Gumbo: esp�cie de guisado, � considerado dos pratos mais emblem�ticos das culturas creola e cajun (foto: Giancarlo Zorzin/Divulga��o)
Angu, quiabo, arroz, feij�o, carne de porco... Minas Gerais n�o est� t�o distante assim, gastronomicamente falando, da �frica. Muitos dos ingredientes usados por l� estrelam pratos que fazem parte do nosso cotidiano. Mais do que apontar a influ�ncia da cultura africana na cozinha mineira, pequenos neg�cios trazem receitas t�picas do continente para Belo Horizonte. Os nomes podem soar estranhos, mas os sabores s�o bem conhecidos.
“Poder compartilhar a nossa cultura me d� muito orgulho. Fico feliz de perceber que muitas pessoas agora conhecem o meu pa�s e a �frica”, aponta Princess Kambilo, que nasceu em Brazavile, capital da Rep�blica Democr�tica do Congo. H� tr�s anos, ela e a irm�, Olga, abriram em BH o delivery de comida africana Malewa Food.
A m�e de Princess tinha um buf� para casamentos com comida tradicional do Congo. Mas n�o queria essa mesma vida para nenhum dos seis filhos. “Ela n�o teve oportunidade de se formar, ent�o tinha a preocupa��o de que fiz�ssemos faculdade. L� no Congo, a vis�o sobre o mundo � mais restrita e ela queria muito que f�ssemos criativos e tiv�ssemos senso cr�tico”, conta a filha.
Procurando bolsas de estudos no exterior, a fam�lia chegou a um programa para estudantes africanos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Princess escolheu publicidade e propaganda, e a irm� se formou em rela��es-p�blicas, mas elas acabaram seguindo, juntas, os passos da m�e. “Chegando aqui, o que mais me tocou foi a quest�o do preconceito. No Congo, a maior parte da popula��o � negra, ent�o n�o conhecia o racismo. J� tinha visto em filmes, mas n�o sabia que ainda podia existir. Foi quando reparei tamb�m que n�o tinha gastronomia africana em BH”, relembra a publicit�ria.
T�pico do Congo, o mikate lembra o nosso bolinho de chuva, mas � servido com molho de amendoim salgado (foto: Malewa Food/Divulga��o)
Malewa � uma palavra que no Congo indica um restaurante popular onde voc� vai com a fam�lia e que conta a hist�ria de onde est� atrav�s dos pratos. E � exatamente isso o que as irm�s fazem, mas de uma forma mais ampla, incluindo toda a �frica. “O nosso objetivo n�o � s� fazer comida, � contar a hist�ria do continente”, resume Princess, que vive h� 12 anos em BH (seus dois filhos nasceram aqui) e percebe que muita gente n�o conhece bem a �frica. “Muita gente tem medo de provar o que � diferente, mas falo que tudo o temos no Brasil se usa na �frica, s� a forma de cozinhar que muda.”
A cada semana, um pa�s fica em destaque no card�pio do Malewa Food. Assim, conta, ao mesmo tempo, a hist�ria do prato e do seu lugar de origem. O Congo, naturalmente, � um territ�rio muito “visitado” pelas irm�s. Entre os pratos de l�, tem o pondu, folha de mandioca batida com �leo de dend�, cebolinha e cebola. Fica parecido com um caldo, s� que mais grosso, e costuma ser servido com peixes, legumes, arroz, feij�o e banana-da-terra.
Princess tamb�m fala do poulet mayo, frango e maionese enrolados em folha de bananeira e assados na brasa, e do mitake, que pode ser comparado ao nosso bolinho de chuva, s� que a massa frita n�o leva leite, apenas farinha, �gua, a��car, fermento e baunilha. Come-se tradicionalmente com molho salgado de amendoim.
Arroz em todo lugar
Seguimos a volta pelo continente africano com o arroz jollof (com piment�o, cebolinha, cebola, concentrado de tomate e carne de cabra), do Senegal. Damos um pulo em Camar�es com o pulet DG (arroz com frango, banana-da-terra frita, cenoura, piment�o e cebolinha).
Angu de Mina, cria��o da cozinheira Kelma Zenaide, do Kitutu (foto: Victor Schwaner/Divulga��o)
Partimos para o Gab�o com o curioso hamb�rguer de banana-da-terra (no lugar do p�o) com carne de boi, salada cremosa de repolho, tomate, milho e queijo cheddar. Outra parada poss�vel � no Benin, que est� representado, por exemplo, pelo atassi (arroz com feij�o, quiabo e bacalhau).
Na parte das bebidas, voc� pode experimentar o tangawisi, suco de gengibre, lim�o e mel (que pode ter acr�scimo de rapadura), t�pico do seu pa�s, e o bissap, refresco muito consumido na �frica Central que mistura hibisco com outros ingredientes, como menta, abacaxi, morango e manga.
Segundo Princess, o Malewa atrai um p�blico diverso, incluindo afrodescendentes, curiosos e quem ama a �frica. Em geral, as pessoas que conhecem a hist�ria e comem o prato viram fregueses. As irm�s come�aram o neg�cio apenas no delivery por falta de recurso (usam a cozinha de casa, no Bairro Liberdade, Regi�o da Pampulha), mas sonham em abrir um restaurante.
Fog�o a lenha
As mem�rias mais deliciosas de Kelma Zenaide, do Kitutu, envolvem a cozinha da casa do av�, que nasceu no Quilombo dos Pinh�es, em Santa Luzia, e criou a fam�lia em Contagem. L� tinha quintal com horta, galinha, porco e fog�o a lenha. “O meu av� chegava do trabalho e se sentava em um toco de madeira pr�ximo do fog�o a lenha e ia fazendo o tempero para as carnes. Eu ficava ali do lado e, com isso, fui me encantando pela culin�ria.”
Famoso em Nova Orleans, o jambalaya, com arroz, carnes, quiabo e especiarias, tem influ�ncia africana (foto: Giancarlo Zorzin/Divulga��o)
Seus pais tinham um botequim, mas n�o conseguiam vender os pratos que faziam em casa, apesar dos elogios. “Fui crescendo e achando estranho que a nossa comida era elogiada, mas n�o tinha valor econ�mico. Comecei a me questionar por que fazia muito sucesso pizza, bacalhoada e sushi do que macarr�o com sardinha e tutu de feij�o e fui pesquisar para entender melhor isso”, conta a cozinheira, que tem forma��o em letras e se especializou em literaturas africana e afro-brasileira.
Com todo o dinheiro que tinha, Kelma comprou uma Kombi e em 2013 come�ou a rodar a cidade servindo pratos da cozinha afro-brasileira, que misturavam refer�ncias hist�ricas com sabores afetivos. “Os meus antepassados vieram de l�, trouxeram o que puderam e aqui criaram algo diferente. Tiveram que adaptar as receitas. Por isso, falo em cozinha afro-brasileira, e n�o africana”, justifica.
O Angu de Mina se tornou muito emblem�tico. Abriu seus caminhos para ganhar visibilidade e, sem querer, fez a conex�o com o seu passado. “O nome era para homenagear quem veio da Costa da Mina e foi escravizado em Minas Gerais e Rio de Janeiro. N�o tinha nenhuma refer�ncia � minha fam�lia. S� que, em 2021, quando fui pesquisar minha origem e fiz um DNA, descobri que era de l�. Sou 96% de origem africana e mais de 70% da Costa da Mina”, conta, com orgulho.
'Comecei a me questionar por que fazia muito sucesso pizza, bacalhoada e sushi do que macarr�o com sardinha e tutu de feij�o e fui pesquisar para entender melhor isso, diz Kelma Zenaide (foto: Studio Beco/Divulga��o)
Tem outro motivo para o prato ter um lugar especial na sua hist�ria: a presen�a do cora��o de boi, receita que aprendeu com o av�. “Ele recheava com toucinho fumeiro, porque n�o existia bacon, costurava com linha e agulha, selava e deixava cozinhando lentamente no fog�o a lenha. Era o prato que mais me encantava e hoje reproduzo com outra roupagem.”
No Angu de Mina, o cora��o de boi em iscas se mistura a su�, cenoura, moranga, batatas inglesa e doce, jil�, couve, quiabo e cheiro verde, que v�o por cima do angu de fub� de moinho d'�gua.
Bahia presente
Faz sucesso o arroz de crioula, com camar�o, mexilh�es, salada de tr�s alfaces e pesto de coentro e castanha de caju. Para temperar, dend� e leite de coco, ingredientes que associamos mais facilmente � Bahia, mas que caracteriza a cozinha africana. Eles tamb�m est�o na moqueca de banana-da-terra, servida com farofa de dend�, folhas de coentro e aca��. “Fazemos o aca�� com farinha de milho branco de canjica, leite de coco e coco fresco. Fica como se fosse angu, s� que mais mole.”
'Poder compartilhar a nossa cultura me d� muito orgulho. Fico feliz de perceber que muitas pessoas agora conhecem o meu pa�s e a �frica', aponta Princess Kambilo (foto: Malewa Food/Divulga��o)
Al�m de cozinhar, Kelma conta hist�rias com os pratos. O feij�o-tropeiro, segunda ela, tem liga��o direta com a hist�ria africana, j� que eram os escravos que alimentavam os tropeiros. Sua vers�o, que combina feij�o-roxinho, calabresa, bacon, farinha de milho e ovo frito, faz uma mistura de Minas com Bahia (a fam�lia do seu pai � baiana).
A cozinheira trocou o vinagrete por molho de tomate feito com semente de aroeira (pimenta-rosa) e incluiu como acompanhamento o inusitado pur� de ab�bora com leite de coco e dend�. Outro elemento importante da receita � o torresmo de lata, que ela aprendeu com o pai, mas logo avisa que a receita � segredo. “Tenho torresmo de quase um ano submerso na banha. Quanto mais tempo, mais sabor e mais croc�ncia. Ele fica sequinho, sem gordura.”
Para acompanhar, o drinque Cambinda, � base de um fermentado que ela desenvolveu com gengibre, cravo, canela e rapadura e cacha�a.
Na pandemia, Kelma acabou estacionando a Kombi na garagem e foi para o mercado de catering (sua especialidade � camarim), mas tem novidades. No m�s que vem, quer comemorar os 10 anos do Kitutu com a abertura de um espa�o no Centro da cidade. Mais que um restaurante, espera que seja um luga de valoriza��o da cultura afro-brasileira. J� o food truck deve voltar para as ruas em janeiro.
“Seria mais f�cil fazer faculdade e trabalhar em restaurante, mas deixaria minhas ra�zes de fora. S� sou quem eu sou por causa da minha origem e, depois que resolvi tra�ar esse trajeto da culin�ria afro-brasileira, me sinto mais realizada”, comenta Kelma, que batalha para que mulheres negras ganhem mais destaque na cozinha, onde ficam “invisibilizadas”.
Ao som da hist�ria
Giancarlo Zorzin vem de uma fam�lia italiana, mas sua curiosidade o aproximou da cozinha africana. Bi�logo por forma��o e cozinheiro amador, ele sempre gostou de jazz e blues por influ�ncia do pai. Logo, Nova Orleans, ao Sul dos Estados Unidos, no estado de Luisiana, estava em evid�ncia no seu mapa-m�ndi por ser o ber�o do jazz. O detalhe � que a cidade tamb�m � conhecida pelas cozinhas creole e cajun, que carrega, entre outras tantas, influ�ncias africanas.
Moqueca de banana-da-terra com aca�� da Kitutu (foto: Victor Schwaner/Divulga��o)
Na pandemia, confinado em casa, ele resolveu cozinhar pratos de l� e come�ou a ouvir elogios dos amigos. “Em uma breve pesquisa, vi que era uma culin�ria bem desconhecida do brasileiro, de modo geral, mas era muito cheia de hist�rias e sabores”, diz Gian, que ainda n�o conhece Nova Orleans.
Da� surgiu a ideia do restaurante Gumbo!, aberto em janeiro na Galeria S�o Vicente, Centro de BH. “Meu temor era a aceita��o do mineiro, mas foi muito al�m da minha expectativa. Assim que a gente abriu, a casa ficou lotada por v�rios dias. Fiquei surpreso porque vi que as pessoas eram atra�das pela curiosidade de provar pratos que n�o conheciam ou s� tinham ouvido falar do nome”, destaca do s�cio da casa, que embala as experi�ncias gastron�micas com jazz e blues, obviamente.
Alguns preparos s�o comuns a todos os pratos, como o Holy Trinity (em portugu�s, Sant�ssima Trindade), considerado a base da cozinha de Luisiana. Enquanto os mineiros fazem refogado com cebola e alho, l� eles juntam sals�o, piment�o e cebola. Isso se junta ao tempero creole, uma mistura de especiarias em p� (como pimentas, p�pricas, mostarda, tomilho e louro). Sim, � uma comida condimentada, mas nada que agrida o paladar.
O que tamb�m se repete � a mistura de prote�nas. “Isso est� ligado � escravid�o, assim como a feijoada. A dieta dos escravos era baseada no que eles tinham acesso”, aponta.
No tour pela �frica com o Malewa Food, voc� tem a chance de experimentar rabada com o arroz temperado boulaye (foto: Malewa Food/Divulga��o)
Gumbo � o nome de um prato muito emblem�tico das culturas creola e cajun, esp�cie de guisado com carnes de porco, frango, camar�o e quiabo servido com arroz e p�o de milho (muito parecido com a nossa broa de fub�, mas salgado). L�, para ficar diferente, tem forma de waffle. Nessa receita, tamb�m entra o dark roux (vers�o do franc�s roux, que tem fun��o espessante). “Juntamos farinha, �leo e manteiga e queimamos at� ficar bem escuro. Isso d� um sabor caramelizado.”
Outro prato bem conhecido � o jambalaya, tipo de paella da regi�o, com arroz, camar�o, porco defumado, frango, quiabo e pimentas caribenhas. Gian optou pela vers�o creole, chamada de Red Jambalaya pela presen�a do tomate. Vale conhecer o Grits, que se parece muito com a nossa canjiquinha, s� que mais grossa, com queijo, frango, camar�o, porco e molho picante.
Moqueca de banana-da-terra (Kelma Zenaide - Kitutu)
Ingredientes
1 piment�o; 2 tomates; 2 cebolas; 2 bananas-da-terra (de vez); 300ml de leite de coco; 100ml de �gua; 1 colher de sopa de dend�; talos de coentro picadinho; tempero caseiro a gosto
Modo de fazer
Em uma panela de barro, de prefer�ncia, disponha todos os ingredientes. Deixe pegar fervura. Apure o tempero e desligue o fogo. Acrescente folhas de coentro picadinhas. Sirva com salada, arroz, farofa, aca�� (foto) ou acompanhamento de sua prefer�ncia.