
Einstein procura Freud, por meio de uma carta, datada de 30 de julho de 1932 – n�o por acaso, per�odo entre duas guerras mundiais - com o intuito de encontrar uma sa�da para a paz mundial sob a �tica, � �poca, dos estudos recentes de Freud. E Freud desafia ainda mais ao afirmar que, “n�o h� maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem.” Passados 78 anos do fim da segunda guerra mundial, o mundo presencia, com grande intensidade, decis�es violentas dos “al�ados” ao poder em matar indiscriminadamente civis, de forma expl�cita ou n�o.
H� duas semanas, quando eclodiu a guerra entre Israel e Hamas, assisti a um mini document�rio em que brasileiros(as) eram indagados(as), ap�s ouvir sons de metralhadoras, sobre “em que lugar eles(as) achavam que estava acontecendo aquele bombardeio”. Todos(as) se referiam aos pa�ses situados entre o Oriente M�dio e a �sia Central. Na verdade, tudo se passava no Brasil.
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Esquecemos de nossas viol�ncias internas, em todos os sentidos. O Brasil est� envelhecendo, do ponto de vista da sua pir�mide et�ria, com graves viol�ncias de cor/ra�a e sexo, acompanhadas de desigualdades socioecon�micas. N�o temos pol�ticas de inclus�o dos mais velhos em uma sociedade cuja parcela maior da popula��o � negra e pobre. As guerras veladas continuam, mas nem as escutamos, nem as vimos.
“Quantos dias. Quantas noites” � um document�rio sobre a longevidade, com reflex�es sobre a vida e o viver em uma sociedade cuja expectativa de vida aumenta rapidamente, mas que n�o se d� de forma igual para todos. O document�rio estreou na semana passada e est� dispon�vel, gratuitamente, no portal do Dr. Drauzio Varela, na plataforma Ita� Play e em alguns cinemas do pa�s.
Alexandre Kalache, m�dico geront�go e presidente do Centro Internacional de Longevidade do Brasil; Sueli Carneiro, fil�sofa, escritora e ativista antirracismo; Ana Claudia Quintana Arantes, m�dica geriatra e escritora; Alexandre Silva, l�der da Comunidade Compassiva (favela da Rocinha); Ana Michelle Soares, jornalista, escritora, paciente e ativista de cuidados paliativos; Tom Almeida, fundador do movimento inFINITO; Dona Dalva, fundadora da creche Dois Irm�os Rocinha; M�rris Litvak Jr, criador da Plataforma Maturi; e Nilda Sant’Anna, m�dica pneumologista.
Esmeralda Gazal, bailarina e professora de ballet; Jos� Geraldo dos Santos, cozinheiro; Aurea Maria, velha guarda da Portela; Ana Lucia de Almeida, Edna Maria dos Santos e Maria do Carmo Silva, volunt�rias da Comunidade Compassiva; Marcos Ven�cius Barbosa, catador de papel; Edmundo Jos� dos Santos, motorista aposentado; Maria Zenith de A. Pinheiro, diretora aposentada da �rea t�cnica de taquigrafia da Alesp; Mona Rikunbi, atriz e core�grafa; Toinho Melodia, sambista, cantor e compositor; Edmea Pereira Correa, comerci�ria aposentada, e Francisco de Aguiar, t�cnico de el�trica aposentado, ambos aprendizes de surf ap�s os 70 anos.
O document�rio tem dois perfis de participantes: aqueles que t�m como profiss�o cuidar, em geral, dos mais velhos; e aqueles que vivem a experi�ncia da velhice. A narrativa se d� entremeando-se falas sob a perspectiva de quem cuida, com falas de quem quer ou precisa ser cuidado, visto e reintegrado.
A violenta invisibilidade aos mais velhos � tamb�m uma perspectiva de guerra, sobretudo nas classes sociais mais baixas, em que o acesso aos cuidados paliativos, ou mesmo de envelhecimento com sa�de e bem-estar, ainda est� longe de ser disponibilizado universalmente. Como dito pela Dra Ana Claudia, no document�rio, “a nossa sociedade n�o respeita o tempo, n�o respeita a sabedoria de uma pessoa mais velha”.
E Sueli Carneiro acrescenta que “surrupiar o tempo � talvez a mais danosa de todas as apropria��es perversas que o capitalismo faz sobre n�s; surrupiar o tempo nos rouba vida”. A fil�sofa nos provoca ao mostrar que a discuss�o do envelhecimento ativo est� associado � discuss�o da desigualdade e da diferen�a de acesso �s possibilidades da vida.
Aqui volto ao ponto de Freud a Einstein: como romper os instintos violentos em sociedades cujas regras surrupiam vidas de parte de seus civis? A contradi��o que permite a perpetua��o das disparidades se nutre de belos discursos de chefes de Estado e pr�ticas empresariais que, no fundo, ou servem para maquiar as “melhores inten��es”, ou s�o feitas propositalmente para mant�-las.
Perpassa toda narrativa do document�rio o impacto da desigualdade racial no envelhecimento da sociedade, algo que est� acontecendo na frente dos nossos dirigentes, tomadores de decis�o, formadores de opini�o e empres�rios.
O document�rio nos provoca a reflex�o sobre veracidade e coer�ncia do movimento empresarial de ado��o das normas de ambiente, sustentabilidade e governan�a (sigla ESG, oriunda do ingl�s), bem como de diversidade, igualdade e inclus�o (sigla DE&I, tamb�m oriunda do ingl�s), que excluem e esquecem do envelhecimento populacional e, portanto, da inclus�o dos mais velhos.
Das falas mais belas do document�rio, “a candeia da alma � o �nimo” foi a que mais me tocou. Incr�veis relatos de pessoas pobres, sem acesso a uma velhice digna, que carregam a dor de n�o serem vistas, n�o se sentirem pertencidas e serem abandonadas pelo instinto violento e agressivo. E n�o estamos falando de mais uma trag�dia humanit�ria que ocorre do outro lado do mundo. Falamos daqueles com quem cruzamos todos os dias, cujo �nimo de viver s� parece brotar de uma for�a inexplic�vel da alma.