
"O segredo est� na higiene e na qualidade da fruta"
Vicente Quirino Fontes, de 86 anos, veterano doceiro do distrito de S�o Bartolomeu
De Ouro Preto – A tricenten�ria Igreja S�o Bartolomeu, emoldurada por montanhas e pela luz do outono, � testemunha de uma hist�ria constru�da com muito trabalho, enriquecida nos frutos da terra e ado�ada pelas m�os talentosas de homens e mulheres nascidos no distrito que leva o nome do santo padroeiro ou vindos de outras cidades de Minas Gerais.
Em Minas, os tempos atuais balan�am as estruturas, e as atividades econ�micas, independentemente do porte, procuram se adaptar � nova realidade, em muitos casos, encontrando novos caminhos. A produ��o de doces no estado abarca desde a oferta variada do distrito de Ouro Preto ao doce de leite produzido na Universidade Federal de Vi�osa, na Zona da Mata, j� considerado o melhor do Brasil em concursos de produtos l�cteos, e aos caramelos octogen�rios da empresa exportadora Embar�.
O estado det�m ainda polos produtores como os de Ponte Nova, com sua famosa goiabada, e Arax�, no Alto Parana�ba. Hist�rias de supera��o dos efeitos da pandemia de COVID-19 s�o contadas nesta reportagem, a quinta mat�ria da s�rie “Reinven��o das nossas tradi��es” publcada desde domingo pelo Estado de Minas.
H� 40 anos residente em S�o Bartolomeu, aonde chegou com o marido Ronald Carvalho Guerra, o Roninho, ambientalista dedicado ao ecoturismo, a professora do ensino fundamental e doceira Pia M�rcia Chaves Carvalho Guerra est� � frente dos Doces Vov� Pia e da Associa��o dos Doceiros e Agricultores Familiares de S�o Bartolomeu, com 15 produtores cadastrados. “De mar�o a outubro do ano passado, paramos com tudo, as vendas no atacado cessaram. Foi imposs�vel trabalhar, pois o com�rcio fechou. Deixamos de comercializar nossos doces em calda e barra, geleias, licores e o vinho de jabuticaba em Ouro Preto e de enviar para Belo Horizonte, S�o Paulo e Rio de Janeiro”, conta Pia, diante da lojinha no S�tio Jequitib�, onde o casal, vindo de Belo Horizonte, criou seis filhos e mant�m o pomar.
Dar a volta por cima significa resistir �s crises, e foi assim, com muito gosto e for�a de vontade, que Pia aproveitou o tempo para criar produtos. Na pandemia, “nasceu” o suco de jabuticaba totalmente org�nico, de tonalidade semelhante a do vinho e, vale destacar aqui, saboros�ssimo, conforme constatou a equipe do EM. “Testamos muito, fizemos v�rias experi�ncias at� chegar ao resultado final. Acho que foi aprovado. Rico demais para a sa�de, viu?”, diz a produtora, com satisfa��o, servindo ao rep�rter mais um gole da novidade l�quida.
Com a esperan�a de que tempos melhores vir�o – principalmente “porque fa�o doce h� quatro d�cadas por puro amor” -, a moradora de S�o Bartolomeu, a exemplo de outros doceiros locais, vem encontrando dificuldades para comprar os vidros para colocar os produtos. “Esse, agora, � o gargalo. J� mandei buscar at� em Santa Catarina, mas a� encarece demais os custos, algo complicado para quem perdeu renda”. Um ponto positivo para atrair compradores est� na nova sinaliza��o que conduz os interessados ao s�tio, no qual um quadro com versos da poetisa goiana Cora Coralina (1889-1985) d� as boas vindas: “Minhas m�os doceiras...jamais ociosas. Fecundas. Imensas e ocupadas. M�os laboriosas. Abertas sempre para dar, ajudar, unir e aben�oar”.
Janelas abertas Voltar aos velhos tempos, quando os produtos eram vendidos na janela do casar�o localizado de frente para Igreja S�o Bartolomeu, foi a maneira encontrada por Vicente Quirino Fortes, de 86 anos, para vender seus doces, em especial a goiabada apelidada de “tijolo” devido ao tamanho dos 3 quilos de sabor. Casado h� 53 anos com dona Serma, uni�o que gerou seis filhos e se desdobrou em 10 netos, o bem-humorado “seu” Vicente � um dos mais antigos doceiros do distrito, atendendo na loja Doces Edu Tijolo. “S� n�o sou o mais velho, porque a tradi��o de doces aqui tem 200 anos”, avisa com um sorriso discreto.
A goiabada casc�o se tornou o carro-chefe, mas tem tamb�m doce de leite. “O segredo da produ��o est� na higiene e na qualidade da fruta. Quanto mais nova, melhor”, recomenda Vicente, explicando que, com a pandemia, anda se sente um prisioneiro, mesmo j� tendo tomado as duas doses da vacina contra a COVID-19. Mas para dar asas � tradi��o e atender a clientela que voltou ao distrito, o doceiro est� a postos na janela, com toda simpatia.
Mesmo impedido de entrar no estabelecimento, o fregu�s fica com �gua na boca e aprende que o talento passa de gera��o a gera��o. “Minhas netas est�o fazendo bombons”, mostra todo orgulhoso a bandeja com os doces embalados em papel brilhante.
A produ��o artesanal de doces em S�o Bartolomeu tem registro de pelo menos dois s�culos, come�ando com a marmelada, hoje sumida do mercado local. H� relatos de viajantes, no in�cio do s�culo 19, sobre os costumes alimentares na antiga Vila Rica, atual Ouro Preto, e arredores. Ao passar por Cachoeira do Campo, o austr�aco John Pohl escreveu que receber�, de um “bom velho, uma caixa de doces do arraial vizinho de S�o Bartolomeu”.

Goiabada certificada e caramelos no exterior
Outro polo doceiro de Minas que ganhou fama est� em Ponte Nova, na Zona da Mata. A Secretaria Municipal de Cultura informou que a famosa goiabada casc�o produzida na cidade foi reconhecida como patrim�nio imaterial em 2016. As pesquisas mostram que ela chegou ao munic�pio, no s�culo 19, com as usinas de beneficiamento de cana-de-a��car. Os oper�rios, � �poca, levaram ao munic�pio o costume de comer o doce. Atualmente, h� produtos que exibem o selo de reconhecimento por terem mantido a receita original. S�o eles Sinh� Mineira, Goiabada Z�lia, Doces da Christy, Doces Jatiboca e outros.
Ser realista � essencial para sobreviver nos mares turbulentos revolvidos pelo coronav�rus. “Estou me reorganizando. Mas a t�bua de salva��o, em meio a tantas ondas, � e ser� sempre a compet�ncia”, acredita a propriet�ria dos Doces da Christy, a empres�ria Christiana dos Mares Guias Martins, h� 25 anos produzindo sua famosa goiabada casc�o no S�tio Alm�cega, em Ponte Nova.
“Vivemos um per�odo de muita dificuldade. Dos 14 funcion�rios que eu tinha antes da pandemia, permaneceram 8. Houve ajuda governamental para os trabalhadores, mas n�o para os microempres�rios. Ent�o, continuamos passando aperto demais”, afirma.
Para Christiana, que batizou os doces com o apelido de inf�ncia, a informalidade chegou para ficar. “N�o critico de forma alguma, pois tem muita gente vendendo comida, bolos e pudins deliciosos. No entanto, quem est� estabelecido paga impostos e sofre severa fiscaliza��o.” Em tempos de e-commerce e velocidade virtual, a empres�ria confia na credibilidade, na hist�ria do produto e no charme da marca. “O futuro dir�. Temos que esperar tudo isso passar, sem jamais tirar o p� do ch�o.”
Oportunidade Sexta maior empresa de latic�nios do pa�s, a Embar�, detentora da marca Camponesa e com 86 anos de hist�ria, supera os desafios impostos pela pandemia, investindo em tecnologia, na qualidade da produ��o e relacionamento com os clientes. Este ano, espera crescer 15%, com planos de expans�o de vendas principalmente nas regi�es Sudeste e Nordeste do pa�s. Segundo a empresa, a estrat�gia d� continuidade aos projetos iniciados em 2020 com contrato de arrendamento de uma f�brica em Patroc�nio, na Regi�o do Alto Parana�ba. “Com a aquisi��o, a empresa aumentou em 16% a capacidade de processamento di�rio, atingindo a casa dos 2,8 milh�es de litros de leite por dia”, diz o presidente Alexandre Antunes.
Presente em todos os continentes com suas linhas de confeitaria e l�cteos, a empresa iniciou 2021 com importantes conquistas no mercado externo: retomou os mercados da �ndia, Bulg�ria e Egito e passou a exportar caramelos para a Som�lia, Maurit�nia, Arg�lia e Lib�ria. Tamb�m conquistou a Costco do Canad�, segundo maior varejista do mundo, com mais de 100 lojas no pa�s e 12 milh�es de associados (que correspondem a 43% da popula��o). Para a linha de l�cteos, a empresa tamb�m tem boas perspectivas para o ano. Abriu, recentemente, os mercados da Bol�via e da Rep�blica Dominicana com exporta��o do leite condensado e consolidou a exporta��o de leite, creme de leite e leite UHT no Paraguai, quando embarcou 228 toneladas desses produtos em 2020. A expectativa � de um crescimento de 10% de volume em 2021. Para a Venezuela s�o exportados leite condensado, creme de leite, doce de leite e bebida l�ctea. Em 2020, a Embar� embarcou 712 toneladas de l�cteos para o pa�s e pretende manter o ritmo em 2021. (GW)
Produ��o roda em nova engrenagem
Doce mineiro faz sempre o maior sucesso. Em Vi�osa, na Zona da Mata, s�o muitos os destaques conquistados pelo doce de leite produzido no Latic�nio Escola, unidade da Funda��o Arthur Bernardes, no c�mpus da Universidade Federal de Vi�osa (UFV). Por 10 vezes, o doce de leite Vi�osa venceu o Concurso Nacional de Produtos L�cteos (CNPL), organizado pela Empresa de Pesquisa Agropecu�ria de Minas Gerais (Epamig) e o Instituto de Latic�nios C�ndido Tostes. Assim, ele se tornou o mais premiado em todas as edi��es do CNPL. Em 2016 e 2017, foi agraciado com condecora��o recebida da Frente Gastronomia Mineira e o Instituto Eduardo Frieiro.
Recentemente, o seu processo de fabrica��o foi reconhecido como relevante interesse cultural de Minas e aprovado pelo plen�rio da Assembleia L egislativa em primeiro turno. O projeto de lei agora segue de volta para a Comiss�o de Cultura, antes de ser apreciado em segundo turno.
De acordo com a funda��o, os meses de maior impacto da pandemia sobre as vendas foram abril e maio de 2020, com retra��o de aproximadamente 40% em ambos os meses, frente ao mesmo per�odo de 2019. Junho representou a retomada dos n�veis normais de produ��o. No in�cio da crise sanit�ria, a produ��o ficou paralisada por duas semanas.
Frente ao cen�rio de incertezas, e sem condi��es de fazer proje��es de consumo e demanda pelo produto, houve suspens�o da fabrica��o de doce de leite e foram concedidas f�rias aos empregados dessa �rea. “Com essa medida, conseguimos ganhar tempo e abaixar os n�veis de estoque. Quando os colaboradores retornaram, a demanda do mercado j� estava em processo de recupera��o e foi poss�vel manter os empregos em um per�odo onde a empregabilidade foi para n�s prioridade”, explica o professor Rodrigo Gava.
A produ��o m�dia mensal � de 120 toneladas de doce de leite. O leite � coletado na regi�o de Vi�osa e cidades vizinhas. A inova��o, durante a pandemia, foi referente a mudan�as de processos e procedimentos adotados como medidas protetivas contra a COVID-19. “Aderimos �s reuni�es on-line, setores de apoio atuaram em home office, enfim, tornamos nossos processos mais r�pidos e estamos implementando o sistema de e-commerce.”