
Temos assistido, at� agora, a um verdadeiro show de horror no que se trata da gest�o de crise institucional adotada pelo grupo empresarial Carrefour nos recorrentes casos de racismo que s�o sediados em suas unidades. Seguimos sendo plat�ia desse show, que est� muito longe de ter um final de contos de fadas, naqueles moldes de “e foram felizes para sempre”.
Digo contos de fada porque � preciso ser mais inocente do que uma crian�a para n�o entender a conota��o racista da nota divulgada ontem pelo grupo Carrefour em rede nacional no hor�rio nobre na TV. Al�m de nos matar e nos expor a situa��es constrangedoras de discrimina��o em suas unidades, subestimam de forma descarada a nossa intelig�ncia.
Porque s� quem subestima a intelig�ncia do telespectador usaria a frase “metade dos nossos 150 mil colaboradores s�o negros” para argumentar que � antirracista. Me lembra aquelas pessoas que, quando s�o surpreendidas cometendo um ato de racismo, respondem: “Que isso? Eu tenho at� um amigo negro”.
Tarefas de servi�os gerais, repositores de hortifruti, latic�nios, a�ougues que exigem uma for�a f�sica que coloca o corpo em constantes desgastes, ocasionando diversas patologias. Vivemos em um mundo em que a tecnologia � muito avan�ada, n�o � mesmo? E me conta, quantas vezes mesmo voc� j� viu um carrinho el�trico carregando as caixas pesadas pelos corredores para que os repositores apenas repusessem a mercadoria nas prateleiras? Pois �, al�m de repositores, s�o carregadores exercendo uma fun��o que lesiona a coluna, o joelho e outros membros do corpo.
N�o, eu n�o me esqueci da parcela de colaboradoras que trabalham ali, sentadinhas no caixa, enquanto uma fila enorme de pessoas aguarda para fazer o pagamento de suas compras. Aquelas que t�m, cada uma, uma c�mera direcionada para seu posto, monitorando o lucro. Aquelas que colocam a cara � tapa, que s�o tratadas de forma hostil por quem est� cansado de esperar na fila, porque a conta deu muito mais alta do que se esperava ou porque h� uma diverg�ncia no pre�o anunciado com o registrado na hora de pagar.
As mesmas que, caso o supermercado seja assaltado, est�o com o dinheiro e, portanto, estar�o extremamente vulner�veis e, muito possivelmente, ser�o as v�timas fatais se o assalto culminar em um latroc�nio, ou seja, roubo seguido de morte.
Esses corpos negros que o Carrefour chama de colaboradores s�o colocados nessas fun��es extremamente b�licas que, al�m de trabalhadores, s�o literalmente alvos em uma sociedade capitalista e violenta como a nossa. N�o se engane: o seguran�a negro n�o � posicionado somente para defender o patrim�nio ou s� para matar, como foi o caso do Jo�o Alberto Freitas no estacionamento. Os seguran�as negros s�o selecionados, tamb�m, para morrer em um poss�vel caso de assalto a m�o armada. S�o esses profissionais que entram em luta corporal com uma pessoa que furtou uma manteiga. Imagina correr o risco de ser morto para evitar o furto de uma manteiga? E ai dele se n�o abordar o meliante, � justa causa na certa.
H� uma l�gica racista no funcionamento da engrenagem capitalista. Querer subverter isso em um discurso de promo��o da igualdade racial tendo consci�ncia de que o m�sero sal�rio pago a esses colaboradores mal fomentam a sua sobreviv�ncia � de uma crueldade tamanha, que eu confesso que n�o estou e nunca estarei capacitada para mensurar. � n�tido que essa nota n�o foi revisada e aprovada por um profissional negro, e que foi elaborada por uma pessoa branca para “apagar o inc�ndio” provocado pelo ato de rep�dio ao racismo sentido pela professora Isabel Oliveira no bairro Gua�ra, em Curitiba, e pela den�ncia do advogado Vin�cios de Paula em Alphaville, na regi�o de Barueri, na Grande S�o Paulo. � �bvio que a palavra final da nota foi de uma pessoa branca, porque eles n�o sabem, mas pessoas negras podem identificar diversos problemas que s�o invis�veis aos olhos das brancas.
Em rela��o � den�ncia de racismo do Vin�cius, em que ele teve o atendimento negado por uma das profissionais do caixa, a solu��o encontrada pelo Carrefour foi fazer o desligamento da funcion�ria. Isso mesmo: eles demitiram a funcion�ria, o que nitidamente contradiz com a efici�ncia do curso antirracista contratado e t�o publicizado pelo supermercado para capacitar seus funcion�rios. Se esse projeto de capacita��o junto � faculdade Zumbi dos Palmares realmente fosse levado a s�rio pela empresa, eles n�o teriam demitido a funcion�ria, e, sim, dariam a ela a oportunidade de fazer o curso, n�o � mesmo?
Ser� que n�o est� na hora de aprendermos alguma coisa com o Carrefour? Estou certa de que j� passou da hora de n�s, consumidores negros – ou n�o –, “demitirmos” esse grupo empresarial que compra t�tulo de antirracista contratando e fazendo acordo com alguns negros de destaque para faz�-los de escudo, invalidando e minimizando as den�ncias de racismo presentes e futuras. J� deu para perceber que colocar o apresentador Manoel Soares em suas publicidades n�o minimizou as pr�ticas racistas dessa institui��o, mas trouxe o argumento subliminar recorrente e enfadonho de que: “n�o somos racistas temos at� um garoto propaganda negro”.
Engana-se muito quem acha que empresas que sediam o racismo de forma recorrente, como � o caso do Grupo Carrefour, t�m mais a agregar ao nosso pa�s do que os danos que causam. A manuten��o do lucro e do privil�gio � feita de uma maneira que desafia leituras das rela��es raciais feitas de forma simplistas. Quem nos mata, nos humilha, nos discrimina motivado pelo racismo, n�o deveria ter a oportunidade de desenvolver alega��es em um ve�culo t�o poderoso, como � a televis�o, e que acabam se tornando justificativas para continuarem impunes, sem responderem criminalmente pelo assassinato e pelos diversos crimes de racismo. Se o Carrefour fechar as portas hoje, outras redes se ampliam e absorvem as m�os de obra qualificadas que, hoje, possuem v�nculo empregat�cio com o Carrefour. Essas mesmas redes v�o ficar alertas quanto ao racismo, porque saber�o que tamb�m correm o risco de serem “demitidas” se forem reincidentes no crime de racismo.
A pergunta que eu deixo �: Porque o Carrefour pode demitir a funcion�ria racista e n�s temos que dar uma nova chance oferencendo curso antirracista para eles? A maior armadilha do opressor � manter o oprimido ocupado ensinando a ele o que ele j� sabe e n�o quer colocar em pr�tica.