
"Logo ela deixou de se lembrar de mim. No come�o eu falava, 'olha, sua filha chegou'" L�gia Galli
"Eu n�o tenho saudade do p�o que ela fazia, da roupa que ela costurava. Eu tenho saudade do sorriso, que � a presen�a dela mesmo." Ivani Alexandre
"Eu falei, 'm�e, voc� entrou na contram�o, voc� quase se matou e matou o Matheus junto'… ela falou, 'nossa, eu fiz isso?'" Denise Marques
Quando tudo de uma pessoa parece ter ido embora — identidade, linguagem, habilidades, mem�ria…—, onde fica guardado o amor?
Nesta reportagem, tr�s mulheres cujas m�es viveram ou vivem hoje com dem�ncia e uma m�dica geriatra compartilham vis�es sobre a doen�a que podem surpreender muita gente.
"Quando voc� recebe um diagn�stico de dem�ncia de um ente querido seu, parece que tudo acabou", diz a geriatra Celene Pinheiro. "S� que nem sempre � assim."
"Foram os melhores anos da vida dela e os melhores anos dela comigo", diz Denise.
Ao compartilhar suas hist�rias e reflex�es, as entrevistadas v�o tamb�m oferecendo suas respostas para quest�es comuns entre pessoas afetadas pela dem�ncia.
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Como cuidar bem de algu�m que tem dem�ncia? Colocar um ente querido com dem�ncia em casa de repouso � abandon�-lo? Como o idoso com dem�ncia pode ser inclu�do na sociedade e quem se beneficia com isso? At� que ponto no desenvolvimento da dem�ncia a pessoa � capaz de se sentir amada ou hostilizada?
E quando aceitam fazer seus depoimentos, as mulheres (e sim, � sobre elas que recai, na grande maioria dos casos, a responsabilidade de cuidar) expressam um desejo em comum: contribuir para que a sociedade conviva melhor com uma doen�a que, segundo a Organiza��o Mundial de Sa�de (OMS), afeta hoje 50 milh�es de pessoas no mundo e deve afetar mais de 150 milh�es em 2050.

Denise e Eneide - Alzheimer, um recome�o?
Denise Marques tem 54 anos e � terapeuta. Sua m�e, Eneide Marques Cavalcante, recebeu o diagn�stico de doen�a de Alzheimer em janeiro de 2015 e faleceu em dezembro de 2019 aos 85 anos.
"A minha m�e teve Alzheimer, � uma doen�a que quando a gente ouve a respeito, assusta. Mas eu aprendi que o Alzheimer n�o � terr�vel como falam."
Eneide tinha uma defici�ncia: ela nasceu sem a cabe�a do f�mur, o maior osso da perna.
"Minha m�e foi criada pelos meus av�s com muito amor, carinho e cuidado, devido � defici�ncia dela. E a� eu imagino o choque que ela teve quando se viu num casamento totalmente abusivo. E ela n�o conseguia sair porque meu pai amea�ava que se ela se separasse ele mataria todos n�s — eu, minha m�e e meus av�s."
No relato de Denise, o horror da viol�ncia dom�stica vivenciada por ela e outros familiares momentaneamente toma lugar central na narrativa.
"Quando meu pai chegava em casa, j� estava todo mundo tremendo. De que jeito ele ia chegar? Ele voltava alcoolizado, uma for�a, entortava a torneira, arrebentava a geladeira. Era uma coisa muito violenta."
Mais adiante, veremos que, sobre o pano de fundo dos 35 anos de abuso f�sico e psicol�gico que Eneide viveu, a doen�a de Alzheimer que ela desenvolve ter� um papel singular em sua vida — e na de sua filha.
Denise conta que seu pai morreu em janeiro de 1997, mas a m�e nunca se recuperou da viol�ncia que sofreu e come�ou a fazer tratamento para depress�o. Epis�dios estranhos, como aquele em que Eneide entra na contram�o em uma rua movimentada de Campinas e depois n�o se lembra do que fez (epis�dio descrito no in�cio dessa reportagem), s�o para Denise um pren�ncio do que estava por vir.
"Eu entendo que o Alzheimer � uma doen�a muito sorrateira, silenciosa", diz.
Dez anos mais tarde, Eneide tornou-se paciente da geriatra Celene Pinheiro.

"Eu conheci e acompanhei a dona Eneide por pelo menos dez, doze anos", diz a m�dica. "E uma coisa que chamava muito a aten��o no relacionamento das duas � que ambas se tratavam muito mal."
"Quando elas chegavam � cl�nica, nesse relacionamento conflituoso — a filha falava �s vezes de forma r�spida com a m�e — as minhas secret�rias j� vinham: 'doutora, nossa, como ela trata mal a m�e! Coitada da nona Eneide!'. E eu falava: 'gente, calma. A gente n�o deve julgar. A gente deve ouvir. E entender o cen�rio onde essa rela��o se construiu.' E foi o que acabou acontecendo", conta Celene.
Em seu depoimento, Denise oferece pistas sobre como era o relacionamento com a m�e: "A Eneide que eu conhecia era extremamente r�gida. Eu a chamava de general."
"Quando eu comecei a namorar a Vera, a minha m�e n�o aceitou de jeito nenhum", ela recorda. "Ficou muito indignada e n�o permitia que eu conversasse com ela sobre isso."
De repente, a rela��o entre m�e e filha se transforma, conta Celene.
"Quando ela (Denise) leva (Eneide) para a institui��o, e a dem�ncia da dona Eneide avan�a mais um pouquinho, a hora que eu vejo, as duas come�am a se relacionar de uma forma leve, bem humorada, alegre, afetuosa. Um afeto muito grande da Denise para com a Eneide."
A m�dica conta que n�o entendia o que estava acontecendo. At� que, um dia, quando visitava sua paciente na cl�nica de repouso, Denise lhe falou do casamento com Vera, e da recusa da m�e em aceitar a homossexualidade da filha.
Mas o Alzheimer mudaria tudo isso.

"Quando a dona Eneide desenvolve a dem�ncia, essas conven��es sociais caem por terra", conta Celene. "E ela come�a a dar espa�o para essa aproxima��o que, eu acho, a Denise desejava tanto."
Dois anos ap�s a morte de Eneide, em entrevista por Zoom � BBC News Brasil, Denise ri, maravilhada, ao recordar os �ltimos quatro anos na vida da m�e. N�o ficou nada mal resolvido, diz.
"Quando a minha m�e chegou nesse n�vel maior do Alzheimer, virou a chavinha. Como se essa coura�a que ela desenvolveu para se proteger de tanto sofrimento na vida tivesse ca�do, vindo abaixo."
"E a� foram os melhores anos da minha m�e, e os melhores anos meus com ela. Conheci aquela mulher alegre, risonha, que fazia todo mundo sorrir. Carinhosa, abra�ava, beijava. Foi uma coisa incr�vel. Eu vejo que o Alzheimer deu para a minha m�e e para mim uma oportunidade de a gente fazer um resgate. Foi uma hist�ria linda."
Os efeitos inesperados da dem�ncia
Na experi�ncia de Eneide, a doen�a de Alzheimer n�o apagou apenas regras e conven��es sociais. A dem�ncia fez tamb�m o que anos de terapia e medicamentos n�o tinham conseguido fazer: eliminou da mem�ria de Eneide sua experi�ncia traum�tica de viol�ncia.
"No caso da Eneide, a dem�ncia foi um presente, porque ela p�de apagar essa mem�ria muito triste e p�de voltar a ser a pessoa alegre que ela era antes", reflete Celene. Mas, infelizmente, n�o � assim para todos, diz a m�dica.
"Eu conhe�o uma senhora que at� hoje repete: 'n�o bate na crian�a'. Porque o marido dela era muito violento com os filhos. At� hoje ela verbaliza isso: 'Ai, coitadinha, n�o bate.' Tem pessoas que ficam com essas recorda��es por terem um valor afetivo muito grande."

L�gia e �urea - Levar pessoa com dem�ncia para a institui��o � abandonar?
A dona de casa L�gia Galli tem 59 anos. Sua m�e, �urea Moraes Galli, tem 81 anos e recebeu o diagn�stico de dem�ncia em 2012. Desde ent�o, �urea vive em uma institui��o de longa perman�ncia (ILPI).
"Minha m�e sempre foi uma pessoa ativa, prestimosa com a casa, com os cuidados com os filhos. Fazia tric�, croch�, bordado. Ela cozinhava extremamente bem, fazia pinturas a �leo lind�ssimas", conta L�gia.
"Ent�o eu notei muita diferen�a, retomando, ap�s a morte do meu pai. Quando eu ia visit�-la, a casa estava muito suja, muito largada, com um cheiro ruim, comida estragada na geladeira. Era uma coisa que chocava a mim porque minha m�e n�o passava nem perto de um tipo de comportamento assim."
Logo, L�gia percebe que a m�e n�o pode mais viver sozinha. Seu depoimento nos remete a um dilema quase universal entre pessoas afetadas pela dem�ncia: cuidar em casa ou levar para uma ILPI?
"V�rias pessoas falaram em colocar minha m�e numa cl�nica, mas para mim, naquele momento, aquilo era impens�vel. Aquela ideia de que a gente vai abandonar o idoso, largar aos cuidados de estranhos", diz.
L�gia decide levar a m�e para morar com ela em Indaiatuba, interior de S�o Paulo. Ela conta que, no come�o, sua filha, que tinha 7 anos de idade, achava certas situa��es engra�adas.
"Porque minha m�e ainda mantinha um bom humor", lembra. "Com piadas, com coisas engra�adas, que come�aram a ser misturadas com momentos de raiva, mau humor, desespero, de falar sozinha, de tirar a fralda e guardar as fezes em gaveta."
"Come�ou um drama muito grande", lembra L�gia. De um lado, a filha, aos prantos. De outro, uma m�e que agora precisava de aten��o 24 horas por dia.
"E quanto mais dif�cil a situa��o ficava, mais eu achava que tinha de ser capaz de cuidar", lembra.
Para ter um pouco de descanso, L�gia come�a a levar �urea para passar o dia em uma cl�nica.
"Quando eu chegava em casa, o dia que ela ficava em casa, eu abria a porta e sentia o cheiro de fezes. Eu brigava com ela. Sentava no banheiro, fechava tudo, chorava, chorava. Sen�o eu ia realmente perder a paci�ncia com ela."
Do consult�rio, a geriatra Celene Pinheiro acompanhou a luta de L�gia para cuidar da m�e.
"A L�gia � minha paciente. Ela veio me contando como foi o diagn�stico da m�e, de doen�a de Alzheimer."
"Ela estava se desdobrando, se desgastando, sofrendo, at� que ela fala: 'meu Deus, s� tem uma sa�da: pedir ajuda especializada'", recorda a m�dica.
Mas L�gia ainda precisou de um �ltimo empurr�o. Um dia, ela recebe um telefonema da cl�nica onde a m�e estava passando o dia. �urea tinha ca�do e sofrido v�rias fraturas.
"Depois desse acidente, para mim ficou claro que ela tinha de ir para uma cl�nica de longa perman�ncia", diz L�gia.
"Minha prima ainda brincou: 'coitada da tia Aurinha. Deus teve que quebrar a sua m�e toda para voc� entender que era hora de levar ela para uma cl�nica. Para ter um tratamento adequado e voc� tamb�m, de ficar cuidando de voc� e da sua filha.'"

Quando voc� leva um idoso com dem�ncia para uma ILPI, est� atendendo a uma necessidade dele, diz Celene Pinheiro.
"Eu falo para os filhos dos meus pacientes, voc� sabe ler e escrever? Quando seu filho entrou na idade de ser alfabetizado, voc� levou para a escola, para que ele fosse alfabetizado por especialistas em fazer isso. N�o est� abandonando seu filho."
Quando se trata de um idoso com dem�ncia, voc� tem de pensar assim, prossegue a m�dica. "Voc� sabe cuidar, mas �s vezes a pessoa precisa de algo a mais."
Livre da responsabilidade de cuidar, L�gia passa a se relacionar com a m�e de maneira diferente.
"Ela me disse que pela primeira vez, depois de muito tempo, se sentia filha da m�e dela", diz a geriatra.
E � como filha que L�gia viver� um encontro inesquec�vel com a m�e.
"Um dia, cheguei em uma visita e estava t�o triste, t�o abalada, com tanto problema da minha filha, do meu marido, falta de dinheiro…", conta.
"Minha m�e estava no terra�o sozinha, sentei e comecei a conversar com ela. At� hoje eu converso com ela, como se ela entendesse. Acaba saindo sem querer e acho que alguma coisinha sobra, l� dentro da cabecinha dela. E eu deitei no colo dela. E chorei tanto, tanto. Falei, 'poxa m�e, estou com tanto problema'."
L�gia continua.
"Ela passou a m�o na minha cabe�a e falou: 'ah, coitadinha, ela t� triste.' E falou: 'eu te amo'. Foi a primeira vez, na minha vida, que eu ouvi a minha m�e falar 'eu te amo'. Eu chorei muito, e em seguida ela come�ou a cantar 'boi, boi, boi, boi da cara preta…'. Que � uma m�sica que ela canta at� hoje."
"Foi um consolo", conta. "O momento de amor que eu nunca tinha recebido da minha m�e a minha vida inteira. Recebi aquele dia."
Em seguida, sorrindo entre as l�grimas, L�gia pede: "Voc� tem um lencinho a� pra mim?"

Como se comunicar com quem tem dem�ncia? O poder da linguagem n�o verbal
Ao ler o relato desse precioso encontro entre m�e e filha, alguns talvez se perguntem: mas ent�o, onde � que estava esse sentimento que �urea expressa? Onde fica guardado o amor?
Talvez n�o haja uma resposta, claro. Mas o epis�dio sugere que pessoas com dem�ncia s�o, sim, capazes de sentir e expressar amor.
Para Celene, essa hist�ria ilustra a import�ncia da comunica��o n�o verbal com pessoas que t�m dem�ncia.
"Se a L�gia falasse para a m�e, 'm�e, eu estou triste', talvez a m�e n�o compreendesse porque, muitas vezes, ela n�o entende o significado da palavra em si. Mas � medida que ela deita no colo da m�e, se coloca nessa posi��o de fragilidade e chora, e externa esse sentimento dela, a m�e percebe pela posi��o, e pelo choro, a situa��o que a filha est� passando. E a� ela compreende, e fala: 'tadinha, ela est� triste'."
Na verdade, pondera a m�dica, n�o se trata de entender com a raz�o.
"Ela entendeu da forma como ela podia, ou (melhor), acho que ela n�o entendeu, ela sentiu. Tem coisas que n�o passam pelo campo da compreens�o, passam pelo campo do sentimento."
Por outro lado, observa a m�dica, uma express�o facial hostil, ou alarmada, pode assustar a pessoa que tem dem�ncia.
"Isso � muito n�tido. �s vezes, voc� pode falar uma coisa que n�o seja agressiva, mas por uma fei��o agressiva, a pessoa se assusta."
Um dilema e um privil�gio
Antes de concluirmos a hist�ria de L�gia e �urea, � importante ressaltarmos que, para a grande maioria dos brasileiros, o dilema vivido por L�gia — cuidar em casa ou na institui��o? — � quase um privil�gio. E por que privil�gio?
Segundo Celene Pinheiro, que al�m de geriatra � tamb�m presidente volunt�ria da regional paulista da Associa��o Brasileira de Alzheimer e Outras Dem�ncias (ABRAz), estima-se que entre 1,5 e 2 milh�es de pessoas vivam hoje com alguma forma de dem�ncia no Brasil.
Faltam estudos sobre o tema, a m�dica explica, e os n�meros s�o imprecisos. Ainda assim, aqui v�o dados preliminares fornecidos pela Frente Nacional de Fortalecimento �s ILPIs:
- Haveria 7 mil ILPIs no Brasil, abrigando por volta de 300 mil idosos.
- Dessas ILPIs, 5% apenas seriam p�blicas. Outras 35% seriam filantr�picas (muitas das quais pagas) e 60% particulares.
- Entre as pagas, as mensalidades oscilariam entre 70% de um sal�rio m�nimo e R$ 20 mil reais.
Ou seja, h� uma car�ncia gritante de ILPIs no pa�s. E entre as institui��es que existem, a maioria est� fora do alcance do brasileiro comum.
Para esses brasileiros, a mensagem da geriatra �: pe�a ajuda.
"Procure a assistente social no posto de sa�de mais pr�ximo", ela sugere. "Busque saber que recursos est�o dispon�veis. Medicamentos? Fraldas?"
Ela prossegue.
"� importante que a fam�lia se sensibilize e se mobilize para cuidar desse idoso. Muitas vezes, fica uma s� pessoa cuidando, isso � muito cruel com quem cuida", comenta.
Por fim, diz Celene, as institui��es de apoio (entre elas a ABRAz) oferecem uma gama de servi�os. Aconselhamento jur�dico, por exemplo.
"�s vezes, a orienta��o jur�dica permite que a pessoa viabilize recursos para cuidar desse idoso."
As associa��es tamb�m oferecem suporte emocional e oportunidades para que cuidadores e outras pessoas afetadas pela dem�ncia se encontrem, se apoiem mutuamente, troquem experi�ncias e recebam informa��es pr�ticas sobre como cuidar, explica.
A m�dica deixa claro que tudo isso est� longe de ser suficiente. Mas diz que profissionais de sa�de como ela e entidades de apoio v�m pressionando autoridades e pol�ticos para que promovam mais pesquisas sobre as dem�ncias e aumentem a oferta de servi�os e de institui��es p�blicas para pacientes.
N�o por acaso, acaba de ser aprovado no Senado um projeto de lei que institui uma pol�tica nacional de enfrentamento � doen�a de Alzheimer e outras dem�ncias.
"Vamos avan�ar para aumentar o acesso ao cuidado de qualidade e �s institui��es", diz.
Mas nem todo paciente com dem�ncia precisa ser cuidado em uma institui��o. A hist�ria que encerra essa reportagem � uma experi�ncia de cuidar bem — em casa.

Ivani e Luzia - O que � um bom evoluir da dem�ncia?
Ivani Alexandre, professora aposentada, tem 59 anos. Sua m�e, Luzia da Silva, com 81 anos, vive com Alzheimer e outras dem�ncias h� pelo menos 8 anos.
"Minha m�e costurava, quando foi para a minha casa ainda costurou. Costurou uma colcha de retalhos maravilhosa, mas nos �ltimos retalhos foi muito dif�cil, e eu falo que essa colcha de retalhos foi a hist�ria da minha aceita��o."
"Eu insistindo e e eu percebendo que cada dia ela tinha uma dificuldade. Ela n�o gravava o que tinha feito no dia anterior e a gente come�ava do zero. Sempre come�ando do zero. Mas foi super bacana essa colcha, e a� eu entendi."
Celene Pinheiro diz que come�ou a atender Luzia em 2012.
"A Ivani percebeu que era entrando nesse mundo de novas necessidades da dona Luzia, e atendendo a essas necessidades, que ela ia conseguir tanto estimular a dona Luzia como tamb�m trazer muito mais conforto e serenidade", diz.
As dem�ncias s�o doen�as degenerativas e progressivas, diz a m�dica. Elas v�o piorar — mas podem evoluir de formas diferentes.
O bom evoluir da dem�ncia se apoia em dois grandes pilares, explica. Um � a sa�de geral do paciente — que depende de fatores como boa alimenta��o, exerc�cios f�sicos e o controle de doen�as cr�nicas como diabetes, por exemplo.
O outro grande pilar tem a ver com as intera��es sociais, a qualidade do ambiente, o entorno da pessoa.
"Tem casos de pessoas que t�m diagn�stico de dem�ncia h� bem mais de dez anos e est�o est�veis porque t�m engajamento social, uma viv�ncia interessante com a fam�lia, uma vida bem organizada no sentido da rotina", diz. "Voc� v� que essas pessoas evoluem melhor."
Aqui, a m�dica toca em um ponto central ao novo jeito de pensar a dem�ncia que surge no Brasil e no mundo: chega de segrega��o. A pessoa com dem�ncia precisa ser inclu�da na sociedade, ela defende.
Como incluir a pessoa com dem�ncia e quem ganha com isso?
Como educadora, Ivani j� tinha familiaridade com o conceito de inclus�o. Ela conta que, quando era professora de educa��o f�sica, adorava ver crian�as com defici�ncia e sem defici�ncia fazendo aula juntas. Ela diz � BBC News Brasil que, hoje, pratica inclus�o em casa, com a m�e.
A fam�lia mora em uma ch�cara. Luzia � incentivada a contribuir com pequenas tarefas, como debulhar feij�o, por exemplo.
"A coordena��o fina dela ainda � muito boa", explica.
Mas a hist�ria vai ficar ainda mais interessante. Por causa da pandemia, a neta de Ivani, Dyanna, com 4 anos de idade, vem passar uma temporada na ch�cara.
Agora, s�o quatro gera��es em conviv�ncia: Luzia, Ivani e seu marido, o filho do casal e a neta. "A gente foi construindo um relacionamento", conta.
Bisneta e bisav� passam a fazer refei��es juntas. Luzia torna-se "a ajudante" de Dyanna e participa das atividades escolares. "Minha m�e sempre prestativa", comenta Ivani. "Afinal, ela quer ser �til."
"Por exemplo, meu filho e minha neta fizeram um bilboqu� e a minha m�e brincou junto", lembra. "Ela mostrou uma habilidade, todo mundo ficou admirado, aplaudiu, e ela ficou toda feliz, sorridente."

Ivani n�o se esquiva de falar do aspecto mais dolorido dessa conviv�ncia com a dem�ncia.
"Sinto falta do sorriso, que � a presen�a dela mesmo. N�o gosto muito quando ela est� com aquele ar ausente, isso me machuca. E a minha neta trouxe essa vivacidade para a minha m�e."
Luzia, por sua vez, tamb�m oferece a Dyanna oportunidades de se incluir e fazer sua contribui��o.
"Havia alguns momentos em que minha m�e falava para a Dyanna: 'ah, vou embora'."
"Ela levantava, ia saindo, e n�o dava tempo de a Dyanna vir contar para mim, para eu tomar uma atitude."
Esse, ali�s, � um quadro comum entre pacientes com dem�ncia. Durante certos per�odos do dia, ficam inquietos e come�am a vagar, for�ar as portas e querer ir embora. M�dicos chamam esse comportamento de S�ndrome do P�r do Sol. Dyanna logo aprende a lidar com ele.
"Ela corria atr�s da minha m�e, pegava pela m�o e explicava: 'n�o, bisa, voc� mora aqui.' A� ela levava a minha m�e no quarto: 'olha, aqui � seu quarto, aqui � seu banheiro.' Ela estava repetindo os gestos que tinha me visto fazer", conta. "Ela se prontificou a ser cuidadora tamb�m."
O depoimento de Ivani � repleto de momentos encantadores, em que bisav� e bisneta parecem habitar um mundo s� delas. Dyanna e Luzia pescando. Dyanna sentada na poltrona ao lado da cama da bisav�, trocando hist�rias.
"A conversa ia longe! E eu ouvindo atr�s da porta, para saber se estavam fazendo arte."
E o epis�dio em que Dyanna tenta convencer a a av� a sentar em um pequenino balan�o, feito sob medida para a crian�a.
"Se eu n�o tivesse surtado, eu deveria ter filmado: 'N�o, bisa, senta aqui, p�e uma perna, depois p�e a outra… n�o, n�o tem problema, n�o vai acontecer nada'."
Ivani ri, deliciada, ao recordar o epis�dio.
"E minha m�e simplesmente indo… n�o t�m amarras, nenhuma das duas."
Poder trocar hist�rias, conviver e participar da vida da fam�lia eleva muito a autoestima da pessoa que tem dem�ncia, diz Celene. Mas para a geriatra, a hist�ria de Ivani, Luzia e Dyanna mostra que n�o s� o idoso se beneficia.
"A crian�a tamb�m, come�a a perceber o outro, a n�o olhar s� para si."
"E ganha a cuidadora Ivani, que aprendeu tanto e tem tido momentos t�o ricos de conv�vio."
Dizendo adeus aos poucos
Ao longo de v�rias entrevistas � BBC News Brasil, Celene Pinheiro n�o esconde seu desejo de mudar a imagem que se faz das dem�ncias. Mas ela reconhece: "Ningu�m quer ter de enfrentar um caso de dem�ncia na fam�lia."
Por outro lado, "quantos perdem familiares de forma repentina e sofrem tanto", observa. A dem�ncia pode ser a oportunidade de uma despedida gradativa.
"Quando voc� percebe que essa � uma condi��o que vai levar tempo para acontecer, e que voc� pode fazer dele um tempo bom, e se permitir ter esses momentos bonitos, � muito engrandecedor."
Mas as palavras finais de Celene Pinheiro v�o para quem n�o conseguiu se enxergar nos relatos de L�gia, Ivani e Denise.
Ela conta que, em 18 anos de geriatria, j� viu muitas fam�lias sa�rem do consult�rio ou da sala de palestras se sentindo culpadas.
"N�o estamos pregando modelos virtuosos, que devam ser erguidos", explica. "Conhecemos muito mais hist�rias tristes do que bem sucedidas. Mas, quem sabe ouvir hist�rias positivas nos ajuda a vislumbrar outras possibilidades?"
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