es internacionais tudo � bem mais lento.
Voltando: e por que a Conven��o de Viena � importante para este caso? Porque apesar de os Estados entenderem ser necess�ria uma regula��o das rela��es internacionais, h� uma marca neste ambiente que � hist�rica e permanece muito forte at� hoje: ningu�m quer abrir m�o do poder sobre o pr�prio quintal.
Se h� algo que os pa�ses t�m como extremamente r�gido � a impossibilidade de inger�ncia de qualquer organismo internacional em seus “assuntos internos”, que � uma forma polida de resguardar a t�o afamada soberania. Ou seja, a complexidade das rela��es internacionais decorre exatamente do fato de que nenhum pa�s se disp�e espontaneamente a ceder nem mesmo parte da sua soberania para o palco internacional.
O resultado: no plano internacional � comum termos situa��es em que “pode e n�o pode”, “deve, mas n�o � obrigado”, “compete, mas n�o � obrigado a acatar” e assim por diante. Tudo isso nada mais � do que cada Estado Nacional se apresentando ao mundo e, ao mesmo tempo, dizendo: do meu quintal cuido eu.
� por isso que no plano internacional ningu�m est� muito preocupado com ditaduras internas, viola��es de direitos humanos, guerras, etc. Expliquei isso no texto sobre as rela��es Brasil e Venezuela.
A Conven��o de Viena trata disso j� no pre�mbulo do texto, ao tratar da Carta das Na��es Unidas, que tem como um dos seus princ�pios a “autodetermina��o dos povos”. Al�m disso, o pr�prio pre�mbulo da Conven��o explicita a no��o de “n�o-interven��o nos assuntos internos dos Estados”.
Essas duas afirma��es levam ao mesmo fim, que � a no��o de separa��o do plano internacional do plano interno. Tanto � que sempre h� um tom alarmista e muito malvisto quando se afirma que um pa�s interferiu em assuntos internos de outros pa�s, dado que exprime essa no��o de uma “viola��o”.
E como amarrar este ponto com a hist�ria da reuni�o? Agora ficou f�cil. Quem acompanha minimamente as rela��es entre Estados Nacionais sabe que, de regra, tudo o que � assunto interno � escondido na maior medida poss�vel, a menos que possa influenciar uma negocia��o internacional de interesse do pa�s. Se n�o for assim, assunto interno n�o � tema de debate em palco internacional.
Da� voc� deve imaginar que um embaixador passa a vida lidando exatamente com essa postura em todos os lugares por onde ele passa, de modo que a expectativa � exatamente que as informa��es internas s�o ocultadas e as informa��es realmente relevantes n�o s�o divulgadas. � assim que funciona, todo mundo faz assim e n�o adianta ficar com elucubra��es sobre como seria um mundo de Alice em que isso n�o aconteceria.
Ent�o, neste ambiente, uma revoada de embaixadores � chamada para ser recebida pelo ent�o Presidente da Rep�blica para tratar de um assunto interno do pa�s!
Par�ntesis 3: outra quest�o muito importante neste caso � que, em rela��es internacionais, as tratativas s�o feitas sempre com os hom�logos. Isso significa que Chefe de Estado trata com Chefe de Estado, Chanceler trata com Chanceler, Ministro trata com Ministro, Embaixador trata com Embaixador. Ou seja, um embaixador ser chamado para tratar com o Presidente j� causou muita estranheza, eu garanto.
Voltando: o sil�ncio de cemit�rio ao final da reuni�o n�o teve outro significado sen�o a mais completa incompreens�o dos embaixadores sobre os motivos daquela reuni�o, visto que o seu conte�do foi exclusivamente assuntos de interesse interno do pa�s. Ou seja, estava-se expondo para a comunidade internacional, de forma intencional e deliberada, algo que, em tese, deveria passar muito longe das pautas entre aqueles atores.
Obviamente, as pessoas que est�o neste palco podem ser qualquer coisa menos ing�nuas e, rapidamente, foram suscitadas as raz�es pelas quais aquela reuni�o foi motivada. E das duas, uma: ou o ent�o Presidente estava realmente saindo completamente da f�rmula de atua��o adotada em toda a comunidade internacional h� s�culos ou o ent�o Presidente queria criar uma situa��o que desaguaria em um incidente internacional que demandaria a manifesta��o dos demais pa�ses dentro de determinado per�odo.
Acredite em mim: no dia seguinte �quela reuni�o j� havia v�rios servi�os de intelig�ncia, embaixadas e observadores internacionais com os olhos no Brasil. Interessados na nossa democracia? N�o! Lembrem que assuntos internos s�o irrelevantes neste palco.
Estavam interessados no preju�zo que poderiam ter com aquilo que poderia vir e at� ent�o ningu�m sabia bem o que era. Ou seja, goste voc� ou n�o goste do ex-presidente, � preciso entender que ele errou e violou uma regra b�sica demais das rela��es internacionais e isso, claramente, acendeu todas as luzes de alerta poss�veis.
Errou claramente e chamou a aten��o. E veja o ponto que eu quero defender aqui: n�o foi pelo conte�do, dado que n�o havia muita novidade. Foi pela forma adotada, constitu�da por uma viola��o muito grave de um procedimento consolidado secularmente nas rela��es entre os Estados Nacionais.
E n�o se pode subestimar os impactos da quebra de h�bitos e costumes internacionais, pois quase tudo nessa �rea tem 3 d�gitos de anos de pr�tica. O problema � que demanda um olhar menos a�odado para ver.