
Na sua edi��o de 10 de novembro de 1935, o peri�dico A Ra�a, jornal produzido por um grupo de militantes negros da cidade de Uberl�ndia, no Tri�ngulo Mineiro, publicou uma mat�ria em que dizia que as associa��es negras eram verdadeiros “baluartes da liberdade”. Segundo as defini��es do dicion�rio, baluarte significa alicerce, fortaleza, basti�o e, de fato, era isso que os jornalistas d’A Ra�a tinham em mente quando compararam as associa��es negras � baluartes.
As associa��es negras s�o espa�os culturais, recreativos e pol�ticos formados por pessoas negras e para pessoas negras, voltados para a abordagem e defesa dos seus interesses e quest�es. Esses espa�os est�o presentes na sociedade brasileira desde o s�culo dezenove, disseminados por todas as regi�es do pa�s.
Em Minas Gerais, elas se espalharam por diversas regi�es do seu territ�rio. Para se ter uma ideia dessa difus�o, entre 1870 e 1960 foram criadas cerca de sessenta associa��es. Geralmente, elas se desenvolviam em forma de clubes recreativos, grupos educacionais, centros c�vicos, gr�mios liter�rios, associa��es abolicionistas, esportivas, beneficentes, mutualistas, oper�rias e irmandades leigas.

Na d�cada de 1930, quando foi lan�ada a reportagem do jornal A Ra�a, as associa��es negras j� faziam parte do cotidiano de diversas cidades mineiras, constituindo-se em uma tradi��o associativa que remontava ao s�culo anterior, nas quais a luta pela liberdade e em prol da constru��o de meios de vida dignos, com respeito e igualdade para parcelas da popula��o representaram os seus princ�pios e miss�o.
Muitas delas tiveram como objetivo estabelecer uma forma de organiza��o pol�tica que visava a constru��o de projetos de sociedade e de na��o pautados na igualdade racial, na cidadania plena e no combate ao racismo – chamado � �poca de “preconceito de cor” ou “�dio de ra�a”.

As associa��es negras tamb�m foram respons�veis pela promo��o de diversos meios de sociabilidade e solidariedade. Promoviam, deste modo, um conjunto variado de atividades culturais, como bailes e festas, principalmente o carnaval; saraus liter�rios; concursos de beleza; eventos esportivos; escolas e aulas de alfabetiza��o; piqueniques e manifesta��es pol�ticas.
Tamb�m disponibilizavam aos seus s�cios servi�os de benefic�ncia ou aux�lio m�tuo que, geralmente, eram ajudas em dinheiro para o associado que estivesse passando por necessidades financeiras, em casos de doen�a, acidente de trabalho, invalidez, velhice, pris�o e morte num contexto de exist�ncia limitada de pol�ticas p�blicas de amparo social, ou seja, o objetivo das associa��es negras foi proteger os seus s�cios dos riscos que comprometiam as suas condi��es de vida.
Todas essas manifesta��es pol�ticas faziam parte de um projeto mais amplo – a constru��o e consolida��o da liberdade das (e paras as) pessoas negras, quer dizer, construir, manter e investir em associa��es negras significava uma outra possibilidade de exist�ncia, sobreviv�ncia e atua��o numa sociedade em que o racismo era um elemento estruturante das desigualdades.
Por isso, a met�fora “baluarte da liberdade” representava mais do que uma imagem poss�vel; para os negros, as suas associa��es eram de fato um s�mbolo potente de organiza��o pol�tica que tinha como objetivos a constru��o de projetos de sociedade e de na��o pautados na igualdade racial, na cidadania plena e no combate ao racismo.
Esse repert�rio n�o foi privil�gio dos militantes do jornal A Ra�a, muito pelo contr�rio, tratava-se de uma prerrogativa comum compartilhada por milhares de pessoas integrantes das dezenas de associa��es negras espalhadas por Minas Gerais. N�o � � toa que todas elas partilhavam objetivos comuns. Isso, por �bvio, n�o significa negar as suas diferen�as e peculiaridades, mas apontar que existiram princ�pios que estruturavam uma esp�cie de base comum nessas associa��es, como por exemplo, o enfrentamento da opress�o e do racismo e a discuss�o com liberdade e autonomia dos medos, anseios e sonhos acalentados pelas pessoas negras.
A luta antirracista no Brasil � um processo hist�rico de longa data, por isso, dif�cil de ser definido num tempo e datas espec�ficos. O certo � que a popula��o negra sempre a abra�ou como um dos seus grandes desafios e projetos. Neste ano de 2021, comemora-se os 150 anos da promulga��o da Lei n. 2040, de 28 de setembro de 1871, conhecida no imagin�rio social como “Lei do Ventre Livre”, que entre outros aspectos deu in�cio ao processo da aboli��o no Brasil, estipulando que a partir daquela data os filhos de mulheres escravizadas nasceriam livres.
O significado pol�tico dessa lei foi mobilizado e instrumentalizado pelas associa��es negras ao longo de todo o s�culo vinte com a inten��o de relembrar a luta pela liberdade e o fim da escravid�o, mas tamb�m como uma forma de denunciar e atualizar as suas demandas.
Esse repert�rio pol�tico serviu de base assim como pavimentou o terreno para as in�meras mobiliza��es criadas pelos movimentos negros contempor�neos, como aquele surgido na capital ga�cha em meados do ano de 1971, respons�vel pela cria��o do 20 de novembro como dia dedicado � consci�ncia negra e � luta antirracista que, n�o por coincid�ncia, celebra tamb�m neste ano de 2021 o seu 50° anivers�rio.
Ainda que em propor��es diferentes, tanto a luta das associa��es negras do in�cio do s�culo vinte em Minas Gerais e em outras partes do Brasil, como os movimentos negros de hoje t�m como preocupa��o essencial a defesa do negro, a den�ncia e o combate ao racismo, a luta pela igualdade racial e por uma sociedade que os reconhe�a como cidad�os.
* Historiador e integrante da Rede de Historiadorxs Negrxs