
A professora, na tarde de dedica��o e carinho, ensina portugu�s para concurso. O grupo aprende com humor e compromisso. A coordenadora do setor, Cleide Fernandes, quer saber quem ali teria interesse em participar de curso de fotografia. Quase todos levantam as m�os. Fotografia para cegos? Sim. Por que n�o? Evgen Bavcar, fot�grafo, fil�sofo e cineasta esloveno nascido em 1948, ficou cego aos 12 anos. Conheceu a fotografia aos 17 e escreveu: “O mundo n�o � separado entre os cegos e os n�o cegos. A fotografia n�o � exclusividade de quem pode enxergar. N�s tamb�m constru�mos imagens interiores”.
J� fora das paredes da biblioteca, o mo�o de meia idade, de �culos escuros, toca bengala cal�ada afora. Os passos n�o s�o lentos. Ele segue com a seguran�a de quem parece conhecer o caminho. Parado no sinal, aguarda ajuda para atravessar a Avenida Bias Fortes. N�o � preciso muito tempo para que a bela mulher em roupa de gin�stica ofere�a-lhe o bra�o. Ele sorri e vence a faixa de pedestre. Agradece.
Ou�a esta reportagem:
Ganha a Rua da Bahia sozinho e alcan�a o ponto de �nibus. Pede ajuda ao homem barbado, que precisa repassar o pedido de aux�lio, j� que seu �nibus est� logo � frente. A senhora de vestido florido n�o � de muito assunto. O deficiente tamb�m n�o. Cinco minutos e a linha rumo ao Bairro Santo Ant�nio toma o asfalto. Os dois se v�o.
Muito abaixo, no hipercentro, a senhora de bengala se destaca na multid�o. Ela anda com ritmo muito particular entre os passantes da Rua dos Tupinamb�s. Desvia de um obst�culo aqui, outro ali e faz muita gente abrir espa�o e caminho. J� conhecida do vigilante, entra na ag�ncia do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O seguran�a lhe oferece o bra�o, gesto repetido na sa�da.
“Estamos fazendo uma reportagem... Ser� que a senhora poderia nos dar um depoimento?” “Sim”, ela responde. “Pode ser”, completa, meio desconfiada. Luzia Rosa da Silva, de 59, mora em Santa Luzia, na Regi�o Metropolitana de BH. � deficiente visual desde pequena, com pouco mais de 1 ano. Sequela de sarampo.
H� 22 anos � funcion�ria da Secret�ria da Sa�de do Estado de Minas Gerais. Para Luzia, s� h� escurid�o para quem conhece a luz. Ela n�o se lembra. “� uma impress�o que as pessoas t�m de que tudo � escuro para n�s. Mas o que � a escurid�o? Eu n�o sei. N�s n�o vemos a luz e tamb�m n�o vemos a escurid�o”, explica ela, m�e de cinco filhos.
A caminho do curso de inform�tica na Pra�a Milton Campos, Luzia diz que, se tivesse poder por um dia, “distribuiria cartilhas para a popula��o aprender a lidar com os cegos”. Ela conta situa��es de embara�o, como ser largada no canteiro central de movimentada avenida. “Tem gente que ainda faz pior. A gente pede ajuda, eles d�o um tapinha no nosso ombro e dizem: ‘Vai!’”.
SATISFA��O SILENCIOSA
Pedimos licen�a e a acompanhamos a dist�ncia at� o ponto do �nibus, distante tr�s quadras. Pelas ruas tomadas de gente, muita indiferen�a. Mas solidariedade tamb�m. O moreno gentil na Avenida Amazonas nem espera pelo pedido de ajuda: apresenta-se prontamente para auxiliar dona Luzia a chegar ao outro lado. O sorriso largo do volunt�rio � sinal de satisfa��o com a boa a��o do dia.
O pipoqueiro se antecipa para evitar que nossa personagem trombe no carrinho, bem em frente ao Cine Brasil. Luzia para na cal�ada, orientada pelo barulho dos carros, perto da faixa de pedestre. Pede ajuda. O rapaz de mochila pesada nas costas lhe d� o bra�o.

A realidade vista por dentro
Era s�bado. At� a hora ele guarda: 13h45. Aos 18 anos, em uma pelada – um “junta-junta”, como chama –, Nivaldo de Souza, de 50, viu companheiros, familiares e o campinho de futebol pela �ltima vez. Uma bola perdida, tomada de velocidade, tamanho e for�a suficientes, cegou os dois olhos do atleta amador, craque para a fam�lia e amigos queridos. A imagem que ficou mais forte na mem�ria � o rosto da m�e, Marlene, na �poca, com 28 anos. “� a imagem mais viva e mais bonita que guardo comigo”, diz, sorrindo.
Ou�a a hist�ria de Nivaldo de Souza
Tecnicamente, o diagn�stico da fatalidade: descolamento da retina, com glaucoma e atrofiamento do globo ocular. Os quatro meses que se seguiram ao acidente foram de revolta e dor. “Dif�cil aceitar… voc�, cheio de sa�de, aos 18 anos, de repente, deixar de ver para sempre”, recorda Nivaldo. Foram tempos de muita reflex�o para “renascer” inteiro, sem sombras no cora��o, com “a vida vista por dentro”.
O rapaz se reergueu com o apoio da fam�lia e dos amigos mais pr�ximos. Fez curso t�cnico de radiologia e encarou carreira no Hospital Odilon Behrens at� se aposentar por invalidez, mais de duas d�cadas depois. Jovem ainda, forte e cheio de disposi��o, pai da Simone, de 22, n�o deu conta de ficar em casa, no Bairro Alto Vera Cruz, na Regi�o Leste de Belo Horizonte. Solteir�o, tornou-se vendedor ambulante, para a alegria de novos amigos no hipercentro da capital.
Popular, Nivaldo � reconhecido por onde passa, nos quarteir�es entre as avenidas Afonso Pena e Oleg�rio Maciel. Firmou ponto na Rua Carij�s e ganhou a simpatia de outros dois companheiros deficientes: Jo�o Gon�alves de Souza, de 64, e Jos� Robson da Silva, de 43. Ambos ambulantes, com hist�rias de vida n�o menos tocantes. Jo�o, nascido em Goi�s e vindo nos anos 1970 para Belo Horizonte, tamb�m � vizinho de bairro, no Alto Vera Cruz.
O goiano � outro que “foi bom das vistas um dia”. Adolescente, aos 14, Jo�o caiu de costas numa traquinagem, bateu a cabe�a e teve o c�rebro afetado. Com a queda, perdeu completamente a vis�o – como Nivaldo. As imagens da inf�ncia, “de muita pobreza e dificuldade”, em Pires do Rio, ele nunca quis relembrar. “Eu me revoltei demais. S� me lembro disso. A�, tive que come�ar do zero a minha vida”, conta.
“Minha tristeza maior com a cegueira t�o jovem foi de ter perdido o pouco que podia ter, em termos financeiros e morais”, lamenta, lembrando emocionado a “decep��o em fam�lia”. Nos anos 1990, o vendedor ambulante voltou � terra natal para cuidar dos pais adoecidos. “No ano passado, com a morte dos velhos, sem nada que me prendesse a Goi�s, voltei para Minas”, conta. Sensorial agu�ado, Jo�o gosta da energia da capital mineira. “Gosto daqui. Tenho amigos e me sinto respeitado”, diz.
Do trio amigo, Jos� Robson � o ca�ula. Barbudo, gentil, contente com a conversa, reclama inclus�o e acessibilidade. Letrado, morador de Betim, cita Jorge Amado e Castro Alves. “Se tivesse poder por um dia, tomaria provid�ncias para que os cegos fossem mais respeitados. Nunca enxerguei, mas tem um mundo de que gosto muito dentro de mim”, define, sorrindo.