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Estado de Minas CENTEN�RIO

Por que Clarice Lispector, uma escritora de dif�cil leitura, � uma das autoras brasileiras mais citadas na internet

Retirados de contexto, os textos da autora, que faria cem anos hoje, acabam lidos como mensagens edificantes, li��es de vida e autoajuda


10/12/2020 08:00 - atualizado 10/12/2020 08:57

Comparada a Virg�nia Woolf e James Joyce, considerada herm�tica, permeada por experimenta��o lingu�stica, entrelinhas e "sil�ncios", com enredo praticamente inexistente e quebra das regras de pontua��o — romance iniciando com v�rgula e terminando com dois pontos, por exemplo — a obra de Clarice Lispector (1920-1977) n�o � de f�cil leitura.

Ainda assim, a escritora, cujo nascimento completa 100 anos hoje, dia 10 de dezembro, � uma das mais citadas na internet — mesmo que, paradoxalmente, muitos dos textos e frases atribu�dos a ela n�o sejam seus.

Em seu livro Para amar Clarice - Como descobrir a apreciar os aspectos inovadores de sua obra, a escritora e professora de literatura Emilia Amaral escreveu que Clarice Lispector "viveu e escreveu sob os signos da fascina��o e paradoxo: adorada por muitos, eleita como objeto de v�rias tend�ncias cr�ticas, ao mesmo tempo avessa a diferencia��es de g�nero, entre outras categorias classificat�rias. Bastante citada, adulterada, popularizada por um vi�s pseudofilosofante, a escritora � simultaneamente considerada herm�tica".

Nascida Chaya (ou Haya, para alguns) Pinkhasovna Lispector, em Chechelnyk, na Ucr�nia, ela chegou ao Brasil ainda beb�, em 1922, com sua fam�lia que fugia para o Brasil devido � persegui��o aos judeus depois da Revolu��o Russa de 1917.

Os Lispector chegaram a Macei�, de onde mudaram para Recife, em 1924, e da� para o Rio de Janeiro, em 1935, cidade em que se estabelecem definitivamente.

No Brasil, os membros da fam�lia aportuguesaram seus nomes. O pai Pinkhas ou Pinkhouss passou a ser Pedro, e a m�e Marian ou Mania transformou-se em Marieta. Das filhas, Leah virou Elisa; Tcharna, T�nia; e Chaya, Clarice.

Casada com um diplomata brasileiro, a escritora morou fora do pa�s de 1944 a 1959 (It�lia, Su��a, Inglaterra e Estados Unidos), quando se separou e retornou ao Brasil, onde viveu at� sua morte, em 9 de dezembro de 1977, um dia antes do seu anivers�rio de 57 anos.

Em rela��o � obra de Clarice, Noeli Lisb�a, mestre em Teorias do Texto e do Discurso, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), diz que nos romances praticamente n�o h� enredo.

"De tal modo que a escritora afirma em �gua Viva: 'g�nero n�o me pega mais', porque ela rompe realmente com a estrutura dos g�neros liter�rios", explica. "O que me interessa realmente na Clarice � o questionamento que ela faz da linguagem, de seus limites, de sua incapacidade de expressar a viv�ncia humana. H� duas frases dela que s�o expressivas disso: 'Viver n�o � relat�vel' e 'A realidade n�o tem sin�nimos'. A obra dela me parece extremamente importante, porque � inovadora exatamente neste questionamento que faz da linguagem."

Segundo Amaral, autora do livro sobre Clarice, o que se destaca em sua obra � a interioridade das personagens, seus movimentos de aliena��o e de busca de transcend�ncia.

"A palavra 'clariceana' quer ser a coisa que ela representa, da� a linguagem ser toda permeada por entrelinhas, por meio das quais se pretende ir al�m do dito", explica, em entrevista � BBC News Brasil. "Trata-se de uma literatura metalingu�stica, que se indaga enquanto se realiza, conquistando tanto pelo processo do escrever quanto pelo produto: o texto."

Para o coordenador do Programa de P�s-Gradua��o em Letras da UFRGS, Ant�nio Marcos Vieira Sanseverino, na obra Clarice, h� um voltar-se para dentro de si, para a experi�ncia interior, para o impacto das coisas no mundo na subjetividade de suas personagens.


Para professor Antônio Marcos Vieira Sanseverino, na obra Clarice, há um voltar-se para dentro de si, para a experiência interior, para o impacto das coisas no mundo na subjetividade de suas personagens(foto: Arquivo pessoal)
Para professor Ant�nio Marcos Vieira Sanseverino, na obra Clarice, h� um voltar-se para dentro de si, para a experi�ncia interior, para o impacto das coisas no mundo na subjetividade de suas personagens (foto: Arquivo pessoal)

"Tal experi�ncia interior, radicalmente posta, � desagregadora, pois revela a estranheza de cada um, aquilo que n�o corresponde aos papeis sociais vividos na rotina", explica. "Em Clarice, � uma experi�ncia de linguagem, ou de busca de uma linguagem capaz de dar conta dessa estranheza."

O professor Arnaldo Franco Jr., da Universidade Estadual Paulista (Unesp), diz que Clarice Lispector est� entre os grandes criadores no campo da literatura.

"Sua obra, marcada pelo hibridismo de g�neros, pela experimenta��o lingu�stica, pela afirma��o de uma �tica feminina contribuiu para ampliar os valores tem�tico-formais do sistema liter�rio brasileiro", explica.

"Pode-se dizer que, a partir da tradu��o de seus textos, ela afetou tamb�m literaturas de outros pa�ses. Ela faz uma literatura que perturba o leitor, instalando uma perspectiva cr�tica em rela��o aos esquematismos, que coisificam o viver e alienam o ser humano do contato vigoroso consigo pr�prio, com o outro, com a vida."

De acordo com ele, talvez a grande marca da obra de Clarice Lispector seja a afirma��o da liberdade de criar sem subordina��o a normas, crit�rios e par�metros idealizados do que deva ser o texto liter�rio.

"Junto dessa afirma��o, que afeta os planos tem�tico e formal de sua literatura, afirma-se, tamb�m, uma desconfian�a permanente em rela��o � linguagem, aos jogos de poder e hierarquia estabelecidos entre o eu e o outro, a valores e pr�ticas idealizados socialmente", acrescenta.

Cita��es

Com essa complexidade toda de sua obra, muitos se perguntam por que ela � uma das campe�s de cita��es na internet. H� v�rias hip�teses.

"Isso ocorre porque h� trechos de Clarice que, retirados do contexto, podem ser lidos como mensagens edificantes, li��es de vida que, na maioria das vezes, d�o a impress�o de simplific�-la", explica Franco Jr. "Mas em vez disso, em geral, a adulteram e criam equ�vocos a respeito de sua arte."

De acordo com Sanseverino, h� dois tipos de leitura para essa enxurrada de cita��es. "Na apresenta��o da nova edi��o do romance �gua Viva, � contado que Cazuza teria lido a obra umas 111 vezes", diz. "Como Clarice traz para primeiro plano de sua obra, uma experi�ncia de linguagem que nos leva a colocar em xeque os padr�es, sejam quais forem, quem busca se realizar fora do lugar social pr�-determinado de fam�lia, de classe social, de g�nero, tende a se encontrar na obra dela."


Clarice publicou 18 livros, entre romances, contos e crônicas(foto: Editora Rocco/Divulgação)
Clarice publicou 18 livros, entre romances, contos e cr�nicas (foto: Editora Rocco/Divulga��o)

O segundo tipo de leitura, diz ele, � o das frases feitas, retiradas do contexto, que ganham a fei��o de m�ximas, prov�rbios, ditos. "Ela tem, de fato, frases lapidares", diz. "Assim, parece que h� uma busca de epigramas 'clariceanos', que sirvam para etiquetar uma viv�ncia. Da� a autoridade da escritora, com a aura do mist�rio e de suas epifanias, em contribuir para a cita��o."

Para Franco Jr., a popularidade de Clarice na internet � um fen�meno que afeta a obra dela e, tamb�m, outros escritores e poetas, como, por exemplo, Caio Fernando Abreu, Carlos Drummond de Andrade e Lu�s Fernando Verissimo.

"As pessoas recortam trechos que as impactaram e lan�am nas redes sociais", diz. "Descontextualizados, esses trechos acabam funcionando como m�ximas, 'ensinamentos' ou autoajuda. Qualquer obra liter�ria est� sujeita isso. Talvez uma outra raz�o para a escolha da obra de Clarice para este tipo de procedimento esteja no fato de que se trata de uma literatura marcada pela cogita��o existencial."

A prolifera��o de cita��es de textos ou frases de Clarice Lispector, sejam dela mesmo ou atribu�das erradamente a ela, pode ser, no entanto, uma faca de dois gumes para a divulga��o e conhecimento de sua obra.

"� bom e ruim ao mesmo tempo", diz Franco Jr. "O aspecto positivo est� na pr�pria divulga��o do nome e da obra liter�ria de Clarice Lispector, pois isso pode atrair novos leitores, gente que buscar� ler os contos, os romances, as cr�nicas."

O lado negativo, segundo ele, diz respeito �s distor��es que isso pode gerar, como descontextualiza��o e perda do sentido cr�tico dos textos, redu��o da obra � condi��o de texto de autoajuda, atribui��o de falsa autoria a textos que ela nunca escreveu.

"Esse aspecto negativo cria epis�dios constrangedores, com pessoas citando textos falsos que ela nunca escreveu, por exemplo", explica. "E a atribui��o de falsa autoria, a depender das circunst�ncias, pode resultar em processo jur�dico."

Para Lisb�a, da UFGRS, � sempre ruim quando textos s�o atribu�dos equivocadamente a determinados autores porque isso n�o contribui em nada para o conhecimento da obra de ningu�m. "Quando � uma obra boa, isso se caracteriza como uma injusti�a ao verdadeiro autor; quando � uma obra ruim se configura uma injusti�a com aquele a quem ela � atribu�da."


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