
Na plataforma de com�rcio eletr�nico Mercado Livre, o kit para convers�o de autom�veis para GLP � vendido por valores que variam de cerca de R$ 500 a R$ 1 mil, com a promessa do vendedor de uma economia de "30% na cidade e 50% na estrada".
A economia prometida n�o � verdadeira, segundo c�lculo feito por professor de finan�as da FGV (Funda��o Getulio Vargas) e da PUC-SP (Pontif�cia Universidade Cat�lica de S�o Paulo) a pedido da BBC News Brasil. E a pr�tica ilegal exp�e motorista e passageiros a risco elevado de explos�o.
Na C�mara dos Deputados, um projeto de lei (PL 4217/19) que autoriza o uso do g�s de cozinha em motores diversos, incluindo o de ve�culos, foi aprovado na CCJ (Comiss�o de Constitui��o e Justi�a) em agosto e est� pronto para ir � vota��o em Plen�rio.
O projeto divide opini�es no setor de g�s. Representantes do segmento de GNV (g�s natural veicular) — combust�vel que � diferente do GLP e pode ser usado em autom�veis legalmente — s�o contr�rios � aprova��o. Eles argumentam que ela pode estimular a convers�o clandestina e, com o aumento de demanda, encarecer o g�s de cozinha para as fam�lias, j� que entre 27% e 30% do GLP consumido no Brasil � atualmente importado.
Em agosto, o pre�o m�dio do botij�o de g�s de 13 kg estava em R$ 93, segundo a ANP (Ag�ncia Nacional do Petr�leo, G�s Natural e Biocombust�veis), mas j� superava os R$ 100 em diversos Estados brasileiros, como Mato Grosso (R$ 114), Rond�nia (R$ 111), Amap� (R$ 109), Roraima (R$ 109) e Par� (R$ 102).
- 'Passei a cozinhar com carv�o': como a infla��o deve afetar os mais pobres em 2021
- Como aumento de 39% no g�s natural pela Petrobras chegar� ao seu bolso
Os representante dos distribuidores de GLP, por sua vez, acusam o setor de GNV de querer manter reserva de mercado e defendem a liberdade de escolha dos consumidores, lembrando que o combust�vel � utilizado em autom�veis na Europa.
Procurado, o Mercado Livre disse que a venda de kits de GLP na plataforma � proibida e que, assim que identificados, os an�ncios com esse teor s�o derrubados e o vendedor, notificado. Ap�s a resposta da empresa � BBC News Brasil, diversos an�ncios foram apagados.

'Serve para carro Uno, ano 92, carburado?'
O an�ncio diz que � de "Kit G�s GLP Botij�o P13 para Empilhadeiras Barcos Geradores", mas as d�vidas dos compradores e respostas do vendedor n�o deixam d�vidas: o principal uso pretendido por quem compra um desses kits � a convers�o clandestina de autom�veis.
"Bom dia, serve [para] carro uno ano 92 carburado?", pergunta um comprador. "Ol�, serve sim", recebe de resposta.
"Kit para Saveiro injetada", pede outro cliente. "Qual ano e motor? Monoponto ou 4 bicos? Especifique", responde o vendedor.
"Boa tarde. Esse kit consigo instalar em um Chevette 1.6 a gasolina? Desde j� agrade�o", questiona um terceiro. "Consegue sim", � a resposta.
Para quem pergunta a economia obtida com a convers�o, a resposta � sempre a mesma: "Economia em R$ [reais], 30% cidade e 50% estrada, essa � a m�dia", promete o vendedor.
Al�m do kit supostamente para empilhadeiras — �nico ve�culo no qual o uso de GLP � autorizado —, muitos outros an�ncios trazem explicitamente o modelo de ve�culo a que o produto se destina: "Kit G�s GLP Botij�o P13 Vectra Ano 98 Motor 2.2 8v", "Kit G�s GLP Botij�o P13 Doblo 1.3 16v 2005 Gasolina", "Kit G�s GLP Botij�o P13 Meriva 1.4 Flex", eram alguns dos exemplos dispon�veis na quinta-feira (23/9).
Infla��o e proibi��o
A busca por economia no combust�vel � justificada: segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica), a gasolina acumula alta de 31% no ano, at� agosto, e de 39% em 12 meses. J� o etanol subiu 41% entre janeiro e agosto e 62% no acumulado de 12 meses.
No entanto, a convers�o para GLP � ilegal. A Lei 8.176 de 1991 define como crime contra a ordem econ�mica o uso do "g�s liquefeito de petr�leo em motores de qualquer esp�cie, saunas, caldeiras e aquecimento de piscinas, ou para fins automotivos".
A resolu��o 673 do Contran (Conselho Nacional de Tr�nsito) diz que utilizar g�s de cozinha em autom�veis � uma infra��o grave. O motorista flagrado perde cinco pontos na carteira, pode ser multado em R$ 195,23 e ter o ve�culo apreendido.
A infra��o tamb�m est� descrita no artigo 230 do C�digo de Tr�nsito Brasileiro (CTB) e em normativa da ANP (Resolu��o ANP nº 49 de 2016).
A convers�o clandestina de ve�culos para GLP era uma pr�tica comum no Brasil dos anos 1980, particularmente nas periferias, mesmo sendo proibida pelo Contran desde 1986. J� a defini��o do uso como "crime contra a ordem econ�mica" aconteceu em 1991, em meio � Guerra do Golfo, uma das principais regi�es produtoras de petr�leo do mundo — o GLP � um derivado do �leo.
Mesmo ap�s a proibi��o, a pr�tica continuou nos anos 1990. Uma reportagem da Folha de S. Paulo de 1998 , por exemplo, relatava que cerca de 25 mil ve�culos rodavam movidos a g�s de cozinha na regi�o de Irec�, no interior da Bahia.
"Os propriet�rios dos ve�culos argumentam que o g�s de cozinha � mais econ�mico. Com um botij�o de g�s (13 kg), o propriet�rio de um ve�culo pode rodar at� 170 km", dizia a reportagem. "O botij�o de g�s custa R$ 9 nos postos de Irec�."
Botij�o de g�s a R$ 9. Realmente, eram outros tempos.

Economia de 30%? Longe disso!
E atualmente, compensa fazer a convers�o clandestina com o botij�o acima dos R$ 90?
O professor Fabio Gallo Garcia, da FGV e da PUC-SP, � taxativo: n�o compensa, nem do ponto de vista econ�mico, nem no da seguran�a de motoristas e passageiros.
A pedido da BBC News Brasil, o especialista em finan�as estimou o custo por quil�metro rodado dos diversos tipos de combust�veis, considerando um pre�o m�dio de R$ 6,076 por litro para a gasolina, R$ 4,704 por litro para o etanol, R$ 4,146 por metro c�bico para o GNV e R$ 16,12 por metro c�bico para o GLP (equivalente a R$ 98,33 por botij�o de 13 kg).
Pelas contas do professor, considerando apenas o pre�o dos combust�veis, o GNV — que � usado legalmente nos ve�culos — gera uma economia por quil�metro rodado de 51% em rela��o � gasolina e de 56% em rela��o ao etanol. J� no GLP — de uso clandestino —, a economia � de apenas 4,4% em rela��o � gasolina e 13,5% na compara��o com o etanol.
Ou seja: nem de longe a economia chega nos 30% ou 50% prometidos pelo vendedor de kits do Mercado Livre.


Como a economia por quil�metro rodado � menor, o tempo de retorno do investimento na convers�o tamb�m � pior para o GLP, em rela��o ao GNV, estima Gallo Garcia.
Considerando o desconto dado por muitos Estados no IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Ve�culos Automotores) e a economia por quil�metro rodado, um ve�culo convertido da gasolina para o GNV recupera o investimento de cerca de R$ 5 mil na convers�o em pouco mais de 12 meses, se rodar 1.000 km por m�s.
J� para o GLP, considerando um kit de convers�o de R$ 1 mil, levaria 38 meses para o investimento se pagar, rodando 1.000 km por m�s.
"Isso confirma que a economia propalada n�o � verdadeira. Al�m de todo risco", conclui o professor.
GLP Vs. GNV
Por ser uma pr�tica ilegal, n�o h� dados de quantos ve�culos rodam a GLP atualmente no pa�s.
J� os ve�culos a GNV s�o hoje 2 milh�es, segundo a Abeg�s (Associa��o Brasileira das Empresas Distribuidoras de G�s Canalizado), menos de 5% da frota de cerca de 46,2 milh�es de autom�veis em circula��o no Brasil, pela estimativa do Sindipe�as (Sindicato Nacional da Ind�stria de Componentes para Ve�culos Automotores).
Gustavo Galiazzi, gerente t�cnico da Abeg�s, explica que o GLP (g�s de botij�o) � uma mistura de dois gases, propano e butano, a propor��o de mais ou menos 50/50. Ele � obtido atrav�s do refino do petr�leo.
O GNV (g�s natural veicular), por sua vez, � composto em quase 90% de metano e � extra�do diretamente de reservat�rios no subsolo.
Do ponto de vista f�sico, o GLP tem mais mol�culas de carbono e o g�s natural, menos. Na pr�tica, isso significa que o GLP pode ser pressurizado no botij�o e ele vira l�quido. J� o g�s natural s� tem uma mol�cula de carbono. Como ele � muito leve, n�o pode ser facilmente liquefeito, por isso � sempre comercializado encanado.
"Como o GNV � mais leve do que o ar, em caso de vazamento, ele se dissipa com facilidade. J� o GLP � mais pesado do que o ar, ent�o quando vaza, ele fica no fundo da mala do carro", diz Galiazzi, lembrando ainda que a temperatura de autoigni��o do GNV � bastante superior � do GLP, o que tamb�m torna o g�s natural mais seguro do que o de botij�o para uso automotivo.

Sergio Bandeira de Mello, presidente do Sindig�s (Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de G�s Liquefeito de Petr�leo), concorda que a convers�o clandestina � perigosa, mas afirma que o uso legalizado e com as devidas certifica��es do GLP automotivo � seguro, como atesta o crescimento desse mercado na Europa.
"O maior desenvolvimento de utiliza��o de GLP no mundo � o que se chama de Autogas, que � o GLP automotivo", argumenta Mello. "Tecnicamente, em termos de seguran�a, o GLP � um combust�vel espetacular para motores."
Segundo dados da Acea (sigla em ingl�s para a Associa��o Europeia de Fabricantes de Autom�veis), o registro de novos ve�culos movidos a GLP cresceu 134% na Uni�o Europeia no segundo trimestre de 2021, em rela��o a igual per�odo do ano passado, para 59,4 mil unidades. J� o registro de novos ve�culos a GNV cresceu 42% no per�odo, para 13,5 mil.
Ambos os mercados, no entanto, s�o bastante pequenos se comparados, por exemplo, ao de ve�culos el�tricos, que somou mais de 400 mil novas unidades na Europa no per�odo.
Projeto de lei na C�mara
Um projeto de lei na C�mara tenta tirar o uso do GLP em motores do �mbito da gambiarra para a legalidade.
O deputado federal Fel�cio Later�a, ex-delegado de pol�cia e atualmente no PSL-RJ, diz que a ideia veio de um amigo seu, tamb�m policial.
"A motiva��o foi minha experi�ncia policial. N�o raro, n�s vemos certas situa��es que s�o criminalizadas para se resolver um problema que n�o � criminal", diz Later�a.
"Um colega policial civil me apresentou esse problema e eu falei: � agora. Porque, por uma quest�o de pol�tica econ�mica, vedaram o uso do g�s para caldeiras e motores, o que � uma situa��o completamente esdr�xula e an�mala", avalia.
Em sua justificativa para o projeto, o deputado argumenta que a lei que define o uso do GLP em motores como crime contra a ordem econ�mica "foi elaborada [em] um contexto que reclamava medidas de conten��o do consumo de derivados do petr�leo".
"Passados quase 30 anos, o cen�rio atual contraria o cen�rio econ�mico daquela �poca, registrando aumento substancial da produ��o interna de petr�leo e consider�vel independ�ncia do GLP importado", escreve o ex-delegado.
Questionado se n�o h� um equ�voco na argumento, posto que o Brasil ainda importa entre 27% e 30% do GLP que consome, Later�a diz que a produ��o de g�s no pa�s est� crescendo e que eventualmente chegaremos � autonomia.
No entanto, o que tem crescido no Brasil � a produ��o de g�s natural (GNV), enquanto a produ��o de GLP � limitada pela capacidade nacional de refino de petr�leo — mesmo motivo pelo qual o pa�s ainda importa outros combust�veis, apesar de ser autossuficiente em �leo cru.
O Sindig�s apoia o projeto de lei, mas lembra que, mesmo que ele seja aprovado, o uso do GLP em ve�culos ainda seria proibido, devido �s normativas do Contran e da ANP.
"Se algu�m est� comprando kit para adapta��o para GLP, significa que ele � competitivo. N�o seria a hora de ser permitido que o GLP seja usado para qualquer fim e o consumidor fa�a — com normas — a escolha pelo combust�vel que ele queira?", questiona Mello.
A Abeg�s, por sua vez, � contr�ria � mudan�a, segundo Galiazzi. "Esse projeto n�o faz sentido. Para liberar para ve�culos, vamos ter que aumentar as importa��es — s�o divisas que vamos ter que alocar para fora do pa�s. Quem vai acabar pagando a conta s�o as fam�lias de baixa renda."
J� assistiu aos nossos novos v�deos no YouTube ? Inscreva-se no nosso canal!