
Por volta das 17h30 do dia 6 de janeiro de 2021, ap�s 34 horas de trabalho no ano, os chefes das principais empresas brit�nicas receberam a mesma quantia que um trabalhador m�dio no Reino Unido ganha ao longo do ano inteiro.
De acordo com uma pesquisa do High Pay Centre, um think tank independente com sede em Londres, os presidentes das empresas listadas no �ndice FTSE 100 da bolsa de Londres ganham uma m�dia de £ 3,6 milh�es por ano (R$ 27,6 milh�es) — mais de 100 vezes a m�dia de £ 31.461 (R$ 241 mil) recebida por trabalhadores em tempo integral.
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No topo da lista de CEOs, est� Tim Steiner, executivo-chefe do supermercado online Ocado, que ganhou £ 58,7 milh�es em 2019. Isso representa 2.605 vezes a m�dia dos funcion�rios da empresa. Em um dia, ele recebeu sete vezes o sal�rio anual deles.
Do outro lado do Atl�ntico, a situa��o � ainda mais extrema. Uma an�lise do Economic Policy Institute, think tank com sede em Washington DC, mostrou que os CEOs das 350 maiores empresas dos EUA ganharam uma m�dia de US$ 21,3 milh�es (R$ 115 milh�es) em 2019. Isso estabelece uma propor��o de remunera��o de 320 para 1 entre o CEO e os funcion�rios — mais de cinco vezes o n�vel em 1989.
Essas descobertas acontecem no momento em que a pandemia de covid-19 agravou a desigualdade em todo o mundo, expondo as popula��es de baixa renda a mais riscos � sa�de, perda de emprego e decl�nio no bem-estar.Essas diferen�as se tornam mais n�tidas do que nunca, � medida que cresce a consci�ncia do valor dos trabalhadores "essenciais" — que costumam ter poucos direitos trabalhistas e baixos sal�rios.
O resultado � uma perplexidade e indigna��o crescentes com os sal�rios extraordinariamente altos que os chefes de grandes empresas continuam ganhando.
Com essas profundas desigualdades expostas, muitos se perguntam como esses enormes sal�rios surgiram. Por quem e como eles s�o autorizados? E, acima de tudo, ser� que devem continuar a ter espa�o na sociedade p�s-pandemia?
As origens dos 'sal�rios baseados em pre�os'
A disparidade salarial dos executivos tem origem nas pol�ticas propostas na d�cada de 1980 pelo governo Reagan nos EUA e Thatcher no Reino Unido. Suas filosofias pol�ticas impulsionaram a desregulamenta��o, a privatiza��o do setor p�blico e o capitalismo de livre mercado.
Ambos tamb�m viam com maus olhos os sindicatos, que em �ltima inst�ncia desempenharam um papel na capacidade reduzida dessas organiza��es de defender os trabalhadores.
"Se voc� voltar ao in�cio desse per�odo, era muito comum que o trabalho dos executivos fizesse parte do sistema geral de avalia��o de cargos de uma empresa. Havia um sistema para avaliar o pagamento de todos", diz Sandy Pepper, especialista em remunera��o de executivos da Universidade London School of Economics (LSE), no Reino Unido.
Mas, segundo ele, o sistema anterior "quebrou" quando a remunera��o dos executivos foi conectada aos pre�os das a��es e as "recompensas baseadas em ativos" decolaram sob o neoliberalismo vigente.
Uma an�lise feita por Pepper, com base em dados do FTSE 100 desde 2000, mostra que a remunera��o de todos os funcion�rios aumentou em m�dia cerca de 3% ao ano, enquanto a remunera��o dos CEOs subiu aproximadamente 10% ao ano.
Segundo ele, a l�gica subjacente era pagar o CEO de acordo com o desempenho financeiro da empresa, uma vez que eles eram o fator mais importante de sucesso.
Portanto, al�m dos sal�rios, os CEOs recebiam b�nus relacionados ao desempenho e op��es de aquisi��o de a��es, que permitiam a eles comprar a��es da empresa por um determinado pre�o.
O pacote de remunera��o de Steiner, CEO do Ocado, em 2019 incluiu um b�nus de £54 milh�es pela realiza��o de um "plano de incentivo ao crescimento" de cinco anos, que mediu o crescimento do pre�o das a��es da empresa em rela��o ao FTSE 100. (O Ocado recusou o pedido para comentar)
Ao mesmo tempo, a propor��o de empresas do Reino Unido que pertencem a indiv�duos caiu drasticamente.
Os acionistas ganharam poder e sua demanda por pre�os de a��es em alta levou a pacotes de remunera��o elevados para CEOs — autorizados, por sua vez, por conselhos de administra��o ansiosos para agradar seus investidores.
Robin Ferracone, CEO da Farient Advisors, consultoria internacional de remunera��o de executivos, concorda com esses sal�rios "determinados pelo pre�o".
"Se voc� tem um bom CEO, o efeito multiplicador pode ser enorme", diz ela.
"Portanto, em princ�pio, o pagamento mediano por desempenho mediano e o pagamento elevado por alta performance fazem sentido."
Pisando em ovos
No entanto, na realidade, o sistema de c�lculo da remunera��o do CEO � mais complicado. As empresas contam com comit�s de remunera��o, compostos em sua maioria por conselheiros e executivos de outras empresas, que se re�nem uma vez por ano.
Al�m das medidores mais tradicionais de experi�ncia pr�via e performance, os comit�s usam o benchmarking como uma parte fundamental do processo — observando como a remunera��o do CEO se compara � de empresas semelhantes, de acordo com o ex-CEO Steven Clifford, autor do livro The CEO Pay Machine.
Geralmente, o montante estar� no 50º, 75º ou 90º percentil, mantendo ou aumentando constantemente assim o sal�rio, escreve ele.
Um estudo de 2010 do Journal of Financial Economics concluiu que esse sistema de comit�s de remunera��o est� acelerando a infla��o salarial "porque essas empresas semelhantes permitem justificar o alto n�vel de remunera��o de seus CEOs".
Os b�nus s�o ent�o acordados como uma forma de medir a performance, aumentando com base em medidas financeiras ou pagos se metas espec�ficas forem atingidas.
Tanto o processo da remunera��o base quanto da bonifica��o s�o vistos pelos representantes dos trabalhadores como problem�ticos, uma vez que os conselhos, por n�o quererem desagradar o dirigente da empresa que poderia pedir demiss�o ou demiti-los, aumentam o valor.
Janet Williamson, da Trades Union Congress do Reino Unido, argumenta que o sistema de comit�s de remunera��o, que geralmente se reportam diretamente ao CEO, carece de imparcialidade e deve ser reformado.
"Precisamos abandonar os sal�rios relacionados ao desempenho — � isso que levou a esses aumentos", acrescenta.
Na verdade, Pepper argumenta que a evid�ncia emp�rica mostra que a correla��o mais forte entre o sal�rio e as medidas financeiras da empresa n�o � o desempenho financeiro, mas sim o tamanho das companhias — simplesmente h� mais dinheiro para gastar.
"Quanto maior a empresa, mais os CEOs s�o remunerados", diz ele.
'CEOs s�o a chave para o sucesso'
Se a remunera��o do CEO � justificada, continua sujeito a um acirrado debate. Por um lado, os economistas do livre mercado argumentam que os altos sal�rios dos executivos s�o justificados se estiverem alinhados aos interesses dos executivos e acionistas. Se as empresas est�o dispostas a pagar essas quantias, eles dizem, esse � o valor que o mercado acredita que os executivos valem.
"Os CEOs s�o a chave para o sucesso", afirma Daniel Pryor, chefe de programas do Adam Smith Institute, think tank neoliberal.
"Est� bastante claro que h� um n�mero limitado de pessoas com habilidades, personalidade e disposi��o para ser CEO de uma empresa de ponta, e esse n�mero limitado de pessoas � altamente procurado."
Pryor cita os exemplos de Steve Jobs na Apple, Jeff Bezos na Amazon e Elon Musk na Tesla e SpaceX, talentos excepcionais que desenvolveram tecnologias revolucion�rias a partir do zero.
No entanto, v�rios pesquisadores afirmam que o papel do CEO m�dio — um profissional com perfil gerencial que n�o fundou o neg�cio e n�o foi um vision�rio — � exagerado. Outros fatores s�o mais importantes para decidir o destino de uma empresa.
"H� v�rios motivos pelos quais uma empresa pode ter um bom desempenho", diz David Bolchover, especialista em remunera��o de gestores que escreveu o livro Pay Check: Are Top Earners Really Worth It?.
"Talvez a economia ou o setor deles estejam aquecidos, o que n�o tem nada a ver com o CEO, talvez eles operem em um oligop�lio. Pode ser a contribui��o dos funcion�rios. O impacto de um CEO no desempenho da empresa n�o � mensur�vel, esse � o cerne da quest�o. Eles usam essa 'ideologia do talento' para justificar. Mas ser� que a habilidade deles � t�o rara? Acho que � um engodo."
Bolchover diz que a crise financeira global de 2008 � um excelente exemplo de como performance e remunera��o nem sempre est�o alinhados.
"O setor financeiro sempre defendeu seus altos sal�rios com base em suas raras habilidades e talento", afirma.
"Mas muitos desses bancos quebraram durante a crise, e as pessoas come�aram a se perguntar — por que eles receberam tanto e continuaram a receber tanto mesmo depois da crise?"
De acordo com Bolchover, o "v�rtice do interesse pessoal" entre acionistas, membros do conselho e executivos � o motivo pelo qual a remunera��o dos CEOs n�o caiu — e, para ele, � por isso que h� uma press�o crescente do p�blico em geral.
'Um avan�o dram�tico'
Enquanto os altos sal�rios continuam de vento em popa, os direitos dos empregados parecem estar em uma trajet�ria descendente — especialmente para os trabalhadores da linha de frente em meio � pandemia.
Para muitos trabalhadores m�dios, essas cifras desproporcionais se tornaram cada vez mais dif�ceis de engolir.
A indigna��o da for�a de trabalho diante dessa disparidade salarial veio � tona no in�cio do m�s passado, quando milhares de funcion�rios da British Gas entraram em greve por cinco dias em resposta aos planos da empresa para reduzir a for�a de trabalho e transferir os funcion�rios para novos contratos com menos direitos.
As tens�es j� estavam se acumulando desde 2018 depois que o CEO da Centrica, a empresa dona da British Gas, recebeu um aumento salarial de 44% para £2,4 milh�es.
"� mais do que o primeiro ministro ganha. Como eles podem justificar isso?", questiona John, um trabalhador de 32 anos da British Gas, cujo nome foi alterado devido a preocupa��es em rela��o � estabilidade no emprego.
(Por e-mail, um porta-voz da Centrica afirmou que o sal�rio base do atual CEO da empresa � 19% menor do que o do CEO anterior e que, durante 2020, nem o CEO tampouco os diretores executivos receberam b�nus anual ou quaisquer aumentos salariais.)
H� sinais, no entanto, de que o aumento da remunera��o dos CEOs est� pelo menos diminuindo. Paul Lee, que trabalhou como consultor de investimentos por 20 anos, diz que o sal�rio dos CEOs no Reino Unido "estagnou" nos �ltimos anos, "mas o n�vel tem estado em torno de £ 4 a 5 milh�es por v�rios anos".
Lee acredita que a mudan�a de mentalidade dos investidores institucionais e dos fundos soberanos est� por tr�s da recente estagna��o dos sal�rios. Eles investem nessas empresas de alta remunera��o, mas em �ltima inst�ncia s�o financiados pelo p�blico em geral — por meio de fundos de pens�o e de investimento — e est�o cientes da crescente inquieta��o.
"Esses n�meros s�o justificados? � realmente dif�cil dizer objetivamente", diz ele.
"Mas h� uma atmosfera crescente de presta��o de contas. Em parte por causa do debate p�blico, em parte pela press�o do governo."
Por exemplo, nos Estados Unidos, o projeto para a cria��o da Lei do Capitalismo Respons�vel da senadora Elizabeth Warren prop�e limites de tempo para as vendas de a��es de uma empresa, na tentativa de mudar o foco dos retornos de curto prazo para os acionistas para os objetivos de longo prazo de todas as partes interessadas.
H� tamb�m iniciativas como as de San Francisco e Portland, onde as empresas s�o tributadas se sua propor��o de remunera��o for muito alta, criando um incentivo econ�mico expl�cito para maior igualdade.
E, em meio � pandemia, executivos de grandes empresas, incluindo Boeing, Marriott International e PwC, sacrificaram voluntariamente parte de seus sal�rios para salvar empregos de funcion�rios em 2020 — embora muitos critiquem isso como uma mudan�a simb�lica.
Luke Hildyard, diretor do High Pay Center, diz que as empresas podem tomar outras medidas significativas para reduzir a disparidade salarial, como incluir a representa��o dos funcion�rios nos conselhos e aprimorar os relat�rios dos dados de pagamento da empresa para aumentar a presta��o de contas.
Os ganhos da empresa poderiam, ent�o, ser distribu�dos de maneira mais uniforme pela for�a de trabalho.
"Melhorar a vida dessas pessoas com incrementos relativamente pequenos de dinheiro pode ser transformador", diz Hildyard.
"Seria um avan�o dram�tico."
Para Hildyard, as cifras dos CEOs s�o uma evid�ncia "assustadora" da crescente divis�o social.
"O Reino Unido � um dos pa�ses mais desiguais em termos de renda no mundo desenvolvido, e isso aumentou junto com o aumento dos sal�rios dos executivos."
Ele argumenta que isso � importante porque as pesquisas mostram que pa�ses desiguais tendem a se sair mal em medidas que incluem coes�o social, sa�de p�blica e bem-estar, n�veis de criminalidade e educa��o. N�veis mais altos de desigualdade significam que a sociedade sofre.
Com uma recess�o econ�mica global no horizonte � medida que a pandemia se intensifica, Hildyard acredita que o "escrut�nio da desigualdade" aumentar�.
Ele diz que o papel crescente do setor financeiro, a terceiriza��o de trabalhos mal remunerados e o decl�nio dos sindicatos est�o por tr�s do aumento da desigualdade nas �ltimas d�cadas.
"Ao mesmo tempo, os que est�o no topo n�o apenas mantiveram sua riqueza — mas a viram crescer enormemente", acrescenta.
"Se essa tend�ncia continuar, a sociedade ficar� ainda mais dividida e os trabalhadores v�o sofrer."
Leia a vers�o original desta reportagem (em ingl�s) no site BBC Work Life.
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