
O poema "Vozes-mulheres", lido de maneira emocionada pela ministra Anielle Franco ao tomar posse do Minist�rio da Igualdade Racial na quarta-feira (11/1), em Bras�lia, � reverenciado por mulheres negras que evocam a ancestralidade para constru��o de futuros promissores para as mais jovens.
Os versos de Concei��o Evaristo, que emocionaram os presentes na cerim�nia no Pal�cio do Planalto, reverberaram. O poema viralizou, compartilhado nas redes sociais. O EM fez entrevista exclusiva com Concei��o Evaristo, nesta quinta-feira (11/1), que contou como comp�s o poema que entra para a hist�ria da Rep�blica brasileira.
O texto integra o livro "Poemas da recorda��o e outros movimentos", cuja primeira edi��o foi em 2008 pela editora Nandyala. Por�m, foi publicado pela primeira vez nos Cadernos Negros nos anos de 1990. O livro ganhou uma reedi��o da editora Mal�. Os poemas abordam quest�es da feminilidade e resist�ncia negra por meio do acionamento da mem�ria.
Os versos tamb�m evocam viv�ncias de mulheres negras com quem Concei��o se relacionou na inf�ncia e juventude. "O eu-l�rico feminino aparece em v�rios poemas e assim a autora reconta a hist�ria atrav�s das viv�ncias de av�s, m�es e filhas, compondo assim uma linhagem feminina", escreve a pesquisadora Amanda Crispim Ferreira em artigo na Literafro, publica��o da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
De muito tempo, Concei��o inspira mulheres negras que atuam nas artes, na politica, na educa��o. Os versos de Vozes-Mulheres tamb�m foram recitados pela cineasta Safira Moreira na abertura do filme Travessia. Outro poema da obra bastante revisitado � o "A noite n�o adormece nos olhos das mulheres negras".
ENTREVISTA
Concei��o Evaristo
Quando nasceu o poema Vozes-mulheres? Qual foi a inspira��o?
Tenho esse poema escrito � m�o, datado. Foi no final dos anos 1980. Talvez tenha nascido em 1987, 1988. Ele � publicado nos Cadernos Negros 13, editado pelo grupo Quilombhoje em 1990, no momento que publico o primeiro trabalho. Os versos nascem da viv�ncia junto �s mulheres da fam�lia e do em torno. Crescendo, eu ouvi hist�rias da escraviza��o dos africanos e seus descendentes. Minha m�e, minha tia, outras mulheres da favela eram mulheres que sempre trabalharam: as av�s, as filhas, as netas. Ent�o, gera��es de mulheres em trabalho subalternizado e raramente uma dessas mulheres conseguiam sair de um lugar historicamente pr�-determinado. A inspira��o � essa viv�ncia. Esse hist�rico pertence aos povos afro-diasp�ricos e � uma experi�ncia muito viva das mulheres negras.
O que orientou a escrita do livro Poemas da Recorda��o e outros movimentos
O que orientou � a vida. Eu tenho dito que presto aten��o na vida. Eu assunto a vida para tentar transformar essa movimenta��o, essa din�mica da vida na escrita e tamb�m fazer dessa escrita uma movimenta��o. Uma din�mica de vida tamb�m. Ent�o, o que me orienta � esse compromisso com a escreviv�ncia. Escrever a partir da viv�ncia. N�o que n�o haja ficcionaliza��o. H� a ficcionaliza��o. As narrativas trazem essa ficcionaliza��o. No poema, eu posso tomar como inspira��o uma pessoa. Pode ser uma musa criada, uma musa inventada, uma imagem inventada. O poema pode girar em torno de uma imagem inventada, mas mesmo essa imagem inventada, � uma imagem que reflete uma situa��o real. Por exemplo, "Todas as manh�s", poema que foi criado depois do momento que visitei o cemit�rio aqui na Gamboa, o espa�o que se torna o Museu dos Pretos Novos, e, ali, eu vi ossos � flor da pele. J� foi comprovado que ali era uma grande �rea de cemit�rio, onde se enterravam os africanos e seus descendentes escravizados. Ora contemplar aqueles ossos � flor da pele, retomar toda uma situa��o hist�rica, o que mais me sensibilizou � que se via ossos pequenos e tudo indicava que eram ossos de crian�as: m�ozinhas, pernas. Pensar que ali havia ossos de crian�as, crian�as que morreram sob o jugo da escraviza��o me inspirou para escrever "Todas as manh�s".
A escreviv�ncia...
Sempre um acontecimento real ou uma mem�ria hist�rica, acompanhada tamb�m de um apelo, de uma presen�a da ancestralidade na minha subjetividade, na minha hist�ria pessoal, � que me d� esse material, me faz compor esse projeto de escrita - que est� marcado n�o s� nos poemas, mas tamb�m nos contos e nos romances e at� na cr�tica, material que produzo como cr�tico, ensaios liter�rios, cr�tica liter�ria.
Vozes-mulheres � um poema muito citado por mulheres negras. E como voc� pensou a incorpora��o do poema na posse da ministra Anielle Franco.
A leitura do poema Vozes-Mulheres por Anielle Franco, naquele momento, ao incorporar no discurso de posse, ela n�o s� exemplifica como ela � a incorpora��o desse poema. No final do discurso, ela diz a essas filhas, quando as �ltimas estrofes se referem � essa pot�ncia acumulada. Interessante pot�ncia que � acumulada atrav�s da dor, atrav�s da precariedade. Essa falta, essa aus�ncia, essa situa��o de n�o possuir nada, essas mulheres despossu�das, elas potencializam e d�o posse �s gera��es futuras. Quando a Anielle diz 'a voz da minha filha � a minha voz' ela traz justamente essa ilustra��o concreta, ou essa presentifica��o do poema. O poema � tamb�m � uma esp�cie de adivinho do futuro, ou tamb�m � uma palavra de predizer o futuro. Esse futuro que foi predito, foi falado, foi prefaciado por todas outras vozes que viveram situa��o de explora��o, de escraviza��o, uma situa��o de subalternidade, situa��o que mesmo em que se produz essa escrita, � uma escrita diferenciada, porque est� marcada pelo sofrimento.
Mas ao mesmo tempo, s�o versos que prenunciam novos tempos...
Os versos dizem das rimas de sangue e fome, mas, ali�s, o poema vai crescendo, crescendo e finaliza com isso: 'as vozes de nossas filhas v�o tra�ar um outro destino para elas, para a coletividade negra e para a na��o. A posse de Anielle, de outras mulheres negras, como tamb�m a posse de mulheres ind�genas, a posse dos homens negros - n�o a posse, mas a fun��o que essas pessoas v�o ter na m�quina do estado realiza o qu� o poema est� dizendo nos �ltimos versos: 'a voz dasminh filhas � a voz do eco liberdade'
Confira o poema:
A voz de minha bisav� ecoou
crian�a nos por�es do navio.
Ecoou lamentos
de uma inf�ncia perdida.
A voz de minha av�
ecoou obedi�ncia
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha m�e
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo � favela
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se far� ouvir a resson�ncia,
o eco da vida-liberdade.
Poemas da recorda��o e outros movimentos
Concei��o Evaristo
Editora Mal�
122 p�ginas
R$ 27,93