
Um pai de santo celebrava um culto em um terreiro de candombl� em Vit�ria da Conquista, na Bahia, quando, na noite de 24 de janeiro de 2022, come�ou a ouvir, em alt�ssimo volume, frases como "Jesus Salva!".
Do lado de fora, um homem, que se declarou evang�lico, acabara de estacionar um carro de som para interromper a cerim�nia e tentava "exorcizar" quem chegava ao local. Indignado, o l�der religioso registrou um boletim de ocorr�ncia e fez uma den�ncia � Promotoria de Justi�a de Combate ao Racismo do Minist�rio P�blico da Bahia.
Tr�s meses depois, em 25 de abril, uma jovem de 16 anos foi agredida em uma escola municipal de Joinville, em Santa Catarina, ap�s dizer que era praticante de umbanda, religi�o de matriz africana.
Segundo a m�e da adolescente, que � m�e de santo e registrou um boletim de ocorr�ncia, sua filha conversava sobre religi�o com um colega de turma quando outra aluna ouviu e, entre outras ofensas, disse que a estudante "cultuava o dem�nio".Em 2 de novembro, uma m�e de santo foi impedida de entrar em um hospital estadual na cidade do Rio de Janeiro para atender um paciente na UTI. Segundo ela, que dirige um terreiro de candombl� em Guapimirim, na Baixada Fluminense, os funcion�rios alegaram que a fam�lia n�o teria autorizado sua entrada.
Depois de esperar por cerca de seis horas do lado de fora, a m�e de santo registrou um boletim de ocorr�ncia e denunciou o caso � Comiss�o de Combate � Discrimina��o da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Uma lei federal de 2000 assegura o livre acesso de l�deres religiosos aos hospitais da rede estadual e privada atender pacientes.
"Os ataques est�o sempre rondando o povo do ax�", lamenta Ana Paula Santana de Souza, conhecida como Iya Paula de Od�, m�e de santo que foi impedida de entrar em um hospital de Marechal Hermes, na Zona Norte do Rio, para fazer um ritual em Jer�nimo Rufino dos Santos J�nior, de 39 anos, que sofreu um AVC em 31 de outubro e morreu cinco dias depois.
"Implorei ao seguran�a para conversar com o diretor de plant�o, mas n�o adiantou. O racismo religioso foi n�tido quando minha advogada conseguiu entrar na unidade e eu, n�o. Isso n�o teria acontecido se fosse outro segmento religioso."

M�dia de tr�s den�ncias por dia
O n�mero de den�ncias de intoler�ncia religiosa no Brasil aumentou 106% em apenas um ano. Passou de 583, em 2021, para 1,2 mil, em 2022, uma m�dia de tr�s por dia. O Estado recordista foi S�o Paulo (270 den�ncias), seguido por Rio de Janeiro (219), Bahia (172), Minas Gerais (94) e Rio Grande do Sul (51).
A maior parte foi feita por praticantes de religi�es de matriz africana, como umbanda e candombl�. Seis em cada dez v�timas s�o mulheres. S� nos primeiros 20 dias de 2023, o Disque 100, canal para den�cias de viola��es de direitos humanos, registrou 58 ocorr�ncias.
"A intoler�ncia religiosa, assim como o racismo, est�, desde o per�odo colonial, atrelada � hist�ria da forma��o da sociedade brasileira. Atualmente, faz parte das rela��es sociais cotidianas", afirma Ivanir dos Santos, doutor em Hist�ria Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e interlocutor da Comiss�o de Combate � Intoler�ncia Religiosa (CCIR).
"A liberdade religiosa, assegurada na Constitui��o, ainda n�o � uma realidade. Na d�cada de 1980, os ataques, principalmente no Estado do Rio, passaram a ser praticados pelo poder paralelo, que proibia o funcionamento de templos religiosos de matrizes africanas dentro das favelas."
Mas o n�mero de casos de intoler�ncia religiosa no pa�s pode ser maior do que o registrado pelo governo federal, aponta Nilce Naira do Nascimento, a m�e Nilce de Ians�, coordenadora nacional da Rede Nacional de Religi�es Afro-Brasileiras e Sa�de (Renafro).
Em julho de 2022, a entidade divulgou o relat�rio "Respeite o Meu Terreiro — Mapeamento do Racismo Religioso Contra Os Povos Tradicionais de Religi�es de Matriz Africana", que ouviu lideran�as de 255 comunidades tradicionais de terreiros, no qual 78% dos entrevistados relataram que membros de suas comunidades j� sofreram algum tipo de viol�ncia, f�sica ou verbal, por racismo religioso.
"Todos n�s j� fomos discriminados. Muitos nos olham como se f�ssemos de outro planeta. Somos sempre apontados, seja por nossa indument�ria, seja por nossos guias, que usamos para nossa prote��o. Somos uma tradi��o de matriz africana. A maioria do nosso povo � formada por negros e negras. Isso incomoda. Mas, n�o deixo de fazer nada por causa do racismo religioso. Incentivo a quem sofreu viol�ncia a ir � delegacia e denunciar. O Estado � laico, e isso tem que ser respeitado", afirma.
"Nasci e me criei dentro de terreiro. Nossas portas est�o abertas para qualquer pessoa. Somos um espa�o de acolhimento e escuta, que n�o discrimina ningu�m. Lutamos para construir uma cultura de paz. Esse espa�o sagrado merece respeito."

N�mero de casos quintuplicou em 2022
No ambiente virtual, o n�mero de casos de intoler�ncia religiosa quintuplicou em um ano. Segundo levantamento da Safernet, ONG que mant�m uma central de den�ncias de viola��es contra direitos humanos, como racismo, misoginia e xenofobia, os ataques online saltaram de 614, entre janeiro e outubro de 2021, para 3,8 mil, no mesmo per�odo de 2022, um crescimento de 522%.
"� importante denunciar toda e qualquer manifesta��o que ataque ou incite viol�ncia contra pessoas ou grupos em raz�o de sua orienta��o religiosa. As autoridades precisam ser provocadas para tomar provid�ncias e investigar os casos", explica Juliana Cunha, diretora de projetos especiais da Safernet.
"Quando o crime acontece na internet, a v�tima, ou qualquer pessoa, pode fazer a den�ncia no site denuncie.org.br. A abordagem criminal � importante para desfazer a percep��o de que a internet � uma terra sem lei, mas n�o � suficiente. A mudan�a s� vir� como resultado da educa��o. O melhor ant�doto para o discurso de �dio � a informa��o".
O advogado Arnon Velmovitsky, presidente da CCIR-OAB-RJ, explica que a Constitui��o garante a todo cidad�o o direito de escolher sua religi�o e, tamb�m, o direito de culto, ou seja, de exercer sua religi�o plenamente.
Em caso de intoler�ncia religiosa, isto �, da invas�o de terreiros, da interrup��o de cultos e do vandalismo de imagens, a v�tima deve procurar uma delegacia especializada em crimes raciais e delitos de intoler�ncia e registrar um boletim de ocorr�ncia. � importante reunir provas, fotos ou v�deos e testemunhas para viabilizar a puni��o do agressor.
"Entendo que a educa��o ainda � o melhor caminho, mas n�o � o �nico. Vamos lan�ar uma cartilha para conscientizar a popula��o. Al�m disso, � indispens�vel ter leis com penas mais severas e multas de valor elevado para inibir essa pr�tica mal�fica."
'Intoler�ncia religiosa mata!'
Nem mesmo famosos escapam ilesos da ira de fan�ticos religiosos. Em 9 de julho, a atriz Cleo Pires e o empres�rio Leandro D'Lucca renovaram seus votos de casamento em uma cerim�nia realizada pelo babalorix� Paulo de Oy�. "Aben�oados no ax�", escreveu ela em seu perfil no Instagram.
Logo, alguns seguidores come�aram a postar mensagens preconceituosas. Uns disseram que Cleo estava "cega". Outros lamentaram que estivesse "desviada de Jesus". "Intoler�ncia religiosa mata!", desabafou a atriz nas redes sociais.

"Foi um turbilh�o de sensa��es: medo, impot�ncia, desrespeito, incredulidade... N�o foi a primeira vez, mas foi a de maior propor��o. Estava ali celebrando algo, renovando os meus votos de casamento, e algumas pessoas se aproveitaram disso para destilar �dio e preconceito", lamenta Cleo.
"Recomendo substituir o �dio por pesquisa e o preconceito por leitura para entender melhor sobre religi�es de matriz africana. Precisamos aprender a respeitar o diferente para avan�armos como sociedade. Vivemos em um Estado laico. As pessoas t�m o direito de professar sua f�. E a obriga��o de respeitar."
S�mbolo de luta contra o racismo religioso
A intoler�ncia religiosa n�o � um fen�meno recente no Brasil. Em outubro de 1999, Gild�sia dos Santos, a m�e Gilda de Ogum, teve uma foto sua, com trajes de candombl� e uma oferenda aos p�s, publicada em uma reportagem do jornal Folha Universal, da Igreja Universal do Reino de Deus, que acusava religi�es de matriz africana de praticar charlatanismo.
"Macumbeiros charlat�es lesam o bolso e a vida dos clientes", dizia o t�tulo da mat�ria. Em poucos dias, a vida de m�e Gilda de Ogum virou um inferno.
Ela teve seu terreiro invadido e suas imagens depredadas. Os v�ndalos ainda agrediram f�sica e verbalmente a fundadora do Il� Ax� Abass� de Ogum. Aos 65 anos, ela sofreu um infarto e morreu em 21 de janeiro de 2000.
Sua filha, Jaciara Ribeiro dos Santos, processou a Universal, que foi obrigada a publicar uma retrata��o no seu jornal e a pagar, em setembro de 2008, uma indeniza��o de R$ 145,2 mil por danos morais e uso indevido de imagem � fam�lia de m�e Gilda. Em sua mem�ria, 21 de janeiro virou o Dia Nacional de Combate � Intoler�ncia Religiosa.
"O Brasil sempre teve uma no��o fr�gil de laicidade. O sistema de cren�as dos 5 milh�es de pretos e pretas escravizados no Brasil sempre foi satanizado pelos colonizadores portugueses", diz Sidnei Nogueira, o Sidnei de Xang�, doutor em Semi�tica pela Universidade de S�o Paulo (USP) e autor de Intoler�ncia Religiosa (Janda�ra, 2020).
"Intoler�ncia tem a ver com desrespeito. � quando um determinado grupo toma sua religi�o como superior � dos demais e n�o respeita a do outro. Estamos vivendo um momento de fanatismo religioso."

Respeitem o meu ax�
Em junho de 2015, outro caso de intoler�ncia religiosa ganhou repercuss�o nacional. Na noite do dia 14, a estudante Kayllane Coelho Campos, ent�o com 11 anos, foi atingida por uma pedra ao sair de um culto de candombl� na Vila da Penha, na Zona Norte do Rio.
A pedra foi arremessada por dois jovens que estavam em um ponto de �nibus. Segundo a fam�lia da v�tima, os agressores conseguiram fugir. Tr�s dias depois, a caminho do Instituto M�dico Legal (IML) para fazer exame de corpo de delito, a garota, acompanhada da av�, que � m�e de santo, voltou a ser atacada. "Vai queimar no inferno!", gritou um homem que passava pelo local.
"Guardo duas lembran�as daquele dia: primeiro, o sangue sujando minha roupa branca e o desespero de n�o poder fazer nada", observa Kayllane, hoje com 18 anos.
"De l� para c�, a situa��o s� piorou. Est� cada vez mais dif�cil conviver com pessoas que n�o respeitam as diferen�as e, pior, n�o seguem a B�blia que diz: 'Amar�s ao teu pr�ximo como a ti mesmo'. Acho que, com leis mais severas, elas pensariam duas vezes antes de cometer qualquer ato de intoler�ncia religiosa."
A intoler�ncia religiosa deixa cicatrizes, n�o s� f�sicas, como psicol�gicas. Durante muito tempo, Kayllane, que tem m�e evang�lica e av� m�e de santo, teve medo de sair de branco �s ruas.
"Toda intoler�ncia religiosa � uma viol�ncia, toda viol�ncia gera trauma, e todo trauma afeta, com maior ou menor intensidade, a sa�de ps�quica de um indiv�duo", explica a psic�loga T�nia Jandira Rodrigues Ferreira, que presta atendimento a v�timas de intoler�ncia religiosa.
"O Brasil � um pa�s de maioria crist� que sempre foi intolerante com as religi�es n�o crist�s. J� fomos chamados de charlat�es, curandeiros e hist�ricos. Como dar um basta � intoler�ncia religiosa? A educa��o � o melhor caminho. � preciso educar para a paz."
Este texto foi originalmente publicado em bbc.co.uk/portuguese/brasil-64393722