
Uma das produ��es internacionais de maior repercuss�o dos �ltimos tempos mostra o encontro de um alem�o com um argentino e tem a assinatura de um brasileiro. O cineasta Fernando Meirelles, o mesmo de Cidade de Deus, � o diretor de Dois papas, produ��o da Netflix que imagina o conv�vio e as conversas entre Bento XVI (Anthony Hopkins) e Jorge Bergoglio, interpretado por Jonathan Pryce, pouco antes de o cardeal latino-americano se tornar o papa Francisco.
Pontuado por di�logos espirituosos, escolhas musicais surpreendentes e com piscadelas ao Brasil, o longa-metragem acumula indica��es a pr�mios importantes e tem provocado rea��es entusiasmadas nas redes sociais desde a entrada no servi�o de streaming, no in�cio de dezembro. Meirelles se diz impressionado com “a abrang�ncia e espectro” da repercuss�o: “Vai das amigas da minha tia Odila, de 86 anos, ao Leonildo, que veio ver um vazamento em casa na semana passada e deve ter, no m�ximo, 23 anos.
Taxistas, balconistas e gar�ons n�o falavam comigo sobre meus filmes, agora est�o falando.” Ele afirma que a Netflix ainda n�o repassou n�meros sobre o p�blico atingido: “Por ora, sei apenas que est� indo bem e o que chama a aten��o � o n�mero de pessoas que assiste ao filme mais de uma vez. Mas nunca tive uma resposta pessoal t�o intensa”, destaca. Em entrevista exclusiva ao Estado de Minas, o cineasta, de 64 anos, arrisca algumas raz�es para o sucesso, antecipa o tema do pr�ximo longa-metragem e revela a torcida para que o filme receba indica��es a, pelo menos, duas categorias no Oscar 2020.''Se eu soubesse o que fez este filme 'pegar', eu repetia e estava feito, mas n�o tenho ideia. Meu chute � que ajudou a ideia de toler�ncia que o filme traz. Saber escutar o outro e conviver com quem discordamos s�o mercadorias em falta''
Fernando Meirelles, cineasta
Dois papas � o seu longa-metragem de maior repercuss�o desde Cidade de Deus. Boa parte dos coment�rios em redes sociais � elogiosa, inclusive de pessoas agn�sticas. A que atribui o sucesso?
O filme est� bem feito. Roteiro, atua��es, fotografia, montagem, m�sica, tudo funciona bem... Mas h� muitos filmes em que tudo funciona bem, mas n�o colam. Se eu soubesse o que fez este filme “pegar”, eu repetia e estava feito, mas n�o tenho ideia. Meu chute � que ajudou a ideia de toler�ncia que o filme traz. Saber escutar o outro e conviver com quem discordamos s�o mercadorias em falta. A esperan�a de que � poss�vel uma conviv�ncia civilizada e at� afetiva deixa aliviado quem assiste. Ou vai ver que as pessoas simplesmente gostam de Dancing queen (a m�sica do ABBA est� na trilha sonora). O que sei eu?
Se Dois papas tivesse lan�amento exclusivo nos cinemas, o alcance seria o mesmo que obteve nas �ltimas semanas ao estrear na Netflix? Essa mudan�a de comportamento � irrevers�vel?
N�o sou um or�culo para saber, mas minha sensa��o � que, se este filme tivesse sido lan�ado da maneira usual, ele teria passado praticamente batido. Nunca tive uma resposta pessoal t�o intensa com nada do que participei e olha que a abertura das Olimp�adas foi muito assistida. Recebo diariamente WhatsApp e e-mails de amigos ou amigos de amigos comentando a experi�ncia de assistir aqueles dois padres conversando. Nem tudo que est� na Netflix recebe a mesma quantidade de m�dia e investimento que colocaram nestes papas. Mesmo assim, fiquei impressionado com o poder da plataforma. Taxistas, balconistas, gar�ons, em geral n�o falavam comigo sobre meus filmes, agora est�o falando.
O caminho para a produ��o e exibi��o de dramas de tem�tica adulta, como Hist�ria de um casamento e Dois papas, � mesmo o streaming? As salas de cinema ficar�o destinadas aos filmes-evento, como os de super-her�is?
Pela sua base de p�blico, filmes que s�o de nicho para a produ��o convencional s�o vi�veis na plataforma. Parece doido dizer, mas a Netflix pode ser a salva��o do cinema de arte e do cinema independente. Espero que os exibidores, uma hora, compreendam que o neg�cio deles mudou e passem a exibir filmes que estar�o na plataforma em seguida. No final do ano passado, a O2 Play, distribuidora da qual sou s�cio, distribuiu O Irland�s (de Martin Scorsese, produ��o da Netflix) e Dois papas. Brigamos muito para conseguir salas para esses dois filmes, com pouco sucesso. Os donos de cinemas se recusaram a exibir por causa da janela curta entre a sala e a plataforma, mesmo sabendo que teriam de duas a tr�s semanas antes de os filmes estarem dispon�veis. N�o entendo por que esse faturamento de tr�s semanas n�o interessa. Espero que esta vis�o mude. Creio que as salas ficar�o mais voltadas para filmes-evento se mantiverem esta postura.

“Deus corrige o papa com um pr�ximo” � um dos di�logos espirituosos da conversa entre Bergoglio e Bento XVI. E um cineasta, corrige os longas anteriores a cada novo filme? Que erros cometeu e tentou n�o repetir em Dois papas?
Me d� umas tr�s p�ginas de jornal e eu listo, e ainda em ordem alfab�tica, os erros que cometi nos filmes anteriores. Com mais uma p�gina, posso listar os erros deste filme. O fato � que cada projeto que tenho feito � t�o diferente do anterior que, mesmo que aprenda alguma coisa com meus erros, a li��o pode n�o ser t�o �til no seguinte. Mas n�o tenho problemas em errar. O erro humaniza, gosto dele. Minha m�e dizia que eu era muito mal acabado: fa�o tudo quase at� o fim, mas largo antes de terminar, canso antes de acertar. Acho que ela tem raz�o, mas tamb�m acho a perfei��o previs�vel e meio chatinha. � no erro que mora a fagulha. “Qualquer jornada, por mais gloriosa que seja, pode come�ar com um erro”, diz Bergoglio no filme, ao falar sobre S�o Francisco.
Por que a trajet�ria de Bergoglio � mostrada em mais detalhes, inclusive com o uso em profus�o de flashbacks, do que o passado de Ratzinger?
O filme se chamava O papa at� maio passado. Era uma biografia do Bergoglio, com a participa��o do Ratzinger. Depois do filme pronto, quisemos dar uma de espertinhos e mudamos o nome para Dois papas; isso, sem querer, criou um ru�do. Muita gente que gosta do Bento XVI n�o gosta do filme por n�o ver o equil�brio entre os dois. Se chamasse O papa, talvez n�o se importassem.
As cita��es de dom Helder C�mara e Paulo Freire foram contribui��es suas ao roteiro do neozeland�s Anthony McArten? Poderia citar outras?
Sim, esses dois autores, a pizza, o tom ir�nico, a Dilma, os muros no meio do discurso de Bergoglio, Beatles, Eleanor Rigby, paisagens de C�rdoba representando o divino, material jornal�stico, imagens da ditadura na Argentina, padre Carlos Mujica, grafite na abertura com a hist�ria de S�o Francisco, as viagens do papa, os refugiados no final do filme, a improvisa��o no final da Copa do Mundo, etc etc etc… Nada disso fazia parte do roteiro, mas nada demais, esse � o trabalho de um diretor, suponho.
A montagem do longa impressiona por driblar a obviedade e pelo uso inteligente das fus�es e inserts. Quais as recomenda��es passou ao montador Fernando Stutz? O que ficou de fora?
Stutz entendeu o filme que eu queria fazer e, por sorte, era tamb�m o filme que ele tinha em mente. Muitas das coisas que listei acima foram contribui��es dele. Montado por outra pessoa, o filme n�o chegaria nem perto do que �. As impress�es digitais do Stutz em Dois papas s�o t�o n�tidas quanto aquelas marcas de m�os impressas no cimento da cal�ada da fama em Los Angeles. Ali�s, esta � a minha especialidade: chamar gente talentosa e deixar que criem. Eu poderia dizer que “dou liberdade” para os talentos que fazem parte da equipe, mas estaria mentindo; uso os caras ao m�ximo, mesmo, porque sei que s�o bons e porque eu n�o sou bobo.
“Tento ser eu mesmo”, afirma o Bergoglio interpretado por Jonathan Pryce. Quais sequ�ncias do filme representam cem por cento as decis�es do cineasta Fernando Meirelles?
N�o h� nada no filme que n�o tenha sido uma escolha: � a minha profiss�o, fazer escolhas. A montagem � um longo processo de ir afinando, ou corrigindo, tudo que foi filmado, como um filtro. Mas nunca fico cem por cento satisfeito. Cortei algumas falas que gostaria de ter mantido e, se pudesse, corrigiria detalhes de mixagem e voltaria alguns cortes que acabaram saindo.
Espera indica��es de Dois papas ao Oscar? Quais seus filmes favoritos entre os potenciais concorrentes?
Creio que temos chances nas mesmas categorias que fomos indicados para o Globo de Ouro e o Bafta (premia��o brit�nica). Na minha categoria n�o h� chances. Mas o que gostaria mesmo seria uma indica��o de fotografia para Cesar Charlone (indicado por Cidade de Deus, em 2004) e de montagem para Fernando Stutz. Mas pode ser que n�o haja nada. � como o futebol: uma caixinha de surpresas, como sabemos. Meu favorito do ano � Coringa, s� n�o votei nele porque votei em mim mesmo. 1917 n�o tem uma hist�ria t�o boa, mas a realiza��o faz dele um filme que precisa ser assistido. Honeyland merecia o Oscar, mas deve perder para Parasita.
O que achou da safra de filmes premiados em grandes festivais em 2019 e que retratam aspectos das consequ�ncias da desigualdade social, como Parasita, Bacurau e mesmo Coringa? Esse tema tamb�m o interessa?
O tema n�o me interessa, me assombra. Gosto muito do vi�s que cada um desses filmes encontrou para falar sobre desigualdade, sem serem �bvios ou explicitamente militantes. Eu mesmo repeti este tema em quase tudo que fiz no cinema: Dom�sticas, Cidade de Deus, O jardineiro fiel e at� em Dois papas a crise de refugiados e a exclus�o aparecem, mas nunca fui t�o criativo. Recebo roteiros para dirigir, mas simplesmente n�o consigo mais me entusiasmar por hist�rias que s�o apenas boas hist�rias se n�o funcionarem como um espelho para o mundo. Vivemos uma crise civilizat�ria, caminhamos para um futuro esquisito, � isso que me interessa entender e h� muitas maneiras de falar isso, po�ticas, fantasiosas, tudo vale. Estes filmes mencionados s�o originais em suas abordagens. Eu tamb�m colocaria Atlantique (indicado pelo Senegal para concorrer ao Oscar) nesta lista, � mais um filme po�tico ou de g�nero sobre exclu�dos. Se voc� tem algo a dizer, qualquer g�nero serve para isso.