O Nilo Azul nasce num gigantesco lago no Norte da Eti�pia, a uns 750 quil�metros do mar. Entre o Lago Tana e o Mar Vermelho, o planalto da Eti�pia se imp�e de tal maneira que o Nilo Azul, em vez de seguir o caminho mais curto para o mar, escoa majestoso continente adentro, curvando-se eventualmente rumo ao Norte numa jornada ao encontro do Nilo Branco, que consome o dobro da dist�ncia de sua nascente at� o mar mais pr�ximo (cerca de 1.500 quil�metros).
Dali, somadas �s �guas do Nilo Branco que v�m de ainda bem mais ao Sul, o Nilo corta o Sud�o e o Egito, em paralelo ao Mar Vermelho, at� finalmente desaguar no Mediterr�neo. Uma jornada teimosa desse rio de milhares de quil�metros, rasgando a terra seca, que transportou boa parte da hist�ria da humanidade ao longo dos mil�nios.
Uma humanidade que vira e mexe fica aqu�m dos melhores anjos de sua natureza. Na fascinante Eti�pia, pa�s de culturas milenares, h� nove locais considerados patrim�nio da humanidade, dos quais tr�s ficam na regi�o do Lago Tana. Pois � nessa terra hist�rica que mais uma guerra desestabiliza a vida das pessoas.
O foco do conflito se d� na regi�o de Tigr�, terra do povo tigrino, e que fica na fronteira com a Eritreia, pa�s que tem uma hist�ria comum com a Eti�pia. O Nordeste da �frica, onde hoje est�o Sud�o, Eritreia, Djibuti, Som�lia e Eti�pia, � uma regi�o de fronteiras porosas, de povos que vivem atrav�s delas desde antes de serem constitu�das. H� tamb�m a din�mica dos estranhamentos internos entre povos que compartilham a mesma fronteira, em que acaba sobrando para o mais fraco, como � o caso da viol�ncia contra o povo tigrino.
Karl Deutsch, que no s�culo 20 pesquisou com influ�ncia as quest�es sobre guerra e paz na humanidade, quando indagado sobre os efeitos de certos nacionalismos na cria��o de guerras lembrava a ironia europeia, continente que ajudou a criar a confus�o atual africana, de que uma na��o nada mais � do que “um grupo de pessoas unidas por um equ�voco comum a respeito de suas ancestralidades e um desapre�o comum por seus vizinhos”. Seja dentro de uma gera��o, ou atrav�s de v�rias d�cadas ou s�culos, povos e na��es s�o acaso de migra��es. Muitas delas justamente causadas por conta de c�rculos viciosos de conflitos. Como � o caso do que aprisiona o potencial et�ope numa situa��o ruim de continuadas desaven�as demarcadas por sotaque, l�ngua e h�bitos culturais.
Era outono de 1943, quando as for�as italianas, exauridas, abandonaram a guerra de guerrilha que desde 1941 impunham ao solo et�ope. No mesmo outono na Europa, a It�lia fascista tinha sido reduzida � infame Rep�blica de Sal�. Quando o Estado italiano perdeu Gondar, em 1941, pr�xima ao Lago Tama, e sua �ltima capital da desastrada e anacr�nica aventura imperialista italiana na �frica, ainda ficaram por ali aterrorizando a popula��o por mais dois anos, se valendo do relevo que � prop�cio � guerra de mil�cias.
No Tigr�, o povo fala a l�ngua tigrina, que � a mais comum na fronteiri�a Eritreia. Em 2018, Abiy Ahmed assumiu o poder na Eti�pia e vinha conseguindo resolver uma s�rie de problemas pontuais que atormentavam o segundo pa�s mais populoso da �frica, dando um fim � guerra que travava com a Eritreia. Ganhou um festejado e esperan�oso Nobel da Paz por isso, mas agora suas for�as oficiais est�o em sangrento conflito com os tigrinos dentro de sua fronteira.
DESAFIO
Membro do maior grupo �tnico do pa�s, os oromos, Abiy, que � filho de um mu�ulmano com uma crist�, ter� que se esfor�ar ainda mais para pacificar as ciz�nias e superar birras assentadas em s�culos de rivalidade tribal. Meles Zenawi, membro dos tigrinos, governou com m�o de ferro a Eti�pia at� 2012, ficando famoso por duas coisas: ser um dos mais autorit�rios e repressivos governantes da �frica, enquanto recebeu, s� em 2010, US$ 3 bilh�es de ajuda do Reino Unido, dos EUA e do Banco Mundial. Abiy precisa ser melhor que isso, ap�s ser condecorado por antecipa��o. N�o d� para a Eti�pia viver ref�m dessa sucess�o de viol�ncias e autoritarismos.
Por esses dias, � ONU foi garantida, pelo governo et�ope, sua presen�a desimpedida na regi�o do Tigr� para tratar dos refugiados. As lideran�as oromos e tigrinas bem poderiam entrar em acordo que impe�a o conflito de se perpetuar em guerrilha por anos a fio.
Um acordo qualquer de boa conviv�ncia. Alguma coisa minimamente inspirada na Hist�ria de Rasselas, pr�ncipe da Abiss�nia, antigo nome da Eti�pia, uma hist�ria emocionante escrita por Samuel Johnson h� mais de 200 anos, em que ele exorta as pessoas a sempre buscar algo al�m do que a vida imp�e. E adverte aos poderosos: a gl�ria de ter poder sobre a mis�ria � a pior piada do mundo. (Com Henrique Delgado)