
No ver�o de 2013, Stefano Piraino estava passeando pelo litoral rochoso de �stica, uma pequena ilha no litoral da Sic�lia, na It�lia, quando encontrou uma �gua-viva trazida pelo mar.
Ele se abaixou e a cutucou. Depois, em um movimento n�o planejado, ele tirou um peda�o do animal morto e o colocou na boca. Era salgado, crocante e tostado pelo sol."[Era] muito saboroso", relembra Piraino, que � zo�logo e bi�logo evolutivo da Universidade de Salento em Lecce, na It�lia. "Foi a primeira vez que comi uma."
Ele explica que, depois de alguns dias morta na praia, as c�lulas urticantes da �gua-viva s�o desativadas.
Ainda assim, Piraino recomenda que as pessoas n�o comam �guas-vivas diretamente do mar, pois os animais crus cont�m pat�genos bacterianos que podem causar intoxica��o alimentar (embora, no caso dele, poss�veis bact�rias teriam sido mortas pela radia��o ultravioleta proveniente do sol).
Mas Piraino defende a inclus�o desses invertebrados no card�pio. � uma possibilidade sendo explorada pelos pesquisadores, frente � popula��o de peixes que foi dizimada pelo homem e ao aumento da crise alimentar mundial.
O problema
Surgiram recentemente in�meros relatos de infesta��es de �guas-vivas – eventos sazonais marcados por grandes e s�bitos aumentos da popula��o desses animais.Essas explos�es populacionais desequilibram os ecossistemas oce�nicos e t�m o potencial de prejudicar a biodiversidade e reduzir a quantidade de peixes.
Se n�o agirmos para refrear essa expans�o populacional, o oceano deixar� de ser um espa�o da biodiversidade dos peixes para ser um ecossistema dominado pelas �guas-vivas, segundo adverte um estudo de 2009.
Esta teoria sofre ampla contesta��o. Alguns cientistas afirmam que n�o existem provas do aumento global do n�mero de �guas-vivas.
Uma an�lise de longo prazo de 2012, por exemplo, concluiu que n�o h� evid�ncias concretas de um aumento da popula��o de �guas-vivas. O estudo sugeriu que suas popula��es podem sofrer ciclos de oscila��o que duram cerca de 20 anos.
Mas existem poucas d�vidas de que as explos�es populacionais estejam se tornando mais comuns em alguns lugares. E elas podem trazer severas consequ�ncias para a vida marinha e humana.
Se a �gua-viva pode representar uma amea�a t�o grande aos nossos oceanos e � seguran�a alimentar global, por que n�o simplesmente com�-las?
As �guas-vivas se reproduzem com extrema rapidez. Algumas esp�cies chegam a ter propriedades de quase imortalidade: a Turritopsis nutricula, por exemplo, consegue evitar a morte quando ferida, transformando-se em uma vers�o menos madura de si pr�pria (conhecida como p�lipo). � como se uma borboleta voltasse a ser lagarta.
O p�lipo pode ent�o produzir c�pias id�nticas de si mesmo, de forma que, teoricamente, a �gua-viva pode viver indefinidamente.
Este � apenas um exemplo da imensa resili�ncia e capacidade de adapta��o das �guas-vivas, que existem h� 500 milh�es de anos no planeta. As �guas-vivas conseguem ganhar tempo at� que surjam condi��es favor�veis de reprodu��o, repousando por anos no fundo do oceano no seu estado de p�lipo, amadurecendo e se espalhando apenas em condi��es ideais.

As �guas-vivas tamb�m conseguem se beneficiar das atividades humanas que prejudicam outros animais marinhos. Elas precisam de muito pouco oxig�nio para sobreviver, por exemplo. Com isso, ao contr�rio de outras esp�cies marinhas, as �guas-vivas conseguem crescer em locais atingidos por �guas escoadas da agricultura, que reduzem os n�veis de oxig�nio da �gua do mar.
Mas a prolifera��o das �guas-vivas, infelizmente, pode trazer efeitos em cascata. Quando elas se mudam para uma regi�o, as outras esp�cies t�m dificuldade para recoloniz�-la, mesmo depois que os n�veis de oxig�nio voltam ao normal. Isso ocorre porque as �guas-vivas adoram alimentar-se de larvas de peixes.
� dif�cil prever exatamente como as �guas-vivas ir�o se comportar em um clima mais quente, pois n�o existem muitos dados hist�ricos sobre elas, segundo Monty Graham, diretor do Instituto de Oceanografia da Fl�rida em St. Petersburg, nos Estados Unidos.
"Algumas d�cadas atr�s, ningu�m realmente prestava aten��o nas �guas-vivas", afirma ele. "Mas as �guas-vivas s�o muito sens�veis aos ciclos clim�ticos. E, por extens�o, elas tamb�m ser�o muito sens�veis �s mudan�as clim�ticas duradouras."
Historicamente, as �guas-vivas s�o controladas pelos predadores marinhos, como as gaivotas, as tartarugas-marinhas, os peixes e as baleias. Mas a popula��o dos seus predadores vem diminuindo, devido a uma combina��o de fatores que incluem a pesca excessiva, mudan�as clim�ticas, polui��o e perda de habitat.
Em todo o mundo, surtos de �guas-vivas v�m devastando a popula��o de peixes, sem falar na ind�stria da pesca e do turismo, para indicar algumas.
Em 2007, toda a ind�stria irlandesa de salm�o foi varrida pela infesta��o de milh�es de �guas-vivas, em uma �rea de 26 km² por 10,7 metros de profundidade. Elas infestaram as gaiolas das fazendas de salm�o, matando mais de 100 mil peixes.
No Jap�o, os pescadores v�m observando o crescimento extraordin�rio das �guas-vivas de Nomura, todos os anos, desde 2002. Esta esp�cie chega a atingir dois metros de di�metro e pesa at� 220 kg.
As �guas-vivas gigantes devastaram a vida litor�nea, com custo estimado de bilh�es de ienes (equivalentes a dezenas de milh�es de reais) para a ind�stria pesqueira japonesa.
"Algumas regi�es ir�o experimentar aumento das �reas povoadas por �guas-vivas, dos seus n�meros e da dura��o da procria��o, especialmente se continuarmos a pressionar os pesqueiros que se encontram no ecossistema", explica Graham.
E se as comermos?
O mar fornece uma parcela significativa das prote�nas consumidas pela humanidade.Em 2020, a ind�stria pesqueira capturou cerca de 112 milh�es de toneladas de organismos aqu�ticos, segundo a Organiza��o das Na��es Unidas para Alimenta��o e Agricultura (FAO, na sigla em ingl�s).
E, � medida que aumenta a demanda global por alimentos, quest�es s�rias permanecem sobre nossas fontes de nutrientes.
Alguns cientistas, como Piraino, acreditam que uma solu��o � ampliar o nosso paladar. Ele sugere que, enquanto o mundo enfrenta a necessidade urgente de buscar recursos aliment�cios sustent�veis, uma forma de atender � demanda � tentar integrar novos alimentos �s receitas tradicionais e � culin�ria local.
"Talvez tenha chegado a hora de acrescentar um novo item ao nosso card�pio: a �gua-viva", afirma Piraino.
A �gua-viva � consumida em toda a �sia, mas ainda � raro encontr�-la nos restaurantes ocidentais.
Na China, por exemplo, a �gua-viva � consumida h� mais de mil anos. A salada de �gua-viva � uma iguaria popular no pa�s.
Elas s�o ricas em prote�nas e as microalgas no interior das c�lulas de algumas �guas-vivas cont�m alto teor de �cidos graxos. Esta pr�tica ainda n�o foi muito adotada no mundo ocidental, mas alguns restaurantes est�o incentivando seus clientes a abra�ar o desconhecido.
A entrada da cozinha do restaurante Benu, em S�o Francisco, nos Estados Unidos, � parecida com a maioria das outras na cidade: uma calma antecipa��o do burburinho que cresce rumo ao iminente caos do servi�o, enquanto a conversa dos clientes invade a cozinha. Mas, ao contr�rio da maioria dos outros restaurantes finos, existe um item especial no card�pio: �gua-viva.

A �gua-viva enfeita um prato deslumbrante, envolvendo delicadamente um �nico camar�o, com acompanhamento de caviar e raiz-forte. � uma "forma muito acess�vel" de provar �gua-viva, segundo Corey Lee, fundador do Benu.
Lee � natural da Coreia do Sul, onde cresceu comendo �guas-vivas. Ele conta que o animal era algo "delicioso e menosprezado", que ele sempre quis compartilhar com seus clientes.
A �gua-viva � servida de v�rias formas desde que Lee abriu seu restaurante em 2010 — que hoje tem tr�s estrelas Michelin. Outra forma � fresca em um consomm� de carne bovina.
"O sabor do oceano fornece um forte contraste e salinidade � sopa rica e gelatinosa, enquanto sua textura inst�vel lembra a de m�sculos bovinos cozidos por muito tempo", explica Lee.
Mas, apesar do seu apelo para os consumidores aventureiros do mundo ocidental, a �gua-viva n�o � um substituto vi�vel para os peixes ou outras fontes de prote�nas, se considerarmos o que � melhor para o meio ambiente.
� verdade que ampliar o nosso paladar para incluir fontes de prote�na alternativas � vital para ajudar a reduzir as mudan�as clim�ticas, mas a �gua-viva pode n�o ser a solu��o.
Em primeiro lugar, a �gua-viva tem 95% de �gua. Os 5% restantes cont�m seus nutrientes essenciais. Esta propor��o entre massa e nutrientes significa que ela � uma fonte de prote�na bastante ineficiente.
"Com�-las � um grande esfor�o", afirma Graham. "Muita energia � gasta no processo, porque elas t�m muita �gua. Elas tamb�m n�o s�o muito boas para comer."
"Elas provavelmente s�o mais �teis como um tipo de col�geno e n�o de prote�na propriamente dita", segundo o professor de biologia marinha Jonathan Houghton, da Universidade Queen’s de Belfast, no Reino Unido. "Mas, certamente, n�o como substituto do peixe, que � v�rias vezes melhor como potencial fonte de alimento."
Existem diversas empresas que j� utilizam �gua-viva como substituto do col�geno bovino e su�no, frequentemente empregado em tratamentos m�dicos humanos. A empresa brit�nica Jellagen, com sede em Cardiff, no Pa�s de Gales, afirma que o col�geno da �gua-viva oferece uma alternativa melhor, porque o seu col�geno � compat�vel com uma ampla variedade de tipos de c�lulas humanas.
�guas-vivas teimosas
Mas permanece o fato de que, apesar do amplo consumo de �gua-viva em toda a �sia, as infesta��es ainda s�o um problema.
Graham salienta que comer �gua-viva pode reduzir parte da press�o sobre a popula��o de peixes, mas n�o resolver� as causas latentes das infesta��es de �guas-vivas, que s�o indicadores do que est� se passando nos oceanos do planeta.
"Se voc� retirar os peixes de um ecossistema, a tend�ncia � que as �guas-vivas se deem muito bem", afirma ele.
As �guas vivas se multiplicam nas condi��es criadas pelos seres humanos — particularmente, a pesca excessiva, �guas mais quentes, polui��o e a urbaniza��o costeira, que fornecem condi��es ideais para o aumento da quantidade de �guas-vivas. E o fato de que existe maior quantidade de �guas-vivas certamente demonstra como os nossos oceanos est�o em perigo.
A popula��o de �guas-vivas sempre flutuou naturalmente ao longo do tempo, j� que elas s�o regidas pelos ciclos clim�ticos naturais. A quest�o, segundo Graham, � "quais mudan�as feitas pelo homem ir�o for�ar a mudan�a da trajet�ria dos ecossistemas para sempre?"
O que tamb�m precisa mudar � a nossa atitude em rela��o � alimenta��o, segundo Lee. "N�o sou bi�logo marinho, mas, se as pessoas come�arem a consumir �guas-vivas com o mesmo vigor que consumimos outros frutos-do-mar, acredito que tamb�m haver� consequ�ncias adversas."
Este ponto � destacado em um estudo de 2021, sobre a pesca da �gua-viva-bala-de-canh�o, no M�xico.
Nos �ltimos 20 anos, o interesse por esse tipo de �gua-viva explodiu, depois que investidores identificaram aquela regi�o como repleta dessa esp�cie. No auge do processo, em 2011, foram capturadas quase 40 mil toneladas de �guas-vivas. A maioria delas foi exportada para a China.
Mas a explora��o excessiva desses animais causou a redu��o dr�stica da sua popula��o desde aquela �poca. O t�tulo de um estudo elaborado em 2015 talvez resuma a situa��o: "N�o devemos presumir que a pesca de �guas-vivas resolver� nosso problema com �guas-vivas".
O que pode realmente ajudar a resolver � gerenciar os estoques de peixe de forma respons�vel.
Leia a vers�o original desta reportagem (em ingl�s) no site BBC Future.