Na avalia��o de Meirelles, o foco do pacote deveria estar principalmente no corte de gastos
Apesar de a in�dita invas�o e depreda��o das sedes dos tr�s Poderes por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro ter chocado o Brasil e o mundo, o economista avalia que isso n�o abalou o funcionamento das institui��es.
Foi nesse contexto que a Bolsa de Valores registrou na quarta-feira a sexta alta seguida, apesar da tens�o pol�tica.
"O mercado reage com fatos, n�o meramente com interpreta��o. Evidentemente, se o mercado visse um risco maior de conflito institucional, seria um problema. Mas n�o �, as institui��es est�o funcionando normalmente", ressaltou Meirelles, em entrevista � BBC News Brasil na quarta-feira (11/01).
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Na avalia��o de Meirelles, o foco do pacote deveria estar principalmente no corte de gastos, embora a expectativa � que as medidas a serem anunciadas por Haddad devam se concentrar no aumento das receitas, com aumento de impostos.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista, em que Meirelles tamb�m defende o teto de gastos, pol�tica implementada por ele no governo Michel Temer que tem falhado em conter despesas, assim como comenta as cr�ticas � press�o do "mercado" para o governo enxugar o or�amento, em meio ao aumento da pobreza e da fome no pa�s.
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BBC News Brasil - Como o senhor avalia o impacto na economia da invas�o das sedes dos tr�s Poderes?
Henrique Meirelles - N�o h� d�vida que foi uma situa��o de extrema gravidade, uma invas�o da sede dos tr�s Poderes, e uma destrui��o do patrim�nio p�blico. � um ato inaceit�vel e lament�vel e de grande repercuss�o internacional.
Do ponto de vista dos efeitos na economia, h� uma preocupa��o mas, por tudo o que estamos vendo de rea��o de mercado, o impacto est� sendo dentro de um realismo: houve destrui��o f�sica de propriedade p�blica, mas os Poderes continuam funcionando normalmente. Processo judicial, de investiga��o e apura��o de responsabilidades est� prosseguindo normalmente, vigorosamente por parte do Supremo Tribunal e das autoridades competentes.
Ent�o, o impacto na economia � um no sentido de haver uma expectativa, uma observa��o mais, digamos, cuidadosa em rela��o ao Brasil. Mas aos poucos n�s passamos a ver que, do ponto de vista de governabilidade, a aten��o come�a a sair daquele epis�dio de domingo para as a��es do governo. Isto �, passa a cada vez mais ser objeto de aten��o exatamente os pr�ximos passos, as concretiza��es do governo Lula, principalmente na �rea econ�mica, todo o plano de ajuste fiscal e corte de despesa anunciado pelo ministro Fernando Haddad.
Isso passa cada vez mais a voltar a ser o objeto maior da aten��o dos mercados e, portanto, dos agentes econ�micos e, em �ltima an�lise, da economia.
BBC News Brasil - Ent�o, parece ter havido uma leitura do mercado de que houve uma rea��o positiva dos tr�s Poderes aos ataques e que talvez esse epis�dio lament�vel de domingo n�o venha a se repetir?
Meirelles - N�o sei se � exatamente s� isso, uma coisa assim t�o pontual. A resposta positiva � rea��o dos tr�s Poderes existe, mas o ponto fundamental � que o mercado v� consequ�ncias para a �rea econ�mica. Ent�o o mercado procura olhar: isso vai prejudicar a execu��o dos planos de governo? O ministro Haddad deixou ou vai deixar de anunciar seus planos? N�o. Ent�o, a aten��o deixa de se voltar para aquele epis�dio e continuar reagindo aquele epis�dio. Aquele epis�dio ocorreu e agora as pessoas come�am a se voltar normalmente para as a��es do governo.
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BBC News Brasil - H� o risco de essa instabilidade mais pol�tica, que talvez possa continuar, afetar o andamento das agendas econ�micas? Estamos acompanhando poss�veis novas mobiliza��es desses apoiadores do Bolsonaro.
Meirelles - Evidentemente, existe uma aten��o para o tipo de a��o desses grupos. At� agora, os efeitos foram chocantes e destrutivos para o patrim�nio p�blico, mas n�o amea�aram o funcionamento das institui��es, principalmente porque ocorreram em um domingo.
H� essa quest�o das refinarias, das estradas, etc, � uma quest�o objeto de aten��o, mas tamb�m n�o est� afetando a economia em si, o suprimento de petr�leo, combust�vel, etc. Ent�o, eu acho que esse � o ponto objetivo em que o mercado reage. O mercado reage com fatos, n�o necessariamente meramente com interpreta��o ou significado dos fatos. Evidentemente se o mercado visse um risco maior de conflito institucional seria um problema, mas n�o �, as institui��es est�o funcionando normalmente. O Judici�rio est� fazendo as suas investiga��es de uma maneira normal, vigorosa, s�ria. E ent�o estamos prosseguindo a� e vendo a� como est� exatamente o andamento da economia, mas de novo cada vez mais com a aten��o nas pr�ximas a��es do governo.
BBC News Brasil - Economistas preocupados com equil�brio das contas p�blicas t�m sugerido que o governo deveria rever, por exemplo, cortes de impostos. O governo decidiu primeiro revogar a desonera��o de combust�veis. Considerando o momento que o pa�s vive, seria adequado retornar a imposto sobre combust�veis, correndo o risco de talvez categorias como caminhoneiros paralisarem estradas?
Meirelles - No in�cio de governo, houve uma decis�o de uma prorroga��o dessa quest�o dos impostos, por esse per�odo. N�o acredito que vai haver uma grande mudan�a nisso. Isso tem um custo, que j� est� nas contas dos agentes econ�micos. Por raz�es diversas, n�o s� por um processo de preocupa��o com a infla��o, mas tamb�m agora em fun��o exatamente desta quest�o de atos, digamos, vamos chamar de perturba��o da ordem, fatos graves como destrui��o do patrim�nio p�blico.
Ent�o � o momento, evidentemente, que eu acho de procurar a pacifica��o, cada vez maior. Eu acho que � uma coisa fundamental do governo deixar exatamente que as aten��es voltem-se cada vez mais para as medidas econ�micas de uma forma geral e uma pacifica��o do pa�s. O que eu acho importante � o ajuste fiscal, � o corte de despesas, a reforma administrativa, a reforma tribut�ria etc.
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BBC News Brasil - H� expectativa de que o ministro Fernando Haddad anuncie essa semana ainda um pacote de medidas fiscais. Segundo o que vazou na imprensa, seria um pacote mais concentrado na revers�o das desonera��es, medidas como revis�o dos contratos para diminuir despesas, algum corte de gastos. Como o senhor est� vendo esse poss�vel pacote?
Meirelles - Eu acho um pouco prematuro ficar fazendo grandes coment�rios em rela��o a um vazamento aqui, um vazamento ali, e a� chegar a conclus�es muito fortes com isso. Vamos aguardar o que vai anunciar, em tendo anunciado isso, a� sim vamos analisar exatamente o que ele est� propondo.
Agora, como eu disse, medida de controle de despesa, corte de despesas, e diminui��o de algumas desonera��es, de redu��o de benef�cios que n�o mais se justificam, essa � a dire��o. Precisamos baixar as despesas e aumentar um pouco as receitas, mas principalmente baixar as despesas, em virtude exatamente dos aumentos das (outras) despesas necess�rias (como o aumento do Bolsa Fam�lia, aprovado na PEC da Transi��o).
BBC News Brasil - Na discuss�o fiscal, sempre aparece a figura do mercado, que soa um pouco abstrata por parte da popula��o. Eu queria que voc� explicasse para o p�blico mais leigo: o que � o mercado exatamente e por que ele � t�o poderoso, t�o influente nessa discuss�o?
Meirelles - � uma excelente pergunta. As pessoas acham que o mercado � uma meia d�zia de pessoas l� na avenida Faria Lima (em S�o Paulo). N�o �. O mercado s�o todas aquelas pessoas que est�o engajadas em atividades produtivas no Brasil. O produtor, digamos, o padeiro do interior da Bahia, � mercado.
Ele n�o tem rea��es imediatas que aparecem nas manchetes, tipo aqueles gestores que compram e vendem a��es e isso influencia o pre�o da Bolsa, por exemplo. Houve uma situa��o qualquer onde um grande n�mero de pessoas, vamos supor, vendeu a��es na Bolsa, e isso faz com que o pre�o da Bolsa, o �ndice (que reflete o pre�o de um conjunto de a��es), caia. Bom, "o mercado reagiu assim" (dizem os jornais). O mercado � um conjunto, no caso, de pessoas grandes, em �ltima an�lise, somando-se todos os compradores e todos os vendedores, seja da Bolsa de Valores, seja do mercado de c�mbio, compra e venda de moedas, e seja no mercado de juros, quanto os investidores est�o demandando para comprar t�tulos da d�vida p�blica, seja de curto prazo, seja de prazo maior...
Ent�o, n�s estamos falando de agentes completamente diferentes, de todo lado. Isso � que � a rea��o mais de curto prazo. E tem o mercado no sentido mais amplo que diz, "bom, mas (pode haver) uma rea��o negativa do mercado tamb�m, mas de (determinadas a��es do governo) gerar um menor crescimento econ�mico". N�o � s� por causa da Bolsa, n�o � s� por causa dos juros, n�o � s� por causa do d�lar. Ent�o, quando eu estava mencionando o padeiro l� do interior da Bahia, que, se ele est� animado, acha que a economia vai crescer, o que ele vai fazer? Ele vai contratar mais funcion�rio, ele vai comprar mais trigo, etc. E isso vai ativar a economia. Mas, bom, (a empresa do padeiro) � muito pequena. � muito pequeno, mas somando existem 17,2 milh�es de micro, pequenas e m�dias empresas no Brasil. Isso tudo � mercado. Porque isso tudo (que � mercado) � o que vai reagir �s medidas que podem levar ao crescimento ou n�o da economia.
BBC News Brasil - O senhor est� explicando que o mercado � uma figura bem heterog�nea, cheia de atores. Por outro lado, o mercado sempre aparece no tema fiscal com uma vis�o meio homog�nea, de que quer o equil�brio das contas p�blicas, quer corte de gastos, n�o quer endividamento p�blico. Porque geralmente � colocado dessa forma, que o mercado reagiria mal a mais endividamento do governo, por exemplo?
Meirelles - Isto � uma forma da imprensa (reportar), n�o � do mercado. O mercado n�o fala, n�o � uma pessoa que fala "eu sou o mercado, eu reagi assim ou assado". N�o existe isso. Se a Bolsa cai, se o d�lar sobe, uma maneira da imprensa noticiar isso � "o mercado reagiu de uma forma negativa". Se a bolsa sobe e o d�lar cai, por exemplo, se os t�tulos de juros caem, a imprensa diz que o mercado reagiu positivamente � situa��o tal ou o mercado n�o reagiu. � uma boa maneira, a imprensa est� correta.
A imprensa n�o tem que ficar o tempo todo explicando tudo isso que eu expliquei aqui. Ent�o, uma forma de sintetizar a situa��o, o resultado das a��es, das rea��es de todos os agentes econ�micos, � isso, dizer "o mercado reagiu". � o resultado l�quido. Ele (o jornalista) n�o vai dizer "muitas pessoas aqui compraram a��es, tantas pessoas venderam a��es", porque inclusive seria uma complexidade tal descritiva que seria muito dif�cil para as pessoas entenderem. Ent�o coloca "o mercado reagiu assim: subiu a bolsa, caiu o d�lar, caiu os juros, o mercado reagiu positivamente". Porque o mercado � o conjunto de todas as pessoas comprando e vendendo t�tulos.
BBC News Brasil - O campo mais � esquerda costuma criticar o mercado, talvez se referindo mais ao mercado financeiro, ao empresariado, dizendo que o mercado est� preocupado s� com seus ganhos financeiros e n�o est� preocupado com a fome, com as dificuldades do povo mais pobre. Como o senhor v� esse tipo de cr�tica?
Meirelles - O ponto fundamental � que cada um cumpre sua fun��o. Se � algu�m respons�vel por gerir os recursos atrav�s de um fundo de milh�es ou milhares de pessoas, sejam grandes, pequenos, m�dios (investidores), que colocaram sua poupan�a l�, ele tem que agir em benef�cio dessas pessoas. E, por outro lado, cabe ao governo, evidentemente, olhar a popula��o como um todo e tomar a��es de governo que melhorem a distribui��o de renda, que diminuam a desigualdade econ�mica e que sirvam de suporte �queles mais pobres. Ent�o, eu acho que essa discuss�o � normal, que � a discuss�o de justificativa das diversas medidas no sentido de que cada um est� cumprindo a sua fun��o, cada um est� fazendo aquilo que � a sua responsabilidade.
Evidentemente, os agentes econ�micos de uma maneira geral - desde o grande gestor de fundos aqui de S�o Paulo ou de outras cidades, at� o padeiro l� do interior - est�o evidentemente preocupados com os seus resultados. O padeiro est� preocupado, em �ltima an�lise, se vai vender mais ou vender menos. Se vai vender mais p�o, ele compra mais trigo, ele contrata mais funcion�rio. E isto � bom, porque se todos agirem assim, mais pessoas ser�o contratadas, mais empregos ser�o criados no pa�s, etc. Por outro lado, o governo diz: "eu estou fazendo essa medida exatamente, apesar que ela tem um custo aqui que preocupa, mas � responsabilidade do governo, evidentemente, olhar aqui pelos mais pobres etc". Ent�o � esse, � esse o quadro. Cada um olhando dentro da sua responsabilidade, o que � normal.
BBC News Brasil - Durante o governo Bolsonaro, houve uma agenda liberal, n�o necessariamente totalmente implementada, que atraiu o apoio de atores econ�micos importantes, seja de empres�rios, na �rea do mercado financeiro, no agroneg�cio. Por outro lado, o presidente Bolsonaro sempre foi uma pessoa de discurso autorit�rio. Ele sempre exaltou abertamente a ditadura militar, que governou o pa�s de 1964 a 1985. Esse apoio a um presidente que sempre teve um discurso autorit�rio n�o passa uma impress�o de que talvez a elite econ�mica coloque quest�es econ�micas, ganhos econ�micos, acima de valores democr�ticos?
Meirelles - Olha, � muito importante deixar claro o seguinte: o mercado n�o reage politicamente, como fica aparecendo, d� apoio pol�tico. Voc� pode ter um empres�rio que d� apoio pol�tico, a um ou a outro (candidato). Ent�o, o que o que pode existir s�o manifesta��es, tamb�m, n�o em rela��o � pessoa necessariamente, mas a determinadas pol�ticas (defendidas pelo candidato ou autoridade). No caso, as pol�ticas anunciadas pelo governo, como voc� disse muito bem, n�o necessariamente implementadas, mas que foram anunciadas como pol�ticas liberais, pol�ticas de abertura, de cria��o de condi��es favor�veis para as empresas investirem, s�o coisas que os agentes econ�micos acham positivo. Ent�o, apoiaram muito isso.
Agora, com o tempo come�ou a haver uma certa preocupa��o… por raz�es diversas, essa agenda n�o foi implementada, uma agenda liberal econ�mica, n�o estavam necessariamente julgando (opini�es autorit�rias)… Inclusive porque eu acho que, do ponto de vista de (ser) liberal, neste caso, n�s estamos falando muito objetivamente do liberalismo na �rea econ�mica... Agora, n�o necessariamente apoiando o estilo dele ou as tend�ncias pessoais dele. � uma outra discuss�o. Muitos apoiam, muitos n�o apoiam.
BBC News Brasil - Mas a elite econ�mica acha ok, talvez, aceitar esse estilo autorit�rio, desde que sejam implementadas as pol�ticas liberais? Eu estou me referindo a uma cr�tica que muitas pessoas fazem.
Meirelles - Eu n�o colocaria assim. Primeiro porque eu acho elite econ�mica muito vago. O que � a elite econ�mica? N�s vimos aqui empres�rios de grande porte apoiando o Lula. Ent�o eu acho complicado todas essas generaliza��es, elite econ�mica, mercado, n�o sei o que. Existe um n�mero grande de empres�rios que apoiavam a pol�tica econ�mica, n�o necessariamente as quest�es (de estilo autorit�rio). E segundo, independente de an�ncios, de falas, houve medidas concretas autorit�ria do governo? E qual foi a rea��o a isso? Objetivamente, pode ter havido muita preocupa��o quanto a isso, muitas frases fortes do presidente. Mas, concretamente, n�o houve medidas de restri��o � liberdade, que seriam, evidentemente extremamente negativas e inaceit�veis.
BBC News Brasil - O senhor tem raz�o, eu deveria ter falado parte da elite econ�mica. Eu trouxe essa quest�o porque � um debate que est� na sociedade. Talvez ele n�o tenha tomado atitudes autorit�rias no sentido de limitar a liberdade de ir e vir das pessoas, mas muitas pessoas consideram que o Bolsonaro foi construindo com discursos de contesta��o das urnas, por exemplo, de ataque o Poder Judici�rio, foi construindo uma situa��o que culminou com o que n�s vimos no domingo, inclusive com essa politiza��o das For�as Armadas. Esse � o contexto que queria trazer quando eu fiz a pergunta.
Meirelles - Entendi. Ele tem esse discurso, mas objetivamente n�o conseguiu efetivar. O fato concreto � o seguinte: as For�as Armadas n�o intervieram. Eu sou um homem que me baseio por fatos e n�o por falas. As For�as Armadas n�o intervieram, as For�as Armadas se mantiveram no seu papel institucional, adequado, correto, de acordo com a Constitui��o durante todo o per�odo. Pode-se discutir agora: poderia ter agido mais aqui, mais ali, mas eu acho que o papel das For�as Armadas � o papel claro definido pela Constitui��o. N�o h� d�vida de que ele contestou muito o resultado da elei��o. Mas ele contestava antes. Ele j� contestou a elei��o que ele ganhou, de 2018 (quando Bolsonaro disse, sem apresentar provas, que deveria ter ganhado no primeiro turno). Ent�o � muito mais um processo de estilo... Agora, o que est� na cabe�a dele eu n�o sei. Eu n�o o conhe�o pessoalmente para julgar o que ele de fato estava querendo com tudo isso, eu n�o sei.
BBC News Brasil - Uma parte da sociedade que n�o � inexpressiva associa Lula ao comunismo e diz que o Brasil iria virar uma Venezuela, uma Cuba. O que diria para essas pessoas?
Meirelles - Eu gostaria de esclarecer algumas coisas. N�s temos governo autorit�rio na Venezuela, temos governo autorit�rio em Cuba, mas o comunismo como tal, ele caiu com a queda do muro de Berlim muitas d�cadas atr�s. O comunismo existiu na Uni�o Sovi�tica, na China e pa�ses da Europa Oriental. Aquilo sim era comunismo. Eu n�o estou vendo nenhuma proposta de comunismo no Brasil.
Comunismo � a propriedade coletiva de todos os meios de produ��o. Ent�o, em pa�ses comunistas, de fato, uma farm�cia � do governo. Eu mencionei a padaria, � do governo. As f�bricas todas de autom�vel, de avi�es ou de liquidificador, s�o do governo. Isso � comunismo. Isso � o que prevaleceu na Uni�o Sovi�tica e caiu com o fracasso econ�mico da Uni�o Sovi�tica e com a queda do muro de Berlim. N�o acredito que exista ningu�m propondo isso.
Essa quest�o de Venezuela ou Cuba, � que se discute apoio ou n�o apoio, ou cr�tica, a esses regimes, isso a� � outra hist�ria. Agora, da mesma maneira que se pode acusar o advers�rio de ser comunista, voc� pode acusar o advers�rio de ser fascista do outro lado. S�o acusa��es normais da pol�tica, mas de uso de um adjetivo mais do que qualquer outra coisa, porque o comunismo em si � algo que j� caiu a� h� muitas d�cadas e ningu�m pensa em restaurar.
Por exemplo, na China se usa o nome (comunista), mas existe um regime capitalista na China, com a presen�a forte do Estado, mas capitalista h� j� muito tempo, desde a presid�ncia do Deng Xiaoping (1978 a 1989). Em resumo, n�s temos a� uma luta pol�tica normal, que � parte da democracia. A democracia pressup�e essa luta pol�tica e �s vezes, a linguagem forte, etc, mas o importante � que a diverg�ncia de opini�o seja preservada, democracia seja preservada e, principalmente, o crit�rio de tomada de decis�o, que � uma elei��o livre e democr�tica. Isso � que � importante.
BBC News Brasil - O governo Lula tem prometido agilidade na reforma tribut�ria e uma das discuss�es seria aumentar a taxa��o sobre os segmentos de maior renda, pois isso seria importante do ponto de vista distributivo. Como o senhor v� essa discuss�o?
Meirelles - � algo que faz parte de uma vis�o de pol�tica redistributiva, agora precisa tomar muito cuidado de n�o inibir investimentos. Porque, em �ltima an�lise, a melhor pol�tica social que existe � o emprego. Ent�o � muito importante que o Brasil tenha um aumento do n�vel de investimento e n�o uma diminui��o. O total de poupan�a, o total de investimento do Brasil � baixo. Isso � uma das raz�es, inclusive, n�o s� da nossa baixa taxa de crescimento m�dia durante muito tempo, como tamb�m do fato que n�s necessitamos de ter investimentos internacionais, que variam de US$ 60 a 90 bilh�es ao ano, dependendo do ano. E isso � fundamental para o pa�s, grande parte da nossa ind�stria, etc, s�o empresas globais.
Esses investimentos criam emprego, criam renda, s�o fundamentais para o Brasil. Ent�o, n�s vamos apenas tomar cuidado de n�o achar que o pa�s � simples, como se fosse um pa�s ainda de um s�culo atr�s, onde n�s tenhamos aqui um grupo de pessoas que s�o meia d�zia de pessoas vivendo de renda.
N�o, n�s temos que aumentar a distribui��o de renda, tomar medidas fiscais que tenham conte�do redistributivo, tudo bem, mas sem prejudicar a atividade produtiva, sem prejudicar os investimentos, porque n�s hoje ficamos competindo (pelos recursos externos com outros pa�ses). Ent�o, uma empresa vai fazer um investimento no Brasil, ou um grande fundo internacional, (ela vai se questionar) "eu vou investir no Brasil, vou investir na Coreia do Sul, vou investir no M�xico, onde � que eu vou investir?". E n�s temos que atrair esse investimento para o pa�s. Isso gera emprego, gera renda, gera atividade, gera imposto, etc, etc. Ent�o tudo isso � que n�s temos que olhar com muita aten��o, para de um lado sim, ter um sistema que � distributivo, de outro lado, n�o prejudicar a atividade produtiva, o aumento dos investimentos, do emprego e da renda.
BBC News Brasil - J� est� dado como certo que o teto de gastos, adotado quando o senhor era ministro da Fazenda, vai ser revisto, haver� novas regras. Qual � o novo arcabou�o fiscal que o Brasil precisa?
Meirelles - � muito importante que o novo arcabou�o fiscal se concentre em torno daquilo que o governo controla, que s�o as despesas p�blicas. N�o adianta colocar meta do que o governo n�o controla. Tipo receita (do governo), depende de uma s�rie de coisas: atividade econ�mica, infla��o. Aumentou a infla��o, aumenta a receita. A� o Banco Central consegue diminuir a infla��o. Cai a receita. Bom, a� violou a meta (fiscal baseada em receita)... J� as despesas p�blicas o governo controla.
BBC News Brasil - Quando o teto de gastos foi adotado, houve muita cr�tica por parte da esquerda, mas tamb�m houve algumas cr�ticas do campo liberal. Por exemplo, os economistas Felipe Salto, Monica de Bolle, consideravam a regra do teto muito r�gida. Concretamente, a regra do teto tem sido furada ano ap�s ano e n�o conseguiu de fato evitar o aumento dos gastos. O senhor reconhece que houve alguma falha de desenho nessa regra?
Meirelles - Eu quero fazer algumas coloca��es importantes. Em primeiro lugar, enquanto eu estava l� como ministro da Fazenda, ele n�o foi violado.
N�mero dois, e eu anunciei isso v�rias e repetidas vezes em entrevistas, etc... A principal finalidade do teto de gastos n�o � ele sozinho funcionar. Se era s� pra ter um teto e ele fazer tudo, funcionar tudo, se ajustar a tudo, ent�o ele era muito pouco flex�vel e n�o existe um teto que pudesse fazer isso e acomodar todas as demandas. A finalidade do teto � fixar um limite e, a partir da�, for�ar a defini��o de prioridades (de gastos).
Por exemplo, uma das coisas mais importantes que eu propus na �poca, e depois acabou sendo aprovada em 2019, foi a reforma da Previd�ncia. Eu n�o tenho a menor d�vida de que isto � um efeito extremamente positivo do teto. O teto tornou necess�ria a aprova��o da reforma da Previd�ncia. Foi bom para o pa�s, na medida em que a expectativa de vida de todos n�s est� aumentando e isso leva � necessidade de ajustar a Previd�ncia Social. Por exemplo, agora, � necess�rio fazer a reforma tribut�ria, � necess�rio fazer a reforma administrativa. Tudo isso faz parte do conjunto do teto. Sem o teto, possivelmente muitas dessas reformas n�o estariam nem em discuss�o.
E o fato de que a viola��o do teto precisa de uma emenda constitucional (medida de aprova��o mais dif�cil no Congresso) j� � um benef�cio do teto. Porque antes era s� gastar, aprovar uma lei ordin�ria aumentando o gasto. Isso levou o Brasil � amea�a de insolv�ncia e � recess�o que n�s tivemos em 2015 de 2016.
Mas, com tudo isso, o teto tamb�m previu que ela tinha um tempo de dura��o, a partir da� que haveria exatamente uma an�lise de ajuste do teto (a regra previa uma revis�o pelo Congresso em 2026). E � exatamente o que se est� fazendo agora com essa nova f�rmula fiscal e essas discuss�es das novas medidas.
Ent�o, eu acho que o teto cumpriu e est� cumprindo as suas fun��es at� hoje, independentemente, inclusive, de ter havido a� alguns estouros de teto.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64247832
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