
Sem uma tradi��o de se manifestar politicamente, o empresariado brasileiro viu no questionamento das elei��es pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) um ponto de virada que levou parte do setor privado a romper seu costumeiro sil�ncio.
"Na hora em que voc� questiona o sistema eleitoral, voc� est� questionando a democracia e gerando uma poss�vel instabilidade que sempre assusta o mercado", diz Maria Alice Setubal, conhecida como Neca.
Aos 70 anos, a presidente do conselho curador da Funda��o Tide Setubal e herdeira do conglomerado Ita�, foi uma dos 267 signat�rios iniciais de um manifesto em defesa do sistema eleitoral e da ordem democr�tica, que posteriormente reuniu milhares de apoiadores.
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Publicado em p�gina inteira nos principais jornais do pa�s na �ltima quinta-feira (5/8), o documento reuniu nomes de peso do setor empresarial como Luiza e Frederico Trajano (Magazine Luiza), Jayme Garfinkel (Porto Seguro), Guilherme Leal (Natura), Hor�cio Lafer Piva (Klabin) e Carlos Jereissati Filho (Iguatemi Shopping Centers), al�m de figur�es do setor financeiro — Pedro Moreira Salles e Roberto Setubal (Ita� Unibanco), Jos� Olympio Pereira (Credit Suisse), Daniel Leichsenring e Luis Stuhlberger (Verde Asset), entre outros.
"N�o � da tradi��o brasileira empres�rios ou o setor produtivo — o 'mercado' — se manifestar politicamente, diferente de outros pa�ses, especialmente os Estados Unidos", observa Neca.
"Isso acontece porque o governo federal tem uma influ�ncia muito grande nas empresas, nos diferentes setores, na aloca��o de recursos e na prioridade das pol�ticas, o que gera dificuldade de manifesta��o p�blica com alguma cr�tica a posicionamentos governamentais", avalia a educadora e soci�loga.
O "manifesto do PIB" em defesa das elei��es — como o documento passou a ser chamado pela imprensa — veio a p�blico dias depois de uma empresa do setor financeiro da Faria Lima, avenida nobre da capital paulista, instalar em sua sede uma est�tua em homenagem ao ministro da Economia, Paulo Guedes. Isso num pa�s que soma um recorde de quase 15 milh�es de desempregados e deve fechar o ano com uma infla��o perto dos 8%.
Questionada se o epis�dio revela um alheamento das elites, e particularmente do setor financeiro, com rela��o � situa��o do pa�s e da parcela mais pobre da popula��o, Neca afirma que n�o se pode generalizar. E destaca que parte dessa elite esteve em princ�pio com Bolsonaro, mas se afastou gradualmente. Para ela, o manifesto da semana passada � mais um indicativo nesse sentido.
"Parte expressiva da Faria Lima se posicionou a favor do sistema eleitoral brasileiro, a favor da democracia e a favor da estabilidade pol�tica", afirma. "Ent�o � dif�cil dizer 'as elites' — as elites s�o divididas. Parte dessa elite, que esteve num primeiro momento com Bolsonaro se afastou dele. E eu acho que esse manifesto da semana passada foi um sinal importante de que parte da elite n�o vai adentrar qualquer aventura que possa acontecer politicamente."
'Democracia brasileira est� em risco´

Graduada em sociologia, com mestrado em ci�ncia pol�tica e doutorado em psicologia da educa��o, Maria Alice diz ter clareza de que a democracia brasileira est� em risco.
"Como tem sido amplamente discutido por soci�logos e politic�logos, os ataques � democracia do mundo contempor�neo, no s�culo 21, normalmente n�o s�o dados atrav�s de golpes, mas pelo enfraquecimento cont�nuo [das institui��es] a partir de dentro da pr�pria democracia", observa, citando como exemplos Trump nos EUA, Erdogan na Turquia, Orb�n na Hungria, al�m das Filipinas, Venezuela e o pr�prio Brasil.
"O Brasil est� dentro desses casos de governos eleitos democraticamente, mas que v�o corroendo as pr�prias inst�ncias democr�ticas. Tanto atrav�s de mudan�as na legisla��o, como, no Brasil, da elimina��o de 90% dos diferentes conselhos que faziam parte da governan�a das pol�ticas p�blicas."
Atrav�s da Funda��o Tide Setubal, Neca tem se dedicado h� anos ao tema da promo��o da diversidade. Ela avalia que a destitui��o dos conselhos de participa��o � parte de um retrocesso mais amplo das pol�ticas p�blicas relacionadas ao tema na esfera federal.
"Por outro lado, � importante ressaltar que h� uma rea��o em rela��o a isso", afirma. "Especialmente a partir do evento [do assassinato nos EUA, em maio de 2020, do cidad�o negro] George Floyd, h� um avan�o grande na sociedade civil brasileira de enxergar o racismo estrutural", observa. Para ela, "passamos em muito pouco tempo de um olhar de uma [suposta] democracia racial, para nos enxergarmos como uma sociedade racista, isso � uma virada de chave muito importante e vem acompanhada de um aumento crescente das a��es e iniciativas para superar a desigualdade racial e promover as diversidades como um todo."
Neca afirma que a Funda��o Tide Setubal deve ser atuante no processo de revis�o da Lei de Cotas das institui��es de ensino superior em 2022. A reavalia��o decenal, estabelecida pela pr�pria lei aprovada em 2012, tem gerado preocupa��o no movimento negro, pois ser� realizada sob o governo Bolsonaro e em ano eleitoral, quando o debate pol�tico tende a ser mais ideologicamente polarizado.
"Estamos acompanhando e apoiando muito de perto essa quest�o, por que ela [a Lei de Cotas] foi fundamental", diz Neca. "A pandemia tamb�m mostrou isso de forma muito concreta, com a grande quantidade de lideran�as negras nas comunidades que se destacaram e que t�m forma��o universit�ria, mestrado, doutorado. Ficou muito clara a import�ncia de j� termos hoje uma gera��o de lideran�as oriundas das periferias, das favelas, de origem racial negra ou ind�gena — em menor quantidade, mas que tamb�m j� temos."
"Isso � fundamental tamb�m para que as empresas possam encontrar no mercado de trabalho pessoas qualificadas para ocuparem cargos e fun��es de lideran�a", acrescenta. "A Lei das Cotas, fruto de um amplo trabalho e da luta do movimento negro, � um sucesso e tem um impacto positivo enorme para a sociedade brasileira como um todo."
'Brasil tem experi�ncia para recuperar tempo perdido por alunos'
Com longa atua��o na �rea de educa��o, Maria Alice avalia que � poss�vel recuperar o tempo perdido pelas crian�as e jovens brasileiros durante a pandemia, mas que isso deve exigir alguns anos de trabalho e o acolhimento de estudantes que estar�o em diferentes n�veis de aprendizagem e que tiveram sua sa�de mental muito afetada pela crise.
"A boa not�cia � que temos experi�ncias de acelera��o da aprendizagem, de refor�o escolar, de escola multisseriada — que � uma escola com v�rios n�veis em uma mesma sala de aula. Ent�o, temos projetos de sucesso nesses eixos fundamentais de serem trabalhados agora e que podem ser recuperados e adaptados", afirma.

Ela destaca que esse esfor�o precisar� ser coordenado pelas secret�rias de educa��o dos Estados e munic�pios.
"Infelizmente n�o temos um Minist�rio da Educa��o que organize, que centralize as informa��es, d� normatiza��es e apoie as secretarias", observa. "Essa falta de uma pol�tica nacional de educa��o � dram�tica, porque faz com que cada Estado e cada munic�pio v� para um lado, sem um olhar coordenador e orientador disso tudo."
No meio ambiente, outra �rea de sua atua��o — ela foi apoiadora de primeira hora das candidaturas � Presid�ncia de Marina Silva e ajudou na capta��o de recursos para viabilizar a cria��o da Rede Sustentabilidade, partido da ex-ministra —, Maria Alice tamb�m lamenta a perda de protagonismo do governo federal.
"O cen�rio � dram�tico e o relat�rio da ONU desta semana foi absolutamente contundente quanto � import�ncia que ter� a COP 26 agora em Glasgow", diz a pedagoga, citando a Confer�ncia das Na��es Unidas sobre Mudan�as Clim�ticas de 2021, prevista para acontecer entre 31 de outubro e 12 de novembro na cidade escocesa.
"O Brasil poderia ter um papel de lideran�a, como teve em outros tempos, mas infelizmente todas as pol�ticas do nosso governo v�o na dire��o contr�ria — no dia de publica��o do relat�rio, por exemplo, tivemos a publica��o no Di�rio Oficial de uma lei de 'carv�o sustent�vel', quando o relat�rio indica a necessidade de acabarmos com a ind�stria baseada em carv�o. 'Carv�o sustent�vel' � uma coisa que n�o existe. Estamos na contram�o do mundo", afirma.
Ela destaca que o setor privado tem atuado por meio de planos para zerar a emiss�o de carbono em suas atividades e de iniciativas como a Concerta��o pela Amaz�nia (que re�ne l�deres empresariais interessados no desenvolvimento sustent�vel da regi�o) e o Plano de Recupera��o Verde, lan�ado em julho pelos governadores dos Estados da Amaz�nia.
"As empresas t�m se posicionado apoiando as pol�ticas p�blicas ligadas a governos estaduais, mas em tudo isso fica faltando a parte do governo federal", avalia Maria Alice. "As empresas t�m um poder de governabilidade at� certo ponto, os governos estaduais tamb�m, mas a falta de uma pol�tica firme de governo contra o desmatamento � muito grande, impede um avan�o maior do pa�s e, ao contr�rio, abre espa�o a um retrocesso muito grande."
Voto em Lula num segundo turno contra Bolsonaro em 2022

Al�m de apoiar Marina Silva, Maria Alice Setubal declarou voto em A�cio Neves (PSDB) no segundo turno de 2014, ap�s Dilma Rousseff (PT) acusar a ent�o candidata do PSB de ser "sustentada por banqueiros", devido a sua proximidade com a herdeira e acionista do Ita�.
Mesmo tendo sofrido ataques pelo PT, ela j� declarou em entrevista � Folha de S.Paulo que votar� em Lula num eventual segundo turno entre o petista e Bolsonaro.
"Como cidad� e como figura p�blica, vejo que Lula tem um compromisso com a defesa da democracia e com todas as suas institui��es. Ele tamb�m se compromete com o projeto de um pa�s mais justo, menos desigual, no qual as diferentes vozes, brancas, negras e ind�genas, poder�o ser ouvidas e apresentarem suas demandas e vis�es de mundo", disse na entrevista.
� BBC News Brasil Maria Alice reafirma que votar� em Lula "sem a menor d�vida" no cen�rio que hoje parece ser o mais prov�vel para o segundo turno de 2022. Mas ela avalia que ainda h� espa�o para que outros candidatos se fortale�am para a disputa.
"Ainda temos um ano e meio at� as elei��es, ainda tem espa�o n�o sei se para uma terceira via, mas para que outras candidaturas possam ganham for�a", afirma.
"O cen�rio brasileiro est� muito inst�vel, a cada dia � uma nova situa��o, um novo contexto. � muito dif�cil fazer uma previs�o para 2022 — nem sabemos se haver� Bolsonaro ou se ter� um processo de impeachment ou o avan�o de outros processos que ele est� sofrendo no TSE [Tribunal Superior Eleitoral] e no STF [Supremo Tribunal Federal]."
Ela se diz confiante na vit�ria do que chama de "campo progressista" em 2022, mas afirma que isso n�o significa que a reconstru��o do pa�s est� dada. "Cada um de n�s tem que se responsabilizar pela constru��o de um novo pa�s a partir de 2022. A vis�o conservadora de extrema-direita vai continuar a�, ent�o no dia seguinte das elei��es vamos ter que continuar lutando e trabalhando para a implementa��o de uma nova vis�o de mundo."
Para Maria Alice, h� dois riscos principais no caminho entre o presente e esse poss�vel futuro melhor: o pr�prio governo Bolsonaro e seus apoiadores, devido a sua absoluta imprevisibilidade, e o risco de o campo progressista n�o conseguir dialogar para al�m dos seus pr�prios limites.
"H� a extrema-direita, a esquerda e um meio de campo grande. Esse meio de campo j� votou no Lula, votou no Bolsonaro e agora est� em disputa", afirma. "Se n�o souber falar, ficar com aquela linguagem herm�tica, esquece, a gente j� perdeu. O grande desafio � o campo advers�rio a Bolsonaro conseguir dialogar para al�m das suas bolhas."
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