
� um equ�voco encarar a �gora, ber�o da filosofia grega, como lugar de intelectuais, pessoas bem-preparadas, pol�ticos, santos e artistas. A pra�a grega, tal qual conhecemos hoje, era um turbilh�o de gente comum, correndo para pagar as contas, trabalhar e garantir o p�o de cada dia. Pessoas como voc� e eu, saindo para a labuta di�ria em meio ao turbilh�o da cidade, mas, de vez em quando, parando em um ponto de �nibus qualquer para conversar a respeito das quest�es fundamentais da exist�ncia.
Durante muito tempo, mesmo no contexto dos estudos em filosofia, fantasiamos um espa�o nobre, frequentado por S�crates, Plat�o, Arist�teles e Di�genes. Lugar de eleva��o espiritual, cheio de discursos e f�rmulas para se viver melhor, o ber�o da filosofia tinha uma �urea, algo de m�stico.
Com o amadurecimento trazido pelos anos, percebemos que o caminho do fil�sofo n�o � maior que os passos que ligam o Mercado Central � Rodovi�ria. � nesses espa�os que encontramos gente comum, no meio de tantas decis�es, escolhas e desafios que, mesmo se junt�ssemos todos os livros de hist�ria da filosofia, n�o alcancar�amos a dimens�o dos conceitos criados nesses espa�os urbanos.
Conhecemos gente como seu Jos�, rec�m-chegado de Virgem da Lapa, deixando l� mulher e filhos para tentar a vida na cidade grande. Trouxe a roupa do corpo e a mala de viagem. Aprendeu a ler sozinho e construiu a profiss�o de marceneiro utilizando um martelo, serrote e chave de fenda. Recita Patativa do Assar� de cor e carrega no peito a ang�stia de uma escolha existencial: deixar a fam�lia para, paradoxalmente, sustent�-la. Em quinze minutos de conversa percebemos o drama da loteria gen�tica e as injusti�as do modo de produ��o.
O que separa seu Z� de outros brasileiros? Apenas o espermatozoide certo no momento certo. Caso tivesse estudado em um grande col�gio da capital seria, com certeza, gerente de alguma empresa, viajando para a Europa uma vez por ano. Com ele, nos perguntamos sobre o significado da meritocracia.
Subindo as avenidas, ruas e bares, passamos pelo centro da cidade e ouvimos o Pastor Jo�o, na Pra�a Sete de Setembro, vociferando contra os males do mundo e anunciando a ira divina diante dos problemas da humanidade. As drogas, o �lcool e a prostitui��o s�o os alvos prediletos do homem santo, que aponta um caminho de convers�o diante de uma humanidade corrompida. Do lado oposto, Chico ouve Bob Marley. Construindo um colar de sementes ele ri da Teologia da Prosperidade, pregando o amor e afirmando Jesus como primeiro Hippie da hist�ria, companheiro de Jo�o Batista. Imposs�vel n�o se lembrar do nazareno perguntando a Pilatos: o que � a verdade?
Aurora, respons�vel por sustentar tr�s crian�as, oferece um cart�o de tratamento dent�rio a pre�os populares. Usa sua voz durante seis a oito horas por dia, com a inten��o de chamar a clientela. Nunca recebeu sal�rio-m�nimo e s� pensa em levar para a casa o almo�o, agradecendo a Deus pelo fato de os meninos estarem na escola p�blica o dia inteiro e terem o privil�gio de duas refei��es di�rias, com caf� da manh� e almo�o. Na escola ainda tem aula de ingl�s! Possibilidade de os filhos se formarem, aprenderem a ler e a escrever. Com isso, ir�o comprar uma casa e alcan�ar�o uma vida melhor. No mesmo instante, � imposs�vel n�o pensar a respeito da m�o invis�vel do mercado diante da “m�e-vis�vel-no-mercado”.
Na rodovi�ria est� dona Marisa, descendo com o filho de um �nibus, vindo de Pomp�u. Deixou o trabalho de cabeleireira para acompanhar o ca�ula nas peneiras das escolinhas de futebol dos times da capital. Quando questionada sobre o motivo de um gesto t�o disruptivo, inovador e incerto, responde confiante: pela felicidade dele!
Como n�o se perguntar a respeito do fio t�nue que constr�i a hist�ria de cada um e cada uma, costurando sonho e realidade.
No mesmo espa�o, pois desconhe�o lugar mais filos�fico que a rodovi�ria, l�cus de econtros e despedidas, achados e perdidos, seu Justino est� chorando. O motivo de tamanha tristeza? Abandou o filho Miguel, aos tr�s anos de idade, por causa do alcoolismo. Hoje, � anirves�rio dele, completa 18 anos, morando na mesma cidade.
Ao receber not�cias acerca do alistamento militar, despertou o desejo em rev�-lo, n�o mais como uma crian�a, mas como homem feito. No entanto, se pergunta sobre a possibilidade de encontr�-lo e ser repelido por seu pr�prio sangue, tratado como covarde, incapaz de assumir a responsabilidade de educar algu�m. O homem de meia idade, natural de Sabin�polis, tem a passagem nas m�os, mas n�o sabe se embarca no �nibus de viagem ou se enterra a certid�o de paternidade uma vez por todas. Dilemas existenciais que pendulam entre o determinismo do destino e a liberdade de escolha.
N�o tenho d�vida de que, na companhia de S�crates pelos caminhos da cidade, atualizar�amos o “s� sei que nada sei”, percebendo nossa pequena exist�ncia como coreografia mixuruca diante do bal� infinito tocado pela m�sica urbana. Encontrando gente disposta a conversar, a pensar sobre os dilemas da vida, sobre as ang�stias existenciais e sobre as incertezas morais, perceber�amos que a p�lis � feita de ideias, sonhos e suor, pois o trajeto entre o Mercado Central e a Rodovi�ria possui mais mist�rios do que sonha nossa v� filosofia.