
Embora a Constitui��o Federal de 1988 assegure o livre exerc�cio de qualquer trabalho, o mesmo dispositivo legal prev� que para alguns casos � necess�rio que sejam atendidos certos requisitos legais, conforme se verifica do inciso XIII de seu artigo 5º, segundo o qual “� livre o exerc�cio de qualquer trabalho, of�cio ou profiss�o, atendidas as qualifica��es profissionais que a lei estabelecer”.
Tais entidades fazem parte da administra��o p�blica indireta. Sua cria��o decorreu da descentraliza��o das atividades do Estado, visando atuar em ramos espec�ficos (como a fiscaliza��o de atividades regulamentadas). Exercem, portanto, uma atividade p�blica, tendo o interesse p�blico como alvo, e n�o somente os interesses da classe � qual representam. Atuam vinculadas aos princ�pios da administra��o p�blica e, dentre uma s�rie de eventuais desatendimentos a estes, podemos citar como exemplo o “desvio de poder” (quando os atos n�o atendem ao interesse p�blico).
Tendo em vista esses fatos, essas autarquias t�m mesmo atendido ao interesse p�blico? Atualmente, esse � o questionamento de muitos, que entendem a constante “disputa” entre os conselhos como uma mera defesa da reserva de mercado de seus respectivos membros, sobretudo em rela��o aos procedimentos est�ticos, que t�m sido o grande piv� dessa disputa.
Atualmente, al�m dos m�dicos, temos os biom�dicos, enfermeiros, farmac�uticos, dentistas e at� fisioterapeutas atuando na �rea est�tica. Isso sem falar no esteticista, profiss�o regulamentada pela Lei 13.643/18, que compreende ainda o cosmet�logo e o t�cnico em est�tica. E, em meio a uma verdadeira “guerra dos conselhos”, cada qual defendendo mais autonomia a seus membros, a justi�a tem atuado cada hora em um sentido diferente, tornando tudo ainda mais confuso.
No caso dos enfermeiros, os procedimentos est�ticos foram previstos pela Resolu��o nº 529/16 do COFEN (suspensa pelo Tribunal Federal da 1ª Regi�o, alegando exerc�cio ilegal da medicina). Em 2020, o COFEN publicou a Resolu��o 626, criando a figura do “enfermeiro esteta” e listando os procedimentos autorizados.
Os biom�dicos atuam na est�tica com base nas Resolu��es do CFBM 197/2011 (que prev� procedimentos invasivos n�o cir�rgicos), 200/2011 (que cria a figura do “biom�dico esteta”) e 214/2012 (que elenca as subst�ncias que podem ser usadas), todas elas questionadas pelo CFM.
Em rela��o aos farmac�uticos, o CFF publicou a Resolu��o 573/2013 que prev� a atua��o na sa�de est�tica (questionada pelo CFM por afronta ao ato m�dico). Decis�es judiciais autorizaram os procedimentos est�ticos n�o invasivos. As resolu��es 573/2013, 616/2015 e 645/2017 do CFF indicam os procedimentos autorizados.
Sobre os dentistas, a “harmoniza��o orofacial” foi reconhecida como especialidade pela Resolu��o CFO 198/2019. A justi�a autorizou o uso da toxina botul�nica, n�o o considerando invasivo, e em seguida a laserterapia e a bichectomia. Em 2020, a Resolu��o 230 do CFO vetou procedimentos como a blefaroplastia e a rinoplastia (dentre outros), mas existem in�meros questionamentos e decis�es na justi�a.
Se por um lado o CFM busca enquadrar os procedimentos est�ticos como invasivos e limitar a atua��o dos outros profissionais, de outro lado os demais conselhos e profissionais alegam o contr�rio, e buscam garantir seu direito de atua��o.
Nesse contexto, diante da total desconex�o cient�fica entre os conselhos federais (que sequer se entendem sobre o que � ou n�o invasivo), a justi�a tem decidido quest�es sobre as quais os pr�prios conselhos possuem conhecimento infinitamente maior, mas n�o entram em acordo, passando � sociedade a impress�o de travarem uma disputa de car�ter exclusivamente corporativista.
Notamos que, na maior parte das disputas, o CFM sustenta que a incapacidade dos demais profissionais para atuar em procedimentos invasivos coloca os pacientes em risco de deformidades, e at� de �bito, por falta de conhecimento t�cnico e cient�fico. Argumento considerado razo�vel por grande parte dos interlocutores. Contudo, outros apontam uma grande contradi��o na narrativa do conselho.
Isso porque o pr�prio CFM n�o exige que um m�dico seja especialista para atuar em qualquer ramo da medicina, podendo exerc�-la em sua plenitude nas mais diversas �reas, sendo vedada somente a divulga��o de especialidade que n�o possui. Ora, se s�o exigidos pelo pr�prio CFM, a t�tulo de exemplo, 6 anos de resid�ncia m�dica para se tornar um cirurgi�o pl�stico, qual o sentido de permitir que qualquer um atue na especialidade, sem tal imers�o de aprendizado? Sob esse prisma, muitos entendem que a veda��o do CFM t�o somente da divulga��o de especialidade que n�o possui (mas n�o de a praticar) chega a ser absurda. Sem d�vidas, um argumento pertinente.
O crime de exerc�cio ilegal da medicina encontra-se previsto no art. 282 do C�digo Penal: “Exercer, ainda que a t�tulo gratuito, a profiss�o de m�dico, dentista ou farmac�utico, sem autoriza��o legal ou excedendo-lhe os limites”. Vemos que n�o se enquadra na conduta somente quem n�o possui a devida autoriza��o, mas tamb�m quem “excede seus limites”. Para muitos especialistas, seria este o caso dos que atuam sem a devida titula��o. Outro argumento interessante.
Por outro lado, temos um contra-argumento bastante plaus�vel: um m�dico com 30 anos de experi�ncia em uma determinada �rea, mas sem deter o t�tulo de especialista, n�o teria at� mais condi��es t�cnicas de conduzir uma cirurgia invasiva de alta complexidade do que um rec�m-titulado? Sem d�vidas, vale a reflex�o.
Se h� fortes argumentos contra a posi��o sustentada pelos demais conselhos federais, o CFM tamb�m n�o escapa da cr�tica, conforme exposto. Contudo, n�o pretendemos aqui fazer um ju�zo de valor sobre o tema, mas somente discorrer sobre os fatos e argumentos de cada lado, at� porque tamb�m nos falta conhecimento t�cnico e cient�fico para nos posicionarmos. Mas expor os fatos e cobrar que os conselhos se entendam e visem o interesse p�blico em primeiro lugar, al�m de um direito, � obriga��o de todos.
O tema enfrentado � de alt�ssima complexidade. Ningu�m possui mais legitimidade e conhecimento t�cnico para enfrent�-lo sen�o os pr�prios conselhos profissionais das classes envolvidas. Contudo, tal enfrentamento deve ocorrer livre de v�cios e corporativismo (e se poss�vel, livre do Poder Judici�rio), de forma que as autarquias cumpram seu papel junto � sociedade e conduzam a atua��o de suas classes profissionais atendendo � sua fun��o social para que a sociedade n�o siga totalmente perdida (assim como os pr�prios profissionais) entre resolu��es contradit�rias, pareceres corporativistas e decis�es judiciais conflitantes.