
� apag�o ou racionamento?
A pior crise h�drica no pa�s em 91 anos trouxe de volta ao vocabul�rio dos brasileiros termos que estavam quase em desuso desde 2001, ano que foi marcado por uma pol�tica de redu��o compuls�ria do consumo de energia el�trica, imposta pelo governo federal.
O racionamento de energia teve forte impacto sobre a popularidade do ent�o presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), somando-se � crise de desvaloriza��o do real de 1999, com efeitos relevantes sobre a atividade econ�mica. Os dois fatores juntos contribu�ram de maneira decisiva para que o tucano Jos� Serra fosse derrotado por Luiz In�cio Lula da Silva (PT) nas elei��es de 2002, segundo analistas � �poca.Mas o que querem dizer cada um desses termos?
Existe "racionaliza��o compuls�ria" ou "racionamento educativo" — express�es contradit�rias que apareceram no debate nas �ltimas semanas?
E o que a sopa de letrinhas ONS, ENA, PLD e SIN — siglas para Operador Nacional do Sistema El�trico, Energia Natural Afluente, Pre�os de Liquida��o das Diferen�as e Sistema Interligado Nacional — tem a ver com a sua conta de luz?
Conversamos com Edvaldo Santana, diretor da Ag�ncia Nacional de Energia El�trica (Aneel) entre 2005 e 2013, e Filipe Pungirum, meteorologista da Climatempo, para nos ajudar a entender cada um dos termos da crise do setor el�trico.

Apag�o - � uma falha inesperada no fornecimento de energia. S�o exemplos: a crise energ�tica que durou tr�s semanas no Amap� em 2020, ap�s inc�ndio numa subesta��o em Macap�, e o blecaute que atingiu dez Estados e o Distrito Federal em 11 de mar�o de 1999.
Racionamento - � a determina��o pelo governo de uma redu��o compuls�ria do consumo de energia el�trica, quando o sistema n�o tem condi��es de atender � totalidade da demanda devido a algum problema, como a falta de chuvas decorrente de uma crise h�drica.
No Brasil, a medida foi adotada entre 1º de julho de 2001 e 19 de fevereiro de 2002, durante o segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). O racionamento aplicado ent�o estabelecia uma redu��o obrigat�ria de 20% no consumo de energia el�trica, sob amea�a de multa e corte no fornecimento.
Por que os dois termos costumam ser confundidos? "� que aqui no Brasil, em 2001 e 2002, quando teve o racionamento, a oposi��o ao governo Fernando Henrique chamou aquilo de 'apag�o'. Assim, os dois termos aqui viraram sin�nimos, mas s�o coisas completamente diferentes", explica o ex-diretor da Aneel Edvaldo Santana.
Atualmente, h� risco de apag�o ou racionamento? At� o momento, e de olho nas elei��es de 2022, o governo tem negado enfaticamente a possibilidade de um racionamento.
No entanto, a Aneel estuda um aumento de at� 60% na bandeira vermelha das contas de luz, que seria uma forma de desestimular o consumo de energia el�trica via pre�o. Com isso, a cobran�a adicional passaria dos atuais R$ 6,24 a cada 100 kWh (quilowatts-hora) consumidos, para cerca de R$ 10, resultando num aumento de at� 20% no pre�o final das contas de luz.
A ag�ncia reguladora se re�ne nesta ter�a-feira (29/06) para definir o reajuste das bandeiras.
O governo tamb�m tem descartado a possibilidade de apag�es, isto �, de falhas imprevistas no sistema.
Contudo, o ONS, �rg�o respons�vel pela coordena��o e opera��o do sistema el�trico brasileiro, alertou que os reservat�rios das hidrel�tricas do Sudeste e Centro-Oeste devem chegar a novembro a 10,3% da capacidade — isso se o plano de a��o desenhado pelo governo para prevenir um quadro mais grave for bem-sucedido.
Ser� o n�vel mensal mais baixo para os reservat�rios em 20 anos, segundo afirmou o diretor-geral do ONS, Luiz Carlos Ciocchi, em audi�ncia p�blica na C�mara dos Deputados em 20 de junho.
Caso as a��es n�o surtam o efeito esperado, o n�vel dos reservat�rios pode cair para 7,5%, alertou o executivo, percentual em que o sistema de gera��o de energia entraria em colapso e falhas de fornecimento podem acontecer.

Racionaliza��o - � quando o governo cria incentivos para que o consumidor, por conta pr�pria, economize energia. O ex-diretor da Aneel Edvaldo Santana cita como exemplo a distribui��o de geladeiras mais eficientes a fam�lias de baixa renda, feita por algumas distribuidoras de energia nos anos 2000. O aumento da tarifa tamb�m � um incentivo � racionaliza��o.
'Racionaliza��o compuls�ria' - A primeira vers�o da MP (medida provis�ria) elaborada pelo atual governo para combater os efeitos da crise do setor el�trico trouxe uma express�o esquisita: "racionaliza��o compuls�ria".
O termo causou estranhamento geral, por ser contradit�rio. "Quando h� racionaliza��o, ela nunca � compuls�ria, � sempre volunt�ria", afirma Santana. "Quando h� racionamento, a� sim, � compuls�rio. O governo misturou as duas coisas."
Uma nova vers�o da minuta excluiu o neologismo, mas a MP j� passou a ser chamada no Congresso e na imprensa de "MP do Racionamento" ou "MP do Apag�o", trazendo de volta o fantasma que o governo quer afastar �s v�speras da disputa da reelei��o em 2022.
A MP, que cria um grupo de trabalho para definir a��es para amenizar a crise energ�tica, foi editada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) nesta segunda-feira (28/06). A medida j� est� valendo, mas precisar� ser aprovada pelo Congresso para se manter em vigor at� o fim do ano.

'Racionamento educativo' - Outro neologismo que apareceu no debate recente sobre a crise do setor el�trico.
O termo foi usado pelo presidente da C�mara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL).
"O ministro Bento (Albuquerque, das Minas e Energia) esteve comigo, fazendo an�lise de cen�rio, garantindo que n�s n�o vamos ter nenhum tipo de problema com apag�o, mas vamos ter que ter um per�odo educativo de algum racionamento para n�o ter nenhum tipo de crise maior", afirmou Lira, ap�s participar em 22 de junho da cerim�nia de lan�amento do Plano Safra 2021-2022 no Pal�cio do Planalto.
Horas depois, diante da forte repercuss�o negativa da sua declara��o, Lira negou a possibilidade de racionamento.
"Falei h� pouco com o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, que esclareceu que a medida provis�ria n�o ir� trazer qualquer comando relativo ao racionamento de energia. Ser� feito o incentivo ao uso eficiente da energia pelos consumidores de maneira volunt�ria", escreveu o presidente da C�mara, em postagem nas redes sociais.
"'Racionamento educativo' � como 'racionaliza��o compuls�ria': n�o existe", afirma Edvaldo Santana. "O que acontece � que 'racionamento' � uma coisa que, no Brasil, perde elei��o. Ent�o n�o se pode falar disso. Fica todo mundo com medo e a� ficam tentando mascarar."
"Isso � muito perigoso. A propaganda do governo sobre a crise, da forma como est� sendo feita, � praticamente in�cua", opina o ex-diretor da Aneel. "Ela destaca a crise de �gua, quando n�o h� escassez nos reservat�rios de �gua para consumo."
"� preciso dizer com todas as letras que o problema � de energia e que a popula��o tem que economizar eletricidade. Mas por que ficam falando de �gua? � que a regula��o da �gua para uso humano � estadual e municipal, ent�o o governo federal quer dividir o problema com Estados e munic�pios. � esperteza pol�tica na hora de fazer a propaganda", opina Santana.
Bandeiras tarif�rias - O sistema de bandeiras tarif�rias das contas de luz foi implantado em janeiro de 2015 pela Aneel com dois objetivos.
O primeiro deles � remunerar as distribuidoras pela compra de energia mais cara produzida pelas termel�tricas em momentos de escassez de gera��o hidrel�trica. O segundo � sinalizar ao consumidor que h� escassez na oferta de energia, no momento em que o problema est� acontecendo, como uma forma de incentiv�-lo a reduzir o consumo.
Antes do sistema de bandeiras, quando acontecia o acionamento de usinas t�rmicas, as distribuidoras arcavam com o custo adicional e s� eram recompensadas pelo gasto a mais no reajuste anual das contas de luz para os consumidores.
Com isso, podia acontecer de o reajuste ocorrer num momento em que j� n�o houvesse mais escassez de energia, dando um sinal errado ao consumidor, com pre�os baixos no momento de escassez e mais altos quando a situa��o j� estivesse regularizada. As bandeiras foram criadas ent�o para resolver esse descompasso.
Inicialmente, o sistema tinha tr�s patamares: verde (sem acr�scimo na conta de luz), amarelo e vermelho. Posteriormente, foi criado um segundo patamar para a bandeira mais cara com a introdu��o da bandeira vermelha patamar 2, que � a que est� vigorando atualmente, com acr�scimo de R$ 6,24 na conta de luz a cada 100 kWh consumidos.
Agora, o governo estuda elevar essa cobran�a adicional, mas ainda n�o est� decidido se ser� criado um novo patamar nas bandeiras ou se a bandeira vermelha 2 ser� reajustada para um valor mais alto, que pode chegar a um acr�scimo de R$ 10 a cada 100 kWh consumidos.

E agora, a sopa de letrinhas:
ENA (Energia Natural Afluente) - Numa hidrel�trica, � a quantidade de �gua que chega nos reservat�rios que pode ser transformada em energia.
"� essa Energia Natural Afluente que, nos �ltimos meses, tem ficado em 60%, 50% do valor hist�rico. No m�s de junho, deve ser a mais baixa em 90 e tantos anos", diz Santana, acrescentando que esse indicador � monitorado para saber quanto de energia poder� ser gerada � frente.
PLD (Pre�o de Liquida��o das Diferen�as) - As distribuidoras de energia — como a Enel na capital paulista e a Light na capital fluminense -— s�o obrigadas a contratar 100% da energia que ir�o fornecer aos consumidores em contratos de longo prazo firmados com geradores.
Essa energia contratada �s vezes pode sobrar ou faltar e a diferen�a � comprada (quando falta) ou vendida (quando sobra) no chamado mercado de curto prazo, a um pre�o chamado de "pre�o de liquida��o das diferen�as". Isso porque s� se negocia nesse mercado a diferen�a entre o contratado pelas distribuidoras e o realizado.
"Quando n�o tem �gua, � o PLD que sinaliza isso", observa Edvaldo Santana, explicando porque esse � um termo relevante na crise atual. "O normal � o PLD estar em R$ 100, R$ 150 [por megawatt-hora]. J� est� em R$ 350 e deve chegar no m�s que vem no teto, que � R$ 580."
SIN (Sistema Interligado Nacional) - � o sistema de produ��o e transmiss�o de energia el�trica do Brasil. � formado por quatro subsistemas: Sul, Sudeste/Centro-Oeste, Nordeste e a maior parte da regi�o Norte (� exce��o de Roraima).
Esses sistemas trocam energia entre si, aproveitando a diversidade de regimes de chuva nas diferentes regi�es do pa�s.
O subsistema Sudeste/Centro-Oeste � considerado a "caixa d´ï¿½gua" do sistema el�trico brasileiro, por conter cerca de 70% da capacidade de armazenamento para gera��o hidrel�trica. E � justamente esse subsistema que est� sendo mais afetado pela crise h�drica atual.
J� o subsistema Norte passa pela situa��o contr�ria: com chuvas acima da m�dia hist�rica, que levaram inclusive a fortes alagamentos nos rios da regi�o.
"O Norte nunca exportou tanta energia para o resto do pa�s como agora", diz Santana. "No m�s passado (maio), chegou a exportar 11 gigawatts, que � suficiente para atender Minas Gerais e o Rio de Janeiro."
"Agora, a �gua j� est� acabando, e a exporta��o deve ficar em torno de 2 gigawatts. A partir do m�s que vem, � zero. A gera��o de Belo Monte e Tucuru� s� vai ser suficiente para atender o Norte, porque essas usinas n�o t�m grandes reservat�rios", afirma o ex-diretor da Aneel.
"Se n�o fosse o Norte, poder�amos ter racionamento j� em agosto, setembro. O Norte ajudou muito a minimizar a crise."

El Ni�o e La Ni�a - Por fim, os �ltimos termos necess�rios para dominar o "be-a-b�" da crise h�drica s�o os fen�menos clim�ticos El Ni�o e La Ni�a.
S�o duas fases opostas de um fen�meno de mudan�a de temperaturas na faixa tropical do oceano Pac�fico. Quando essas �guas est�o mais frias do que o normal, acontece a La Ni�a. Quando est�o mais quentes que o normal, � a vez do El Ni�o.
Esse aquecimento ou resfriamento afeta a circula��o atmosf�rica global, trazendo consequ�ncias clim�ticas para v�rias partes do mundo.
No Brasil, El Ni�o desfavorece as chuvas no Norte e Nordeste do pa�s e favorece no Sul, trazendo ainda aquecimento para o Sudeste. J� La Ni�a tem efeito inverso, provocando mais chuva no Norte e Nordeste, menos chuva no Sul e favorecendo a forma��o de corredores de umidade no Sudeste, com temperaturas mais baixas no per�odo �mido.
O ano de 2020 foi de La Ni�a, diz Filipe Pungirum, meteorologista da Climatempo. Esse � um fen�meno que n�o � t�o prejudicial ao setor el�trico, j� que provoca chuvas na maior parte dos sistemas brasileiros.
"Mas ele n�o � o �nico fen�meno que impacta a distribui��o de chuvas nas bacias brasileiras. N�o foi por causa da La Ni�a que n�s chegamos � situa��o atual", garante Pungirum.
Segundo o meteorologista, o fator mais relevante para a seca atual no Sudeste foi a configura��o da temperatura das �guas do oceano Atl�ntico, que foi muito desfavor�vel ao avan�o de frentes frias e � forma��o de corredores de umidade na regi�o da bacia do Paran�.
"� preciso lembrar tamb�m que a gente vem de uma sequ�ncia de anos insatisfat�rios em termos de chuva, o que tem prejudicado a sa�de dos nossos reservat�rios", destaca o especialista.
Segundo Pungirum, algumas teorias relacionam esse fen�meno �s mudan�as clim�ticas de longo prazo, mas o meteorologista avalia que ainda � preciso uma s�rie mais longa, de pelo menos trinta anos, para que essas hip�teses possam ser confirmadas.
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