(none) || (none)
Publicidade

Estado de Minas ANCESTRALIDADE

Carta a Abdias do Nascimento

Confesso que j� tinha lido seus livros, seus poemas e discursos do per�odo que foi senador, e, por isso, tinha no��o de sua genialidade, ast�cia e perspic�cia


23/03/2023 17:00 - atualizado 23/03/2023 18:04

Fotografia antiga de Abdias do Nascimento, um homem negro usando terno e gravata em cores claras. Ele segura um tridente de Exu
Abdias do Nascimento durante apresenta��o da pe�a Sortil�gio, 1957 (foto: Jos� Medeiros/Reprodu��o)

Ei, Abdias, j� faz um tempinho que queria trocar algumas ideias com o senhor, mas toda vez que pensava em entrar em contato, batia uma timidez e um certo receio de, talvez, incomod�-lo. Mas enfim, respirei fundo e tomei coragem para escrever esta carta, ciente de que estou escrevendo para um ancestral que tamb�m � um dos maiores intelectuais brasileiros. Ent�o, que Exu me conceda este ax� de fala para esta conversa que eu sempre quis tanto ter.

S�bado passado (18) foi inaugurado l� em Inhotim, na cidade de Brumadinho, o terceiro ato do Museu de Arte Negra, e usaram o nome “Sortil�gio”, isso mesmo, usaram o nome da primeira pe�a de teatro que o senhor escreveu. Eu j� tinha ido nos dois atos anteriores. Ali�s, eu e quase todos os artistas e intelectuais negros que moram em Belo Horizonte e na regi�o metropolitana. A exposi��o da obra me proporcionou reencontrar pessoas da milit�ncia negra que, h� tempos, eu n�o via pessoalmente, em raz�o da correria da vida e do isolamento social imposto pela pandemia. And�vamos um tanto quanto desanimados com a conjuntura pol�tica, at� porque o seu livro “Genoc�dio do Negro Brasileiro” est� mais atual do que nunca, mas as exposi��es nos deram um respiro, um f�lego novo. Os olhos das pessoas brilhavam ao verem as obras escolhidas pela curadoria para compor o acervo da exposi��o.

Confesso que j� tinha lido seus livros, seus poemas, seus discursos do per�odo que foi senador e, por isso, tinha no��o de sua genialidade, ast�cia e perspic�cia. Infelizmente, cheguei tarde neste mundo e acabou que n�o consegui assistir a nenhuma pe�a do teatro experimental do negro, mas a L�a Garcia me contou um pouquinho sobre como foi essa viv�ncia e a Ruth de Souza me mostrou diversas fotos das pe�as em um momento de nostalgia. Foi poss�vel sentir a satisfa��o dela em ter integrado esse projeto t�o necess�rio que o senhor idealizou.

Talvez em raz�o dos dois �ltimos atos, dos livros que li e dos relatos que ouvi, tinha certeza que o senhor n�o teria mais nada que pudesse me surpreender, porque sua obra intelectual me deu r�gua e compasso para andar de cabe�a erguida ciente da nossa for�a e atenta aos perigos constantes. Atrav�s do seu livro “Quilombismo", tivemos uma resposta para combater o racismo institucionalizado em nosso pa�s, propostas de solu��es, antecipa��o de temas. O senhor descortinou novos horizontes sempre com a verve, a profundidade e a indigna��o inerente a um filho de Ogum que nunca resignou. Portanto, j� me dei por satisfeita pelo senhor me ensinar a guerrear, sem saber o que me aguardava ao adentrar, juntamente com outros jornalistas, a galeria da Mata l� em Inhotim. 

Foi naquele momento que, al�m de sentir, eu vi a beleza dos orix�s nas telas, o encantamento e a magia tomava conta de mim toda vez que parava diante de uma das tantas obras que o senhor pintou. Me reconectava com a minha ancestralidade e sentia emergir a for�a atrav�s das cores e dos tra�os.
 
Foto do ato dedicado a Abdias do Nascimento
(foto: Tiago Nunes)
 
Senti a prote��o de Yemanj�, a paz de Oxal�, a fertilidade sadia de Oxum, senti os caminhos abertos pelo nosso pai Ogum, a cura de Omolu, a for�a de Nan� e Oxumar� que nos ajuda a manter a continuidade entre a vida e a morte, nos dando o equil�brio do cosmo e da alma. Ians� me fez entender porque n�o sucumbimos entre os ventos e as tempestades ao deixarmos o nosso pr�prio continente.

Mas, vamos combinar, entre os Orix�s, Exu era, certamente, o que tinha mais espa�o na exposi��o, era “Exu e tr�s tempos de roxo”, “O vale de Exu”, “Exu-Dambalah”, “Exu Black Power”. Esses s�o os que eu lembro nome, fora os outros, talvez em raz�o da sua capacidade de mensageiro e soprar em nosso ouvidos sempre a melhor estrat�gia. S� de lembrar, eu fico emocionada com o poder das cores e da for�a de Xang� e Ox�ssi.

Eu sa� de l� e h� quase uma semana e ainda estou pensando em uma estrat�gia de ter para mim, em minha sala, a “Oxum em �xtase”. Cheguei a me perguntar, se eu a pegasse e sa�sse tranquilamente pela porta, se algu�m notaria que eu estava levando-a para passear tamanha foi a minha tristeza em ter que ir embora e deix�-la l�. Vou tentar voltar para rev�-la, j� que o terceiro ato fica dispon�vel para visita��o at� o dia 6 de agosto deste ano.

Durante todos os atos, eu fico me perguntando o porqu� de Inhotim n�o se render logo � sua genialidade e abrigar, de forma fixa, suas obras em uma galeria chamada “Abdias do Nascimento”.

O senhor se lembra do Jorge dos Anjos? Aquele artista pl�stico que fez o portal de Iemanj� l� na Pampulha. Tamb�m � outro artista que eu n�o entendo o porqu� de ainda Inhotim n�o colocar em seu acervo p�blico. Se o senhor tiver as respostas, me conta, porque aguardo ansiosa por esse entendimento.

Beijo, minha despedida � um muit�ssimo obrigada por ter nos deixado um legado negro de intelectualidade, arte e beleza.

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)