
Um dos idealizadores do programa Bolsa Fam�lia durante o primeiro governo Lula, mas tamb�m atuante nas gest�es Michel Temer e Jair Bolsonaro, o economista Ricardo Paes de Barros se diz pronto para colaborar com as pol�ticas de combate � pobreza e � desigualdade de qualquer que seja o pr�ximo governo.
"Isso n�o quer dizer que eu n�o tenha minhas prefer�ncias de qual seja o pr�ximo governo", diz Paes de Barros, entre risos.
Nesta quinta-feira (18/8), ele apresenta em um semin�rio no Insper, em S�o Paulo, o artigo in�dito Diretrizes para o desenho de uma pol�tica para a supera��o da pobreza, ao qual a BBC News Brasil teve acesso em primeira m�o.
No documento, escrito em parceria com Laura Muller Machado, secret�ria de Desenvolvimento Social do Estado de S�o Paulo e tamb�m professora do Insper, os dois economistas apresentam sugest�es a partir de um pressuposto simples."Uma efetiva e duradoura supera��o da pobreza s� ocorre quando h� gera��o de renda pelo trabalho de forma aut�noma. Portanto, a supera��o da pobreza requer um processo de inclus�o produtiva bem-sucedido", diz logo de in�cio o estudo.
Machado e Paes de Barros prop�em um modelo de assist�ncia social que combina transfer�ncia de renda focalizada (isto �, com foco em quem mais precisa), a exemplo do Bolsa Fam�lia e do Aux�lio Brasil, com um acompanhamento individualizado das fam�lias vulner�veis por agentes p�blicos.
Nesse acompanhamento, agente social e fam�lia construiriam em conjunto um "plano personalizado de desenvolvimento familiar", para coordenar os esfor�os dos membros da fam�lia e a oferta local de servi�os e oportunidades, com objetivo de superar a pobreza, tendo como pilar central a gera��o de renda aut�noma pelas pessoas atrav�s do trabalho.
Questionado se a proposta n�o pode ser entendida como uma responsabiliza��o individual da fam�lia por uma pobreza que adv�m de quest�es sociais e estruturais, Paes de Barros admite que o projeto cont�m "um componente ideol�gico forte" — ele � um economista de vi�s liberal, com doutorado pela Universidade de Chicago, nos Estados Unidos.
"Sim, esse plano responsabiliza a fam�lia. Ele est� dizendo: 'voc�, com os talentos que voc� tem, consegue sair da pobreza, mesmo vivendo num pa�s desigual'", diz Paes de Barros.
"Essas fam�lias s�o pobres n�o por falta de talento, mas por falta de oportunidades. O que esse programa vai fazer � 'dar um bal�o' no capitalismo selvagem, levando essas fam�lias �quelas oportunidades que n�o chegaram nelas", acrescenta o economista.
"A ideia desse programa � as pessoas voltarem a ter um projeto de vida, voltarem a sonhar com uma vida melhor e mostrar que, com o devido apoio da sociedade, esse sonho pode ser concretizado, n�o precisa de uma revolu��o para garantir a supera��o da pobreza."
O Bolsa Fam�lia, mais bem sucedido programa social do pa�s, foi concebido durante o primeiro governo Lula por um grupo de economistas liberais, como Marcos Lisboa, Ricardo Henriques, Jos� M�rcio Camargo e o pr�prio Paes de Barros.
O projeto enfrentou resist�ncias dentro do governo e tamb�m em setores do PT, mas foi encampado pelo ent�o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e pelo presidente Luiz In�cio Lula da Silva.
'A cara da pobreza mudou'
Pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econ�mica e Aplicada) por mais de 30 anos e subsecret�rio de A��es Estrat�gicas durante o governo de Dilma Rousseff (PT), entre 2011 e 2015, Paes de Barros explica que as diretrizes desenhadas por ele e Laura Machado — secret�ria no governo do tucano Rodrigo Garcia — partem de uma percep��o de que houve uma mudan�a no car�ter da pobreza no Brasil.
Ele observa que a pobreza diminuiu no pa�s entre o in�cio dos anos 2000 e 2014, voltando a subir desde ent�o, numa tend�ncia que se manteve mesmo com a retomada do crescimento da economia e da gera��o de emprego.

"A cara da nossa pobreza mudou. Antigamente, o pobre era o cara que o av�, o pai e ele trabalharam a vida toda, 10 horas por dia, e eram pobres. Agora, temos uma pobreza diferente, porque a taxa de ocupa��o dos pobres caiu dramaticamente, embora a vontade deles de trabalhar continue l� em cima", diz o economista.
Ele observa que isso se reflete na taxa de desemprego, de pessoas trabalhando menos horas do que gostariam e de pessoas que desistiram de procurar trabalho entre os mais pobres.
Exemplo disso � que 81% dos 3,7 milh�es de brasileiros sem emprego h� mais de dois anos pertencem �s classes D e E. Entre 2015 e 2021, o n�mero de pessoas sem emprego h� mais de 48 meses nessas classes sociais avan�ou 173%, segundo levantamento da Tend�ncias Consultoria noticiado pelo jornal O Estado de S. Paulo.
"Tem uma clara evid�ncia de que a nossa pobreza migrou de ser de insufici�ncia de sal�rio, para ser de falta de trabalho. N�o � que a economia n�o tenha trabalho, mas as pessoas mais pobres t�m muita dificuldade de se reconectar ao mundo do trabalho", avalia.
"Temos ent�o que reconstruir essa conectividade dos mais pobres com a economia brasileira, num esfor�o coletivo e em novas bases. Vamos ter que levar muito a s�rio o talento dessas pessoas, promovendo uma inser��o mais moderna, produtiva, sustent�vel e permanente."
Voltar ao Brasil sem Mis�ria
Segundo Paes de Barros, o modelo que est� sendo proposto � muito similar ao do plano Brasil sem Mis�ria, lan�ado em 2011 pelo governo de Dilma Rousseff.
Esse plano, diz ele, era baseado em tr�s pilares: direito ao trabalho, transfer�ncia de renda e garantia de outros direitos sociais, como acesso � �gua, luz e habita��o.

"O desenho do Brasil sem Mis�ria � o que tem de mais moderno em n�vel mundial. Tinha muita coisa a melhorar no programa, mas ele estava absolutamente na dire��o certa. O que o Brasil tem que fazer � voltar ao Brasil sem Mis�ria", defende Paes de Barros.
Questionado sobre o que deu errado com o programa e por que ele n�o foi bem-sucedido em seu intuito de acabar com a mis�ria no pa�s, Paes de Barros avalia que o plano perdeu prioridade no governo Dilma, j� antes do impeachment sofrido pela ex-presidente.
"Teve uma descontinuidade do Brasil sem Mis�ria antes da transi��o [entre governos]. Por raz�es que eu n�o sei por qu�. Mas precisamos de um 'Brasil sem Mis�ria 2', cujo pilar central seja a inclus�o produtiva. O pilar da transfer�ncia de renda deve ser complementar, mas n�o � ele que vai superar a pobreza", afirma.
"O erro do Brasil p�s-Tereza Campello [titular do Minist�rio do Desenvolvimento Social e Combate � Fome entre 2011 e 2016] foi o foco exclusivo em transfer�ncia de renda."
Diretrizes para superar a pobreza
O programa idealizado por Paes de Barros e Laura Machado � baseado em cinco eixos:
- foco em quem mais precisa (focaliza��o);
- atendimento personalizado e integrado;
- acesso priorit�rio dos que mais precisam a servi�os e oportunidades;
- confian�a das fam�lias e dos agentes p�blicos de que superar a pobreza pela inclus�o produtiva � poss�vel;
- e cont�nuo monitoramento, avalia��o e corre��o de rotas.
Os economistas observam que a focaliza��o tem uma vantagem or�ament�ria.
Por exemplo, garantir uma renda m�nima de R$ 210 (atual linha de pobreza do Programa Aux�lio Brasil) para todos os 213 milh�es de brasileiros custaria R$ 536 bilh�es por ano, ou 6,2% do PIB (Produto Interno Bruto, soma dos bens e servi�os produzidos pelo pa�s).
J� com transfer�ncias focadas nos 14% da popula��o com renda inferior a R$ 210 por pessoa, e considerando que parte dessas fam�lias t�m alguma renda, � poss�vel atingir o mesmo objetivo de que todos os brasileiros tenham uma renda m�nima de R$ 210 com um gasto de R$ 51,3 bilh�es por ano, ou 0,6% do PIB.

No entanto, a focaliza��o tem uma desvantagem: como ganha mais quem tem renda menor, as pessoas t�m um desincentivo para aumentar sua renda atrav�s do trabalho, pois isso resulta numa redu��o das transfer�ncias recebidas pelo governo.
Assim, os economistas sugerem dois caminhos para contornar esse problema: o primeiro � que a redu��o do benef�cio tem que ser menor do que o ganho de renda obtido pela pessoa atrav�s do trabalho. O segundo, � que a diminui��o da transfer�ncia deve acontecer com uma dist�ncia no tempo.
Um exemplo, dizem eles, � o dispositivo de emancipa��o do Aux�lio Brasil (que tamb�m estava presente no Bolsa Fam�lia). Com esse dispositivo, uma fam�lia que superar a pobreza atrav�s de um aumento na sua renda do trabalho continua a receber as transfer�ncias por mais dois anos.
Planos familiares personalizados
O segundo eixo proposto pelos dois especialistas em pol�ticas p�blicas � o atendimento personalizado �s fam�lias.
Eles avaliam que isso � plenamente poss�vel, gra�as � rede de quase 9 mil Centros de Refer�ncia da Assist�ncia Social (Cras), localizados em cerca de 5.500 (99%) dos 5.570 munic�pios brasileiros.
Somente os Cras contam com 111 mil agentes e o pa�s tem ainda aproximadamente 300 mil agentes comunit�rios de sa�de, com profundo conhecimento das comunidades onde atuam, destacam Paes de Barros e Machado.

"A consequ�ncia da pobreza � a mesma: s�o direitos sociais violados — falta de trabalho, inseguran�a nutricional, problemas de habita��o e saneamento, etc. Mas a causa da pobreza � diferente para cada fam�lia", defende Paes de Barros.
"Um erro grosseiro da pol�tica atual � achar que vai resolver o problema da pobreza no anonimato. Ou seja, eu n�o sei quem � o pobre, mas vou fazer uma pol�tica para tirar ele da pobreza. � o mesmo que querer resolver o problema da sa�de sem o doente ficar frente a frente com o m�dico. N�o tem como", afirma.
Assim, o economista defende que cada fam�lia trabalhe com um agente p�blico, primeiro identificando os fatores determinantes de sua pobreza e ent�o mapeando as oportunidades e assist�ncias necess�rias para super�-la.
Esse trabalho seria acompanhado pelo agente ao longo do tempo, com monitoramento, avalia��o e corre��o de rotas constantes — o que, na vis�o dos autores, tamb�m � uma forma de manter a fam�lia engajada, j� que o sucesso do plano depende de a fam�lia acreditar nele.
E para que o plano possa ser executado, a fam�lia deve ter acesso ao servi�os necess�rios — como creches, educa��o integral e centros-dia para idosos, para permitir que os adultos da fam�lia possam trabalhar; servi�os de sa�de, para garantir bem estar nutricional, f�sico e mental a esses trabalhadores; e de transporte, para assegurar a ida e volta ao trabalho com menor tempo e gasto de recursos.
Os pesquisadores tamb�m sugerem uma gama de servi�os para quem busca ou j� tem um emprego, e para quem quer trabalhar por conta pr�pria ou ter um pequeno neg�cio.
Esses servi�os v�o desde a intermedia��o de m�o de obra e forma��o profissional, at� o subs�dio para aquisi��o de insumos, disponibilidade de cr�dito a juros baixos e assist�ncia t�cnica aos pequenos empres�rios.
Como garantir trabalho nos pequenos munic�pios
A BBC News Brasil perguntou a Paes de Barros como levar esse plano a cabo, diante da realidade dos pequenos munic�pios brasileiros, onde n�o h� oferta de empregos.
Um levantamento realizado pela Folha de S. Paulo, com dados do Minist�rio da Cidadania e da Secretaria Especial do Trabalho, mostrou, por exemplo, que em metade (50,3%) dos munic�pios do pa�s o n�mero de fam�lias benefici�rias do Aux�lio Brasil supera o de empregados com carteira assinada.
No Nordeste, benefici�rios superam empregados em 94% dos munic�pios e, no Norte, em 82%.
Isso acontece devido ao baixo dinamismo da economia dos pequenos munic�pios, altamente dependentes do setor p�blico, tanto para a gera��o de postos de trabalho, quanto para transfer�ncia de recursos, segundo especialistas ouvidos pelo jornal.
Para Paes de Barros, a solu��o est� em arranjos produtivos locais.
"A maior parte do Brasil, e as partes mais pobres do Brasil, tem recursos naturais, potencialidades e vantagens comparativas. Basta usar isso bem", afirma, citando como exemplos o arranjo produtivo do mel no Piau� e o da pesca no norte do Maranh�o.

"O emprego que temos que ter n�o � emprego p�blico e n�o � necessariamente emprego formal. O que queremos � trabalho de alta qualidade, isso pode ser via cooperativa de produtores e de v�rias outras maneiras. Ningu�m precisa ser empregado de uma grande empresa, mas � preciso descobrir qual � o talento de cada local e desenvolver esse talento."
Segundo ele, isso poder� ser feito com a ajuda do Sebrae (Servi�o Brasileiro de Apoio �s Micro e Pequenas Empresas). "O Sebrae tem que entrar em campo e baixar a bola para cuidar do realmente pobre, porque ele ainda tem um ponto de corte muito alto", opina.
Como ser� o Brasil de 2023, ap�s o aux�lio de R$ 600
E como fazer a transi��o do Aux�lio Brasil elevado a R$ 600 pelo governo Jair Bolsonaro �s v�speras da elei��o, para esse programa complexo, onde a supera��o da pobreza pode levar anos at� que as fam�lias consigam sua autonomia atrav�s do trabalho?
"O Aux�lio Brasil � pessimamente focalizado e o Cadastro �nico est� ridiculamente desatualizado", avalia Paes de Barros.
"Temos que melhorar dramaticamente a focaliza��o. Ent�o tem gente que vai perder? Tem. Gente que n�o precisa, ou que precisa muito menos. Vamos focalizar e redesenhar, porque dar R$ 600 para uma fam�lia de uma pessoa e R$ 600 para uma fam�lia de sete pessoas n�o faz nenhum sentido", sentencia.
Segundo ele, o resultado desse redesenho deve ser ter menos benefici�rios, recebendo mais — em agosto desse ano, o Aux�lio Brasil chegou a 20,2 milh�es de fam�lias, segundo o Minist�rio da Cidadania.
"O objetivo � reduzir dramaticamente a dist�ncia entre quem est� passando fome e quem � classe m�dia baixa, concentrando os benef�cios nos mais pobres. � preciso dar a garantia de uma renda a essas pessoas e a implementa��o do projeto de vida � o segundo pilar", afirma.
Para Paes de Barros, destinar mais recursos ao Aux�lio Brasil foi uma boa ideia, mas isso foi feito pelo atual governo de maneira tecnicamente tosca e pouco eficaz.
Quanto ao empr�stimo consignado do Aux�lio Brasil, tamb�m parte do pacote eleitoral de Bolsonaro, o economista avalia que a possibilidade de tomar dinheiro emprestado � algo positivo, mas isso deveria vir junto com educa��o financeira e uma legisla��o impedindo a cobran�a de juros abusivos.
"A ideia de dar mais uma op��o para o cara do que ele pode fazer com o dinheiro dele � boa, mas isso teria que vir junto com uma s�rie de medidas para que ningu�m possa abusar desse dispositivo para se apropriar da renda dessas pessoas de uma maneira indevida. A ideia em si � boa, mas como est� sendo feito � p�ssimo", conclui.
- Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62526942
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