
No Brasil dos anos 1980 e in�cio da d�cada de 1990, era comum fazer compra de mercado para o m�s todo logo que se recebia o sal�rio, pois se sabia que o montante recebido iria perdendo valor dia ap�s dia, corro�do pela infla��o.
Embora a infla��o esteja de volta por aqui, com pre�os subindo nas g�ndolas semana ap�s semana, a situa��o ainda n�o se compara �quela vivida na Argentina, onde a infla��o acumulada em 12 meses chegou a 52,1%, segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estat�stica e Censos (Indec).
Tirando a hiperinfla��o da Venezuela — estimada em 2.700% ao ano em 2021 pelo Fundo Monet�rio Internacional (FMI) —, a infla��o da Argentina � de longe a mais alta da regi�o.
A terceira maior economia da Am�rica Latina tem uma infla��o que � quase cinco vezes a da maior economia regional, a do Brasil (10,7%), e mais de oito vezes a da segunda maior, a do M�xico (6,2%), de acordo com os indicadores oficiais para outubro.
Ter custos que aumentam 1% a cada semana, em m�dia, pulveriza a renda dos argentinos e � um dos principais motivos da disparada da pobreza, que hoje atinge entre 42% e 50% da popula��o, segundo n�meros oficiais.
Viver com infla��o alta n�o � novidade para os argentinos. Embora uma infla��o mensal pr�xima a 4% seja enorme, o pa�s teve aumentos de pre�os muito mais vertiginosos nos �ltimos 50 anos.
O pior momento foi a hiperinfla��o de 1989, quando os pre�os subiram mais de 3.000%, levando � queda do governo de Ra�l Alfons�n, que havia assumido ap�s o retorno da democracia e da ado��o do peso, moeda usada at� hoje.
A t�tulo de compara��o, naquele ano, a infla��o brasileira subiu 1.973% e chegaria a 2.477% em seu pior momento, em 1993 — ano que antecedeu o Plano Real, que finalmente daria fim � hiperinfla��o por aqui.
Na d�cada de 1990, a chamada "conversibilidade" — que atrelou o peso argentino ao d�lar — fez com que a infla��o desaparecesse.
Mas isso acabou catastroficamente com o corralito (que em espanhol significa cercadinho) em dezembro de 2001, que determinou o congelamento dos dep�sitos banc�rios e limites semanais para retiradas, o que acabou gerando violentos protestos e a ren�ncia do presidente Fernando De la R�a.
A crise econ�mica e pol�tica do in�cio deste s�culo reabriu o ciclo inflacion�rio, que voltou a se acelerar durante o segundo governo de Cristina Fern�ndez de Kirchner (2011-2015), e superou a barreira dos 50% ao final do mandato de Mauricio Macri (2015-2019).

Embora a desacelera��o da economia em 2020, devido � pandemia do coronav�rus, tenha reduzido a infla��o argentina a 36%, neste ano ela voltou a uma taxa acumulada em 12 meses de 52%.
E muitos economistas preveem que, em 2022, a infla��o no pa�s ser� ainda maior.
Por que t�o alta
Mas por que a Argentina tem esse problema h� tanto tempo e de forma t�o mais grave do que os demais pa�ses da regi�o?
Os economistas ortodoxos garantem que a raz�o subjacente � simples: o pa�s sistematicamente gasta mais do que deveria.
As estat�sticas mostram isso com clareza: nos �ltimos 60 anos, foram apenas seis anos sem d�ficit fiscal (entre 2003 e 2008, quando os pre�os internacionais das mat�rias-primas foram recordes, gerando um grande aumento na arrecada��o).
E n�o � que a Argentina tenha poucos impostos, muito pelo contr�rio: segundo o Banco Mundial, � um dos pa�ses com maior carga tribut�ria sobre a economia formal do mundo.
Mas como, mesmo assim, a arrecada��o n�o � suficiente para manter os gastos p�blicos, sucessivos governos t�m recorrido a duas ferramentas para se financiarem: o endividamento e a emiss�o monet�ria.
O primeiro levou a Argentina ao calote — ou ao default de sua d�vida — nove vezes, o que prejudicou sua capacidade de obter empr�stimos a taxas semelhantes �s pagas por seus vizinhos.
Essa limita��o tornou o pa�s cada vez mais dependente da segunda op��o para manter a carteira volumosa do Estado: a impress�o de c�dulas (ou o que os economistas chamam de "pol�tica monet�ria expansionista").
� essa emiss�o que, segundo a vis�o ortodoxa, gera infla��o.

O atual ciclo inflacion�rio
Marina Dal Poggetto, diretora executiva da consultoria econ�mica EcoGo, explica por que hoje a Argentina � o �nico pa�s da regi�o — exceto a Venezuela — que tem um problema de infla��o t�o alta.
"Na d�cada de 1980, v�rios pa�ses latino-americanos sofreram crises inflacion�rias, e, na d�cada de 1990, todos entraram em processos de desinfla��o, incluindo a Argentina", diz.
Mas, no in�cio deste s�culo, "ao contr�rio do resto, a Argentina perdeu uma oportunidade sem precedentes de construir uma moeda e manter as taxas de infla��o baixas".
"Todo o resto da regi�o aproveitou o cen�rio global de desvaloriza��o do d�lar e os altos pre�os das commodities que a economia latino-americana experimentou nos anos 2000 para atar suas moedas a taxas de juros positivas. Foi assim que valorizaram e constru�ram suas moedas", afirma.
"Mas a Argentina, que vinha da crise de 2001, tinha sistematicamente uma taxa de juros que era a metade da taxa de infla��o."
O governo de N�stor Kirchner (2003-2007) "priorizou o curto prazo" e manteve o peso barato para torn�-lo mais competitivo, o que permitiu ao pa�s crescer "a taxas chinesas" (muito altas) por alguns anos.
Com esse super�vit fiscal sem precedentes, diz Dal Poggetto, "o governo Kirchner entrou em um cen�rio de pol�ticas muito expansionistas, com uma pol�tica agressiva de distribui��o de renda".
Apesar de a alta de pre�os da soja ter desacelerado quando sua esposa e sucessora, a atual vice-presidente Cristina Kirchner (2007-2015), tomou posse e "os d�lares acabaram", o governo continuou a expandir seus gastos, e, em 2009, a Argentina mais uma vez voltou a ter suas contas no vermelho.
Durante o kirchnerismo, o sal�rio real subiu 50%, e incorporaram-se 3 milh�es de aposentados (dobrando o n�mero total) que n�o haviam feito as contribui��es correspondentes, algo "insustent�vel", segundo a economista.
"Embora a arrecada��o tenha crescido de 19% para 34% do Produto Interno Bruto (PIB), com as pol�ticas fiscais expansionistas do kirchnerismo, o gasto p�blico passou de 25% para 41% do PIB", afirma.
Isso gerou "uma deteriora��o muito grande da macroeconomia", com uma taxa de c�mbio defasada e uma infla��o que atingiu dois d�gitos em 2006, desencadeando o processo inflacion�rio que continua at� hoje.

O �nico governo n�o kirchnerista que a Argentina teve durante este s�culo — o de Mauricio Macri (2015-2019), que chegou ao poder em grande parte devido ao descontentamento popular com o aumento da infla��o — manteve altos gastos do Estado durante os primeiros dois anos, mas em vez de imprimir dinheiro, foi financiado pela emiss�o de d�vida.
Isso conseguiu desacelerar brevemente a infla��o em 2017. Mas os fundos de investimento estrangeiros que compraram grande parte dos pap�is emitidos pela Macri, atra�dos pelos juros alt�ssimos, acabariam gerando uma grave crise econ�mica.
Uma corrida cambial em 2018 levou a uma "megavaloriza��o" do peso, que foi automaticamente repassada aos pre�os. A infla��o duplicou em um �nico ano, chegando a quase 48%.
Macri perdeu as elei��es de 2019 e terminou o mandato com a maior infla��o das �ltimas duas d�cadas: 53,83%.
Al�m disso, deixou a Argentina em uma nova crise de d�vida, ap�s ter negociado com o FMI o maior empr�stimo de sua hist�ria — que n�o chegou em sua totalidade, mas que voltou a deixar o pa�s com um pesado fardo, e que, se n�o for negociada com sucesso, pode resultar em um novo calote.
Como se tudo isso n�o bastasse, em mar�o de 2020, chegou a pandemia.
Sem acesso a cr�dito, o novo governo de Alberto Fern�ndez teve que apelar para mais emiss�o de moeda para aliviar a crise sanit�ria e econ�mica.
Mas sua decis�o de impor uma das quarentenas mais longas do mundo obrigou o Banco Central a imprimir um n�mero recorde de notas, o que representa press�o inflacion�ria extra.
O problema do d�lar
Al�m de uma emiss�o monet�ria elevada, a Argentina tem outra peculiaridade que influencia a alta dos pre�os.
O fato de ter uma moeda em constante desvaloriza��o e taxas de juros em pesos historicamente abaixo da infla��o fez com que os argentinos economizassem e pensassem em d�lares.

Mas, como a Argentina n�o gera verdinhas suficientes para atender � demanda, os governos aplicam controles de capital, conhecidos localmente como "armadilhas cambiais".
Isso gera outro fen�meno que pressiona a infla��o: a chamada "brecha" cambial.
Por n�o conseguirem comprar d�lares no mercado oficial — que al�m de ser restrito a US$ 200 (R$ 1.086) por pessoa ao m�s, t�m taxas que hoje chegam a 65% — empresas e poupadores recorrem aos mercados paralelos, o mais famoso deles � o informal, chamado localmente de "d�lar azul".
Diante da desconfian�a gerada pelo peso, o pre�o do "d�lar azul" � considerado por muitos argentinos como refer�ncia na hora de realizar transa��es, como aluguel ou compra de suprimentos para constru��o, produtos eletr�nicos ou autom�veis.
Por isso, quando o pre�o desse d�lar de mercado est� bem acima do d�lar oficial — como agora, quando a diferen�a entre um e outro chega a 100% — isso leva a um aumento de alguns pre�os em pesos, e gera uma sensa��o de que a moeda local est� desvalorizada.
Isso, apesar de que, como afirma Dal Poggetto, "h� muitos pre�os na economia que est�o a um d�lar mais parecido com o oficial do que com o azul".
"Se desvalorizassem o d�lar oficial, a infla��o ficaria muito maior", alerta.
Monop�lios
Mas o governo e os economistas heterodoxos est�o convencidos de que n�o � nem a quest�o monet�ria nem o hiato da taxa de c�mbio que levam � alta dos pre�os, mas sim os "grupos concentrados de poder".
"A infla��o � multicausal, mas um dos principais fatores � que voc� concentrou setores da economia, principalmente na produ��o e distribui��o de alimentos, que t�m capacidade de fixar pre�os", diz Alan Cibils, pesquisador e professor da �rea de Economia Pol�tica da Universidade Nacional General Sarmiento (UNGS).
"Esses setores d�o retorno em d�lares, porque a maioria � estrangeira. Ent�o, eles querem poder remeter d�lares independente do tipo de c�mbio", afirma.
"Eles fixam os pre�os em pesos, porque podem, e isso contribui fortemente para a infla��o."

Seguindo a mesma linha de pensamento, o governo de Alberto Fern�ndez restringiu as exporta��es de carnes para que o pre�o local ca�sse, medida que o kichnerismo j� havia adotado no passado e que levou � redu��o da produ��o pecu�ria.
Poucos dias antes das elei��es legislativas de 14 de novembro, o governo tamb�m recorreu a outra ferramenta utilizada durante o governo de Cristina Kirchner: o congelamento de pre�os.
O Minist�rio do Com�rcio Interno emitiu uma resolu��o ao final de outubro que estabelece a "fixa��o de pre�os m�ximos" para mais de 1,4 mil produtos de consumo de massa at� janeiro de 2022.
Embora ambas as medidas tenham sido duramente criticadas pela oposi��o, o chefe do governo da cidade de Buenos Aires, Horacio Rodr�guez Larreta, considerado o sucessor pol�tico de Macri, concordou que os setores concentrados da economia s�o parte do problema inflacion�rio.
"Temos que ir pra cima dos monop�lios para que haja competi��o real, os monop�lios n�o ajudam a baixar a infla��o", disse ele em declara��es � r�dio Urbana Play.
Uma roda que n�o para
Mas, para al�m das discuss�es sobre o que causa a infla��o na Argentina, h� algo em que todos parecem concordar: � um processo muito dif�cil de frear.
O grande problema, eles apontam, � a in�rcia inflacion�ria, que faz com que todos estabele�am pre�os com base na infla��o passada.
De acordo com relat�rio da consultoria EconViews, "pelo menos 40% do n�cleo da infla��o de um m�s � explicado pela infla��o do m�s anterior".
"Eles tendem a indexar contratos, alugu�is. Os sindicatos negociam reajustes anuais de sal�rios", exemplifica Cibils.
"Tem gente que aumenta os pre�os todo m�s em 'xis' por cento por precau��o. Como voc� n�o sabe o que vai acontecer, voc� se protege na medida do poss�vel", explica.

S�o esses comportamentos "inerciais" que fazem com que a infla��o "se auto propague", diz ele.
Como interromper esse ciclo vicioso?
Para o governo e para quem tem uma vis�o heterodoxa: com mais interven��o do Estado.
J� organiza��es como o FMI e muitos economistas, como Dal Poggetto, acreditam que a solu��o � corrigir o problema subjacente. Ou seja, reduzir os gastos.
A quest�o � como fazer isso sem prejudicar ainda mais uma popula��o j� abatida e sem gerar as crises de governabilidade vividas em outros pa�ses que tentaram ajustar gastos, como Col�mbia e Equador, afirma.
"Sempre digo que o problema � que todos concordamos que o gasto deve ser reduzido, mas todos concordamos que o outro deve fazer o ajuste."
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