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Estado de Minas POBRES NA BERLINDA

'Ela morreu ap�s 10h na fila por benef�cio': assist�ncia social tem menor or�amento em uma d�cada

Or�amento federal para manuten��o de servi�os como Cras, Creas e abrigos para crian�as e mulheres diminuiu de cerca de R$ 3 bilh�es em 2014, para R$ 1 bi nos �ltimos dois anos. Em 2023, valor poder� ser de apenas R$ 48 milh�es, o menor em mais de uma d�cada.


16/09/2022 17:03 - atualizado 17/09/2022 09:23


Janaína Araújo e Iomar Fernandes Torres
Jana�na Ara�jo (� esquerda) com a companheira Iomar Fernandes Torres. Jana�na morreu ap�s dez horas na fila de espera de um Centro de Refer�ncia de Assist�ncia Social (Cras) em Bras�lia (foto: Arquivo pessoal)

Lutando h� quatro anos contra uma depress�o que a impedia de trabalhar, e sofrendo ainda de hipertens�o, obesidade, s�ndrome do p�nico e ansiedade, Jana�na Ara�jo, de 44 anos, tentou por oito dias ser atendida no Cras (Centro de Refer�ncia de Assist�ncia Social) para ter acesso ao BPC (Benef�cio de Presta��o Continuada).

Sem conseguir agendar um atendimento por telefone, juntou-se a dezenas de pessoas na fila do Cras Parano�, em Bras�lia, por volta das 17h30 de uma ter�a-feira (16/8).

Mas ela nunca chegaria a cruzar os port�es do centro de assist�ncia social que se abrem �s 8h da manh�.

Por volta das 4h da madrugada de quarta-feira, Jana�na come�ou a passar mal, com sinais de infarto. Ela chegou a ser levada ao hospital, mas n�o resistiu.

"Ainda estou com aquela sensa��o de que isso tudo � um pesadelo, que amanh� vou acordar e ela vai estar aqui dormindo e vamos tomar caf�. Ainda n�o consegui assimilar tudo e saber que ela n�o est� mais aqui comigo. � um vazio", diz Iomar Fernandes Torres, de 61 anos e companheira de Jana�na por dez anos.

"Ela era uma parceira de vida, era eu para ela e ela para mim e tudo n�s faz�amos juntas. �ramos companheiras, c�mplices, confidentes, amigas", afirma a trabalhadora aut�noma.

"Meu grito n�o � de cunho pol�tico porque, para mim, entra um e sai outro, e continua tudo do mesmo jeito. Mas eu espero, do fundo do meu cora��o, que n�o precisem mais outras Jana�nas morrerem para se mudar o sistema de assist�ncia social. Para acordarem e verem que aquilo ali � desumano, � humilhante", completa Iomar.

Assist�ncia social perde espa�o no Or�amento federal

A morte tr�gica de Jana�na Ara�jo � um exemplo de como a fragilidade dos servi�os de assist�ncia social brasileiros tem afetado a vida de pessoas em situa��o de vulnerabilidade.

Para especialistas e gestores municipais ouvidos pela BBC News Brasil, as filas nas portas dos Cras em todo o pa�s s�o um resultado direto da perda de espa�o dos servi�os de assist�ncia social no Or�amento federal, al�m de mudan�as na forma de gest�o dos programas sociais feitas de forma unilateral pelo governo. Segundo eles, a queda nos recursos revela a falta de prioridade da assist�ncia social.

Procurado para comentar a redu��o do Or�amento para a assist�ncia social, o Minist�rio da Cidadania n�o respondeu aos questionamentos da BBC News Brasil.


Mutirão de atendimentos para atualização do Cadastro Único em Manaus, janeiro de 2022
Os servi�os de assist�ncia social possibilitam o acesso a benef�cios como o Aux�lio Brasil, BPC e encaminhamento a abrigos (foto: Divulga��o/Prefeitura de Manaus)

Os servi�os de assist�ncia social s�o a rede de equipamentos p�blicos que possibilita o acesso a benef�cios como o Aux�lio Brasil, BPC (sal�rio m�nimo pago a idosos e pessoas com defici�ncia de baixa renda) e encaminhamento a abrigos para crian�as e mulheres v�timas de viol�ncia dom�stica, por exemplo.

Apesar do recente aumento de recursos para o Aux�lio Brasil, essa rede de servi�os cont�nuos, que exigem financiamento de car�ter permanente, t�m perdido espa�o no Or�amento federal.

O modelo de gest�o do Suas (Sistema �nico de Assist�ncia Social) prev� o cofinanciamento do sistema de assist�ncia social entre Uni�o, Distrito Federal, estados e munic�pios. Mas a parcela da Uni�o nesse cofinanciamento est� em queda desde 2014 e em 2023 deve atingir o patamar mais baixo em mais de uma d�cada.

Segundo levantamento da PUC-PR (Pontif�cia Universidade Cat�lica do Paran�), o or�amento federal para cofinanciamento dos servi�os de assist�ncia — que inclui a manuten��o dos Cras, Creas (Centro de Refer�ncia Especializado de Assist�ncia Social) e abrigos, por exemplo — diminuiu de cerca de R$ 3 bilh�es em 2014, ano de maior or�amento do per�odo recente, para valores pr�ximos a R$ 1 bi em 2021 e 2022, conforme a Lei Or�ament�ria Anual (LOA).

Estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econ�mica Aplicada), �rg�o vinculado ao Minist�rio da Economia, mostra a mesma tend�ncia.

"Este volume de recursos chama aten��o porque configura o menor montante proposto pelo governo federal nos �ltimos dez anos. Com isso, sinaliza-se a aus�ncia de prioridade dada a esta pol�tica, ainda mais no contexto de uma crise com impactos duradouros na economia e na sociedade e que demandar� um longo processo de recupera��o", escreveram os t�cnicos do Ipea, comentando o or�amento para a assist�ncia social em 2021.

Em 2023, o Projeto de Lei Or�ament�ria Anual (PLOA) atualmente em discuss�o no Congresso destina montante ainda menor para esses servi�os: R$ 48,3 milh�es, valor mais baixo em mais de uma d�cada.

Esse valor inclui recursos destinados � Prote��o Social B�sica (que mant�m os Cras), Prote��o Social Especializada (que mant�m todos os servi�os especializados) e Estrutura��o da Rede de Servi�os (que inclui gastos com encaminhamento a servi�os prestados por entidades).

Aperto fiscal e teto de gastos

Um primeiro motivo que explica por que a rede de servi�os de assist�ncia social est� perdendo espa�o no Or�amento federal, enquanto benef�cios como Aux�lio Brasil e BPC t�m seus recursos mantidos ou at� ampliados, � que os programas de transfer�ncia de renda s�o gastos obrigat�rios, enquanto as despesas com os servi�os socioassistenciais s�o gastos discricion�rios — despesas que o governo pode ou n�o executar, de acordo com a previs�o de receitas.

� o que explica Jucimeri Isolda Silveira, professora da P�s-Gradua��o em Direitos Humanos e Pol�ticas P�blicas da PUC-PR e respons�vel pelo estudo Prote��o Social, Desprote��o e Financiamento do Suas.


Fila para atendimento em Cras de Lauro de Freitas, Bahia
Programas de transfer�ncia de renda s�o gastos obrigat�rios, enquanto as despesas com os servi�os socioassistenciais s�o gastos discricion�rios, por isso t�m sofrido cortes (foto: Prefeitura de Lauro de Freitas )

"Desde que a Emenda Constitucional 95 [que estabeleceu o teto de gastos, limitando o crescimento da despesa do governo � varia��o da infla��o no ano anterior], os recursos para a assist�ncia social v�m sendo reduzidos. Ent�o � essa rede, que atua l� na ponta, que faz o cadastramento das fam�lias, que visa o acompanhamento integrado dessa popula��o que acessa os benef�cios, que est� sendo comprometida", diz Silveira.

Ela d� outro exemplo pr�tico dessa perda de recursos: o Programa de Erradica��o do Trabalho Infantil (Peti) n�o recebe recursos federais para a��es de enfrentamento desde 2019.

Com a redu��o dos repasses federais, tamb�m ficam prejudicados servi�os prestados pelos munic�pios como atendimento � popula��o em situa��o de rua, imigrantes e mulheres v�timas de viol�ncia.

"Quem faz esse atendimento na ponta � a assist�ncia social, � ela, por exemplo, que garante a prote��o integral de crian�as em situa��o de acolhimento institucional, que s�o mais de 30 mil hoje no Brasil", exemplifica a professora e pesquisadora da PUC-PR.

Para Manoel Pires, coordenador do Observat�rio de Pol�tica Fiscal do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Funda��o Getulio Vargas), o teto de gastos agravou a situa��o de perda de receitas para a assist�ncia, mas o quadro de restri��o or�ament�ria � anterior.

"H� uma compress�o da despesa discricion�ria desde 2014, 2015, que � quando o ajuste fiscal come�a. O teto de gastos entra no meio dessa hist�ria. Ele come�a em 2017 e institucionaliza a redu��o desse tipo de despesa", afirma Pires.

Emendas parlamentares n�o s�o solu��o, dizem gestores

Nos �ltimos anos, o governo tem buscado compensar a redu��o de Or�amento para a assist�ncia social por meio da destina��o de recursos via emendas parlamentares ou cr�ditos extraordin�rios, como o recursos emergencial de combate � covid-19.

Mas Elias de Sousa Oliveira, presidente do Congemas (Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assist�ncia Social), explica que isso n�o resolve o problema, j� que as estruturas de assist�ncia t�m car�ter permanente, enquanto esses recursos s�o de natureza eventual.

"Os servi�os de Cras, de Creas, de acolhimento de adultos e crian�as, casas-abrigo para mulheres v�timas de viol�ncia s�o servi�os continuados. Como eu fa�o a programa��o de um servi�o que � permanente com o recurso de uma emenda parlamentar que � espor�dica?", questiona Oliveira.


idosos em fila para atendimento
'Alguns munic�pios menores, com maior dificuldade, acabaram diminuindo atendimento e at� fechando servi�os', diz presidente do Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assist�ncia Social (foto: Marcelo Camargo/Ag�ncia Brasil)

O representante do Congemas explica que, para manter o atendimento � popula��o num momento de aumento da demanda pelos mais vulner�veis, os munic�pios passaram a compensar com o pr�prio caixa a falta de recursos federais.

"Alguns munic�pios menores, com maior dificuldade, acabaram diminuindo atendimento e at� fechando servi�os. Outros munic�pios acabam cobrindo o que o governo federal n�o manda, mas isso implica em uma perda da capacidade de aumentar e ampliar o atendimento num momento, p�s-pandemia, de aumento da demanda", diz Oliveira.

O representante cita o exemplo de Foz do Igua�u, cidade onde � secret�rio de Assist�ncia Social. At� mar�o de 2020, a cidade paranaense tinha 29 mil fam�lias no Cadastro �nico (registro das fam�lias brasileiras de baixa renda que permite o acesso a benef�cios como o Aux�lio Brasil), sendo 7 mil delas em extrema pobreza.

Agora, segundo Oliveira, s�o 47 mil fam�lias no Cadastro �nico e 18 mil fam�lias na extrema pobreza.

"Isso aumentou a demanda pelos Cras, pelos Creas, por acolhimento, por atendimento da popula��o em situa��o de rua e, al�m de n�o termos expans�o das metas de atendimento e do cofinanciamento, ainda temos cortes nos recursos, num contexto de n�mero de atendimentos muito maior", diz o gestor.

Segundo ele, os munic�pios respondem hoje por 90% de tudo que � investido na assist�ncia social, quadro que poder� ser complicado com a perda de arrecada��o do ICMS (Imposto sobre Circula��o de Mercadorias e Servi�os) sobre combust�veis, determinada pelo governo federal como uma forma de reduzir a infla��o �s v�speras das elei��es de outubro.

A Confedera��o Nacional dos Munic�pios (CNM) estima a perda de receitas para os munic�pios com a medida em R$ 22 bilh�es, com efeitos tamb�m sobre os gastos com educa��o e sa�de.

Oliveira afirma, por�m, que n�o � s� a falta de recursos que explica as filas nas portas dos Cras, como a enfrentada por Jana�na em Bras�lia, no dia em que a companheira de Iomar morreu ap�s dez horas de espera e oito dias de tentativas frustradas de obter um benef�cio.

Segundo o gestor, com a mudan�a do Bolsa Fam�lia para Aux�lio Brasil, o processo de atualiza��o do Cadastro �nico mudou. Antes, os munic�pios tinham um prazo de 60 dias para fazer a averigua��o de fam�lias, realizar a busca ativa e informar o governo federal sobre casos em que a fam�lia n�o p�de ser encontrada para atualizar o cadastro, situa��o que resultava no bloqueio do benef�cio at� algu�m da fam�lia comparecer ao Cras de refer�ncia.

"Hoje, o governo bloqueia de todo mundo [com cadastro desatualizado] e muitas pessoas s� ficam sabendo que est�o bloqueadas na hora de ir ao banco sacar o Aux�lio Brasil. Voc� imagina num m�s, 3 fam�lias s�o bloqueadas em Foz de Igua�u — como j� aconteceu. Essas 3 mil fam�lias v�o imediatamente para os Cras. Isso vai gerar fila", exemplifica Oliveira.

A isso se soma a dificuldade de aumentar o quadro de funcion�rios de atendimento, devido � restri��o de recursos, nesse contexto de aumento da demanda, impulsionada ainda pelo Aux�lio Brasil ampliado para R$ 600 at� dezembro e pelo aumento do aux�lio-g�s.

"Anteriormente, quando o governo federal fazia mudan�as, ele dialogava com os munic�pios. Tinha todo um planejamento. Hoje, muitas vezes, Estados e munic�pios ficam sabendo de mudan�as atrav�s dos jornais", critica o gestor.

Ap�s a morte de Jana�na no Cras Parano�, em Bras�lia, o governo do Distrito Federal anunciou uma parceria com o Corpo de Bombeiros Militar do DF para ampliar os atendimentos sociais e desafogar a espera por atendimento nos Cras da capital do pa�s.

A Secretaria de Desenvolvimento Social do Distrito Federal (Sedes) n�o respondeu a pedido de posicionamento sobre o tema feito pela BBC News Brasil.

Iomar espera que a morte de sua companheira sirva como um alerta para que o sistema de assist�ncia social brasileiro mude.

"A assist�ncia social no nosso pa�s, voc� me desculpe, mas � decadente, � vergonhosa. N�o pelos profissionais da assist�ncia, mas pelo sistema e seus governantes. � um incentivo � fila, ao descaso, � desumanidade", afirma Iomar.

"� preciso uma mudan�a dr�stica. Eu quero que meu grito seja ouvido: n�o deixem mais Jana�nas morrerem em busca de uma ajuda para ter um pouco de dignidade. � s� o que eu espero: que a morte dela n�o tenha sido em v�o. Eu realmente espero que haja mudan�as."

- Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62815251

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