
Em conversa com uma amiga chef de cozinha que mora na Fran�a, Ugo Borges ouviu: “Se fosse para abrir um neg�cio no Brasil, seria uma f�brica de embutidos. A� s� tem produto industrializado”.
Era tudo o que ele precisava para deixar a carreira acad�mica como professor e realizar o sonho de entrar para a gastronomia. H� seis anos, chegou ao mercado a Charcuteria Sagrada Fam�lia, em Montes Claros, que levanta a bandeira da valoriza��o de ingredientes do Norte de Minas.
O trabalho come�ou muito antes disso. Em 2014, Ugo e a esposa, Tatiana Veloso, viajaram para a Fran�a com o objetivo de entender a hist�ria da charcutaria e visitar pequenos produtores. Voltando para o Brasil, eles montaram a f�brica e come�aram os testes.

O casal s� lan�ou a marca quando sentiu que as t�cnicas de charcutaria estavam dominadas. Mas, at� ent�o, s� reproduziam receitas, principalmente da escola francesa (tanto que fizeram quest�o de colocar no nome a palavra “charcuteria”, que vem do termo franc�s “charcuterie”).
As primeiras receitas pr�prias apareceram em 2018. “Definimos o caminho da valoriza��o da cultura regional. Fizemos a fus�o de t�cnicas para criar produtos novos e inserimos elementos da regi�o para dar esse sabor do terroir norte-mineiro”, explica o mestre charcuteiro.
Os testes se iniciaram pelos curados, com a cria��o do salame com castanha de baru, ingrediente muito abundante em Montes Claros, que est� no “cora��o” do cerrado. Por dentro da tripa natural de porco, eles colocam copa-lombo, alho triturado e a castanha de baru quebrada na faca, que ainda fica peda�uda e entrega croc�ncia.

Segundo Ugo, os ingredientes regionais s�o comprados de comunidades origin�rias do Norte de Minas, o que fortalece o com�rcio local. Enquanto a pimenta-de-macaco (tamb�m presente no copa-lombo) � fornecida pelos chamados veredeiros, que vivem nas regi�es das veredas e s�o considerados guardi�es das �guas, a castanha de baru vem de uma comunidade quilombola na cidade de S�o Francisco.
Cacha�a e rapadura
Na linha dos defumados, a regionaliza��o se d� pelo uso de cacha�a e rapadura de Salinas. “Os norte-americanos s�o especialistas em defuma��o e sempre usam destilado e a��car no processo da cura da carne, ent�o fiz essa substitui��o. A fam�lia da minha m�e � de Salinas e tenho uma rela��o afetiva com esses sabores, est�o na minha mem�ria.”
A lingui�a tradicional mineira ganha um toque regional inesperado. “Um dia, uma senhora perguntou se a gente fazia igual ao pai dela. Ela explicou que ele picava o porco na faca e raspava a carne com rapadura.”
Desde ent�o, eles inclu�ram na receita raspas de rapadura (n�o � para ficar doce, apenas equilibra o sabor). A lingui�a continua sendo 100% de pernil e ainda leva pimenta-do-reino. Utiliza-se uma tripa importada da Alemanha, que � mais resistente, n�o quebra nem fura.
Ugo n�o deixou de fazer receitas cl�ssicas de outros pa�ses, mas volta seu trabalho cada vez mais para os produtos regionais, que s�o os mais desejados.
Isso ficou ainda mais evidente desde que eles abriram loja em BH, h� tr�s meses. O salame com castanha de baru, por exemplo, vende muito mais do que o tradicional, feito com pernil, vinho tinto seco e pimenta-do-reino, por isso at� est�o aumentando a produ��o dele, para que n�o falte no estoque.
“Esse movimento da charcutaria artesanal vem crescendo muito e vejo que as pessoas querem dar um passo para tr�s. N�o querem mais o industrializado, preferem o autoral, est�o buscando sabores regionais. Isso significa que n�o precisamos ficar presos �s receitas de fora e podemos investir em uma charcutaria autoral e criativa”, destaca o mestre charcuteiro, que est� testando o salame com castanha de pequi para ampliar a linha de produtos regionais.

A Sagrada Fam�lia � a �nica charcutaria de Minas Gerais com certifica��o do Instituto Mineiro de Agropecu�ria (IMA). Recentemente, a f�brica recebeu o selo do Sistema Brasileiro de Inspe��o de Produtos de Origem Animal (Sisbi), que autoriza a comercializa��o dos produtos em todo o Brasil.
Mais que lingui�a
A charcutaria tem papel fundamental na forma��o da cozinha mineira, afirma Petterson Tonini. “Costumo dizer que, se tirarmos a charcutaria, vamos perder a identidade de alguns pratos, como o feij�o-tropeiro, que leva lingui�a, bacon e carne serenada ou de sol”, aponta o fundador da Tonini Charcutaria Artesanal, em Brumadinho, na Regi�o Metropolitana de Belo Horizonte.
Petterson mesmo fez sua estreia como charcuteiro com uma pe�a de copa-lombo. Isso em 2014. “Sou formado em nutri��o e aprendi a fazer lingui�a para entender os processos, mas s� me aventurei na charcutaria quando estava buscando um hobby e resolvi testar para consumo pr�prio.”
Na �poca, como n�o havia literatura em portugu�s, as pesquisas tiveram que ser em franc�s, espanhol e ingl�s (a professora mineira Cl�udia Colamarco s� lan�aria seu livro “Charcutaria passo a passo” em 2019). Em 2018, ele visitou tr�s cidades na rota do jam�n para ver na pr�tica o que tinha estudado.
Quando abriu a charcutaria, que funciona dentro de um cont�iner, Petterson j� buscava fazer um trabalho com identidade. N�o s� porque n�o dava certo seguir as receitas dos livros (o sal ficava sempre para muito mais ou muito menos), mas por tamb�m saber como seria importante diferenciar seus produtos.
Com esse pensamento, foi desenvolvendo as pr�prias receitas, unindo t�cnicas internacionais com um mix de temperos �nico.
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“Acho que o que move o charcuteiro artesanal � fazer com que as pessoas comam o seu produto e saiba que � seu. Voc� acaba imprimindo sua caracter�stica e criando uma assinatura. Fazer algo autoral n�o � f�cil, demora at� voc� achar ponto de cada receita. Errei muito, mas gosto de desafios.”
No seu caso, o resultado s�o produtos com mais refresc�ncia, j� que ele gosta de usar muito anis, semente de coentro, funcho e erva-doce.
Na Espanha, Petterson conheceu o processo de produ��o do presunto pata negra, a partir de porcos ib�ricos criados soltos que, em determinado per�odo do ano, comem exclusivamente bolotas e levam um aroma mais acastanhado para a carne.
De volta ao Brasil, ele n�o tirou essa hist�ria na cabe�a, pensando se n�o daria para fazer o mesmo em Minas. At� que conheceu Euler Ribeiro, produtor de org�nicos em Entre Rios de Minas. “Ele conta que, quando crian�a, via animais comendo o coco da maca�ba. Como � veterin�rio e conhece o caso da Espanha, pensou: ser� que n�o consigo criar porcos assim?”
S� sal e pimenta
Por ano, s�o criados em torno de 10 porcos, soltos, comendo o fruto da palmeira maca�ba. O charcuteiro optou por temperar os pernis inteiros de 20 quilos apenas com sal e pimenta-do-reino para que a carne possa revelar toda a sua express�o. As pe�as ficam um ano e meio maturando no cont�iner.
O porco alimentado com maca�ba tamb�m � usado no preparo do lardo. O charcuteiro retira a gordura que fica em cima do lombo (com quatro dedos de altura) e tempera com alho, alecrim e sal.
A Tonini inovou com a bresaola su�na (a receita original italiana � com carne bovina). Trocou lagarto pelo lombo, corte mais macio e mais tenro, e acrescentou especiarias como cravo e canela, em busca de um resultado bem arom�tico.
Outra exclusividade � a l�ngua de boi maturada (nos livros, s� se fala em l�ngua defumada). “� um produto que voc� n�o acha em outro lugar. Quis brincar com o processo da bresaola bovina, s� que com outro corte, que ainda envolve muito preconceito”, explica.
A lingui�a com mexerica tamb�m surpreende. Em Brumadinho, onde fica a charcutaria, a produ��o da fruta � muito grande e acaba sendo pouco valorizada.
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“Desenvolvi essa receita para aproveitar um produto local e homenagear a cidade. Ralo a casca (sem atingir a parte branca, para n�o amargar) e acrescento o suco dilu�do, ent�o d� para sentir muito sabor. Na hora em que voc� morde, tem a sensa��o de que a mexerica est� muito presente.” Como � de se imaginar, essa lingui�a est� entre as mais desejadas.
Sem geladeira
Charcutaria � o termo que se refere ao conjunto de t�cnicas artesanais de conserva��o de carnes, tais como salga, cura, defuma��o, matura��o e fermenta��o. Tem origem em pa�ses ao Norte, onde os animais eram abatidos e preparavam-se os cortes para consumo durante os per�odos rigorosos de frio. Os portugueses trouxeram para o Brasil esse conhecimento e a aplica��o, principalmente, em carnes su�nas. As t�cnicas se espalharam por aqui numa �poca em que n�o havia geladeira para conservar as carnes.De queijo a embutidos
A fam�lia que fundou a Catau�, em Coronel Xavier Chaves, no Campo das Vertentes, sempre produziu queijos. Pai e filha chegaram a fazer testes com presunto, mas a charcutaria s� se materializou com a chegada de Emmanuel Maier Rotilli.
Isso explica porque eles come�aram pelo salame. Emmanuel foi atr�s da receita da fam�lia, de origem italiana, mas, como ningu�m tinha o passo a passo documentado, ele ficou um bom tempo estudando para chegar a uma combina��o de copa-lombo, paleta su�na e toucinho.
“Busquei o sabor que estava na minha mem�ria por meio de temperos como alho, vinho e noz-moscada, que s�o a base do salame tipo italiano”, ele conta. Os parentes amaram o resultado, com acidez e pic�ncia na medida certa.
O charcuteiro tamb�m desenvolveu uma receita pr�pria de pepperoni. Em vez de misturar carnes bovinas e su�nas, como se faz tradicionalmente na It�lia, ele usa apenas copa-lombo. Sentiu que isso agradava mais o paladar do mineiro.
Assim como os outros defumados, o pepperoni tem contato com lenhas de mexerica do entorno da fazenda, o que lhe confere um sabor regional. Seguindo esse mesmo racioc�nio, surgiu a ideia de usar a casca desidratada de lim�o colhido no quintal para fazer um lemon pepper caseiro, com sal e pimenta preta, que tempera o bacon.
Emmanuel tem pesquisado para usar outros ingredientes da regi�o, como pimenta-de-macaco, e refor�ar as particularidades que caracterizam sua charcutaria. “Produzimos do lado de uma �rea de preserva��o, a umidade � sempre muito boa, ent�o o nosso copa-lombo fica um espet�culo. Como a carne � entremeada de gordura, voc� sente a fatia macia e suculenta”, aponta.
Por se tratar de produtos artesanais, ele usa menos conservantes e respeita o tempo de matura��o.
Alquimia de temperos
Gesner Belis�rio tem uma hist�ria bem antiga na charcutaria. Desde menino, gostava de participar do ritual em fam�lia de matar o porco e preparar as carnes. Em 1987, ele fez um curso de defumados e tomou ainda mais gosto pela �rea. Produziu lingui�a e lombo at� cansar e mudar de profiss�o. Pouco antes da pandemia, voltou a fazer o que realmente gostava.
Depois de buscar v�rias refer�ncias, Gesner foi fazendo adapta��es e criando a sua pr�pria “alquimia” de temperos para chegar ao chamado salaminho da Serra. Sua receita combina 100% de copa-lombo com alho, pimentas calabresa e do reino, sal e a��car.
“Levo de 30 a 40 dias para fazer esse salame. Tem que cuidar igual crian�a, todo dia olhar para ele”, conta o charcuteiro, ao falar do seu produto mais vendido.
O charcuteiro da Serra do Cip� criou mais duas vers�es do salame, um com recheio de calabresa (massa inspirada na regi�o italiana de Cal�bria, com muita pimenta calabresa) e outro com azeitonas verdes.
“Sempre gostei da cor e do salgadinho da azeitona e resolvi testar a defuma��o, que nada mais � do que um processo lento de cozimento com fuma�a. Nessa secada, a carne incorpora o sabor da azeitona e fica muito bom”, detalha. As azeitonas s�o fatiadas, ent�o voc� consegue sentir os peda�os.
Entre as caracter�sticas marcantes dos produtos da Charcutaria da Serra, destacam-se o uso de pimentas (para sentir sabor e n�o ardor) e o adocicado da defuma��o em madeira de carvalho. Al�m dos salames, Gesner destaca o joelho dianteiro de porco desossado e defumado, o bacon temperado com p�prica picante e a pancetta defumada.
Coincidentemente, o mesmo professor do curso de defumados deu a ele acompanhamento t�cnico por dois anos em um projeto-piloto de charcutaria do Servi�o Nacional de Aprendizagem Rural (Senar).
Depois disso, o salame da Serra participou de duas edi��es do pr�mio da Confedera��o da Agricultura e Pecu�ria do Brasil (CNA): em 2020, ficou em quarto lugar e este ano conquistou a quinta posi��o. Gesner recebe interessados em aprender sobre a charcutaria artesanal para viv�ncias de fim de semana.
Feijoada com paio, calabresa, bacon, costelinha e lombo (Catau� Artesanal)
Ingredientes1 pacote de feij�o-preto; 1 cebola grande; 6 dentes de alho; 3 folhas de louro; 1kg de paio, calabresa, bacon, costelinha e lombo; sal e pimenta a gosto
Modo de fazer
Deixe o feij�o de molho de um dia para o outro. Dispense a �gua. Coloque o feij�o na panela de press�o com �gua passando tr�s dedos a sua quantidade e cozinhe at� que fique ao dente. Em outra panela, refogue o bacon, a calabresa e o paio at� que fiquem dourados. Adicione a cebola e o alho picadinhos, mexendo sempre. Por �ltimo, acrescente o lombo e a costelinha, que s�o muito macios e n�o podem desmanchar. Adicione o feij�o cozido e deixe cozinhar junto com os demais ingredientes. Se achar necess�rio, acrescente mais �gua e deixe cozinhando em fogo baixo at� o caldo encorpar e apurar o sabor. Adicione sal e pimenta a gosto e sirva ainda quente com arroz, farofa, couve e laranja.
Servi�o
Charcuteria Sagrada Fam�lia (@charcuteria_sagrada_familia)Em BH: Avenida do Contorno 7270 – loja 5, Lourdes
(31) 3284-9560
Em Montes Claros: Rua Ol�mpio Dias de Abreu – 107A, S�o Luiz
(38) 99969-6554
Tonini Charcutaria Artesanal (@toninichar)
(31) 99868-1473
Catau� Artesanal (@queijocataua)
(32) 3373-2200
Charcutaria da Serra (@charcutaria.daserra)
(31) 99855-1663