
Quem nasceu e cresceu cercada por mulheres negras muito provavelmente j� perdeu as contas de quantas vezes ouviu “Eu sou forte para dor”. Falamos e interiorizamos esse legado que alguns chamam de resili�ncia, j� eu, demorei, mas compreendi que n�o passa do efeito do racismo na psique negra. Essa fala verbaliza o quanto estamos imersas no racismo estrutural a ponto de naturaliz�-lo, muitas vezes sem perceber o estrago que ele faz na nossa sa�de mental.
Essa cren�a coletiva come�ou com o contexto escravocrata como uma forma de resist�ncia ao trabalho desumano, aos estupros e outras torturas que essas mulheres foram submetidas. Mesmo passado mais de 130 anos, o modelo hier�rquico prevalece e o estere�tipo da mulher negra forte pra dor se propaga quase que como uma caracter�stica heredit�ria. Uma pequena frase que retira, mesmo que inconscientemente, a humanidade de uma pessoa e demonstra o quanto o racismo altera nossa habilidade de reconhecer nossos limites e respeit�-los.
Ser forte pra dor � uma estrat�gia multifacetada do racismo e do machismo que tem dado certo. Estrat�gia para que as mulheres negras se proponham a negar a sua humanidade e se sujeitem a trabalhos que exijam uma for�a f�sica acima do suportado saudavelmente para o seu corpo; a trabalhos insalubres que s�o remunerados com subsal�rios.
Mas n�o � apenas no mercado de trabalho que a viol�ncia ocorre. De acordo com o mapa da viol�ncia, enquanto o feminic�dio entre as mulheres brancas diminuiu, entre as mulheres negras s� aumenta. � essa mulher que leva o primeiro soco, se diz forte e se nega a denunciar porque tem medo, � dependente financeira e emocionalmente. � essa mulher que o l�der religioso convence que a viol�ncia do parceiro � uma prova��o e que ela � forte pra perseverar e que Jesus vai dar a vit�ria. Esse mito est� t�o presente no imagin�rio popular que faz com que um profissional da �rea da sa�de opte por n�o anestesiar uma mulher negra na mesa de parto, fazendo com que essa mulher sofra com uma viol�ncia obst�trica diferente das n�o negras.
Aqui, me lembro de uma frase que li em alguma bibliografia da academia, infelizmente n�o me recordo de quem: “tudo no mundo � mediado, at� a maneira como nos vemos”. Somos seres sociais e relacionais. O fato de as pessoas em nosso entorno terem dificuldades de apreciar mulheres negras da maneira que realmente somos e atribuir a n�s uma identidade baseada em v�rios estere�tipos negativos dificulta, e muito, o desenvolvimento de um autoconceito positivo. Vivenciar a dor do �dio racial ou testemunhar essa dor n�o significava compreender suas origens, sua evolu��o e seus impactos na nossa sa�de f�sica, mental e espiritual. A inabilidade de n�s, mulheres negras, de compreendermos o racismo no contexto pol�tico desse pa�s apenas reflete a extens�o de nossa vitimiza��o.
Nossa coluna j� se curvou demais em raz�o de um peso desproporcional que carregamos ao longo de nossa hist�ria. Se � pra levantar peso, que seja em uma barra na academia para proporcionar bem-estar f�sico. Retirar esse peso inclui, necessariamente, estar atenta ao campo discursivo, imagin�rio, enfim, todo o simb�lico que refor�a sua subalternidade ao propor que voc� � forte pra dor. � necess�rio guardar cuidadosamente for�as para viver, e n�o s� sobreviver. Ter uma boa reserva de for�as para desfrutar da t�o sagrada alegria. A luta s� vale a pena se tivermos vitalidade f�sica e sa�de mental para desfrutar da vit�ria. N�o vou falar para voc� pra esquecer que � negra e gozar �nica e exclusivamente da sua humanidade, at� porque j� fiz e conheci muitas mulheres que se propuseram a fazer isso, mas vai ter sempre algu�m para te lembrar e da forma mais cruel poss�vel.
Minha v� gostava de usar a sua for�a lembrando de sua negritude ouvindo e cantando Elza Soares. J� eu, confesso que me vejo morando em uma das m�sicas do Il� Ay�, na poesia da Cristiane Sobral ao deixar o meu cabelo em paz, me negando a lavar pratos, e na sagacidade da Kehinde no cl�ssico mais recente da literatura brasileira. � exercitando o auto afeto que se para de viver sob a demanda de uma necessidade forjada e socialmente hierarquizada nesse sistema no qual estamos inseridas. � exercitando o auto afeto que vamos construindo uma psique saud�vel e provando da dor somente o inevit�vel sem se sentir orgulhosa de ser forte pra ela e, sim, para ultrapass�-la quando estritamente necess�ria e imposta.