
N�o �, e nem nunca foi novidade, que muitas pessoas negras tiveram que, em algum momento da vida, escolher entre pagar uma consulta odontol�gica ou comprar comida. A quest�o �: o que tem de engra�ado nisso?
Quem cotidianamente utiliza as redes sociais muito provavelmente j� se deparou com memes de pessoas negras banguelas sorrindo, que t�m como intuito o humor. S�o diversas figurinhas no WhatsApp, posts no Instagram, no Twitter, no Facebook e at� no TikTok, nos quais a degrada��o da sa�de bucal das pessoas negras s�o retratadas para alegrar o p�blico e fazerem as pessoas sorrirem e se divertirem.
Quantas vezes voc� riu e achou engra�ado esse tipo de conte�do? Quantas vezes voc� parou para pensar sobre o qu�o violento e cruel � utilizar a miserabilidade e a falta de acesso aos servi�os de sa�de b�sicos de uma pessoa para se divertir?
Todas as pessoas que fizeram um or�amento em um consult�rio odontol�gico e tiveram a sensatez de comparar o valor cobrado pelos dentistas com o valor do sal�rio m�nimo conseguem compreender o qu�o inacess�vel � esse tipo de tratamento para um assalariado. Agora, imagine o que � para uma pessoa adulta assalariada com dois filhos que dependem financeiramente dela? Imaginou? Pois ent�o, essa � a realidade de in�meras fam�lias brasileiras.
S� quem j� sentiu uma dor de dente, precisou ir ao dentista, que detectou que era necess�rio fazer um canal, e teve que “optar” pela extra��o por ser menos cara, consegue de imediato entender que um meme desse � tudo, menos engra�ado. � sim, necess�rio e urgente abordar de forma ampla os diversos tipos de racismos, inclusive o recreativo, que � t�o naturalizado, mas n�o menos nocivo.
Embora o SUS ofere�a, em algumas de suas unidades, o servi�o de sa�de bucal, o tempo de espera geralmente � longo e nem sempre possui a estrutura para atender tamanha demanda e os in�meros procedimentos necess�rios. � simplista argumentar e responsabilizar a degrada��o da sa�de bucal � falta de higiene, at� porque muito provavelmente voc� escova seus dentes no m�nimo tr�s vezes ao dia e, semestralmente, voc� vai fazer a limpeza com um profissional. Pelo menos, � o tempo recomendado pela categoria.
As plataformas de redes sociais t�m possibilitado a amplia��o da desumaniza��o, ridiculariza��o e menosprezo das pessoas negras. Esses memes refor�am e reafirmam uma s�rie de preconceitos arraigados em rela��o a um grupo de pessoas. As atitudes das pessoas no ambiente virtual n�o est�o dissociadas do ambiente em que as rela��es ocorrem de forma presencial.
Em outras palavras, uma pessoa que entende como engra�ada a falta de acesso � sa�de de uma pessoa, retratando-na de forma c�mica em seu ambiente corporativo, caso se depare com um colega com tais caracter�sticas, tamb�m far� desse colega alvo de goza��es e constrangimentos. E se essa mesma pessoa � a respons�vel pelo recrutamento, muito provavelmente nem contratar� a pessoa que n�o tem dente, porque faz parte do perfil da vaga, mesmo que n�o esteja escrito nos pr�-requisitos ter dentes.
N�o � poss�vel achar engra�ado a careca de uma pessoa que perdeu os cabelos em raz�o de um tratamento de quimioterapia, tampouco se deparar com algu�m que precisou amputar algum membro e fazer dela um meme para que outras pessoas se divirtam. Ent�o, porque seria engra�ado uma pessoa que tem dificuldades para se alimentar e tem que enfrentar diversos transtornos por n�o ter dentes? Falta de acesso � sa�de n�o � engra�ado.
� importante trocar a naturaliza��o do racismo recreativo por um pensamento cr�tico e consciente, e isso n�o � se privar do acesso ao humor.
Se os potenciais dos memes fossem utilizados tamb�m para reivindica��es de uma constru��o e implementa��o de pol�ticas p�blicas intersetoriais e de sa�de mais equ�nimes, diminuindo a vulnerabilidade desse grupo para que seus direitos fossem garantidos e suas peculiaridades reconhecidas, e possibilitando a constru��o de acessos, muito provavelmente agregariam na viabilidade de resgatar a cidadania e melhoraria o acesso � sa�de bucal.
Aquela boca sem dente � muito mais que uma boca: � a retrata��o fiel da desigualdade social, racial e do desprezo e da falta de empatia de quem, mesmo sabendo disso, se diverte e ri da miserabilidade alheia.