
Se tem uma atitude recorrente que eu sempre vi com naturalidade dentre diversas pessoas com ascend�ncia europeia era a forma como elas enfatizavam, e ainda enfatizam, ao verbalizarem com orgulho que eram ou s�o descendentes de portugueses, italianos, poloneses, alem�es e por a� vai. Olhar natural esse, que percebi n�o ser rec�proco quando me vi e ouvi outras pessoas negras afirmarem que s�o descendentes de africanos. Afirmar uma ascend�ncia africana causa estranhamento e at� mesmo um sentimento de afronta �s mesm�ssimas pessoas que se afirmam da linhagem europ�ia e t�m o privil�gio de poder reivindicar a cidadania do pa�s de origem dos seus antepassados. J� que os ascendentes dos mesmos nos tiraram o direito de saber de qual pa�s s�o os nossos ancestrais.
Ao afirmarmos que somos descendentes de africanos, mesmo sem saber ao certo se somos do Benim, da Angola, de Gana, da Nam�bia, de Senegal ou de qualquer outro pa�s, gera mais inc�modo do que afirmarmos equivocadamente que somos descendentes de escravos e agirmos como tal. At� porque nunca vi essas pessoas se sentirem afrontadas ou constrangidas quando se � dito que “somos descendentes de escravos”, mas o olhar de desconforto se d� quando reformulamos essa frase impregnada no senso comum para: somos descendentes de um povo livre que foi escravizado. Portanto, se temos uma ascend�ncia de um povo livre que foi escravizado, um outro povo os escravizou, n�o � mesmo? Ent�o, porque ser� que os descendentes de europeus, ao inv�s de dizerem que descendem de portugueses, franceses ou espanh�is, n�o naturalizam e verbalizam que s�o descendentes de escravocratas?
O processo de assumir o protagonismo da pr�pria hist�ria de vida e n�o mais se comportar como antagonista da hist�ria de vida das pessoas brancas � perpassado por diversas viol�ncias simb�licas como hostilidades, desdenhos, e at� mesmo chacotas. Como bem demarca a nossa ancestral Neuza Santos, “Ser negro n�o � uma condi��o dada a priori. Ser negro � um vir a ser, ser negro � tornar-se negro” e � somente depois desse vir a ser que � poss�vel construir um amor pela negritude. Que fique destacado e “negritado” que o amor pela negritude n�o � sin�nimo de auto-estima, n�o se limita a amar a pr�pria corporeidade e entender que as caracter�sticas que demarcam o corpo socialmente como sendo negro s�o belas como versam maravilhosamente bem as m�sicas do Il� Ay�. Amar a negritude perpassa por compromisso pol�tico com a coletividade negra e, por esse motivo, n�o cabe de jeito algum na forma capitalista desse processo que nos escravizou e ainda nos explora.
bell hooks, uma outra ancestral, me ensinou que amar a negritude � perigoso em uma cultura supremacista branca. T�o amea�ador, uma brecha t�o grave no tecido da ordem social, que a puni��o � a morte, at� porque o �dio e o medo est�o entre os primeiros sinais que a negritude evoca na imagina��o p�blica dos brancos (e de todos os outros grupos que aprenderam que o jeito mais r�pido de demonstrar concord�ncia com a ordem supremacista branca � compartilhar suas suposi��es racistas). Para a bell, em um contexto supremacista branco tal qual esse em que vivemos, amar a negritude raramente � uma postura pol�tica refletida no dia a dia, mas o �dio � negritude, sim. Portanto, quando mencionada e praticada, � tratada como suspeita, perigosa e amea�adora.
Amar a negritude � n�o se render ao discurso elaborado pelos te�ricos brancos que fazemos parte de uma minoria social a partir dos crit�rios e epistemologias euroc�ntricas. Amar a negritude � parar de se enxergar enquanto minoria, pensar como minoria e aceitar de forma resignada o que � destinado �s minorias. Somos a maior parte da popula��o brasileira, segundo o IBGE. Amar a negritude � se conscientizar disso e n�o aceitar de maneira servil e subserviente as viol�ncias constantes, cont�nuas e crueis que atingem diretamente o seu povo negro.
Amar a negritude �, sim, dar o grito, mesmo quando a viol�ncia racista n�o � individualmente direcionada a voc� ou a um conhecido, amigo e familiar. Por isso, s� por isso, amar a negritude � perigoso, porque voc� acaba por desafiar a regra n�o dita, mas posta pela branquitude, de ousar amar um povo que ela conceitua, ainda hoje, como inferior, mesmo muitos e muitas de n�s j� bem sabermos que n�o �. Amar a negritude � saber que dizer que uma pessoa negra � bonita � redundante, amar a negritude � ter a consci�ncia que afirmar que uma pessoa negra � inteligente � outra redund�ncia e, por fim, destacar que as pessoas negras s�o unidas � uma redund�ncia maior ainda. Afinal, s� resistimos e seguimos vivos e vivas nessa m�quina genocida historicamente falando chamada Brasil por possuirmos uma ginga e uma uni�o t�o inteligente que, mesmo no n�o dito, sabemos que: se a coisa t� preta, a coisa t� linda.