Pol�mica: mural do Cura exp�e linha t�nue entre est�tica e racismo
Artista que pintou mural em fachada de pr�dio no Centro de BH fala sobre a a��o movida por morador do condom�nio, que afirmou que a obra "� de gosto duvidoso"
'Quando n�o nos matam fisicamente, nos matam simbolicamente. Esse apagamento � uma forma de nos matar, uma forma de matar um discurso' - Criola (foto: Bruno Figueiredo/Divulga��o)
Nascida em 25 de janeiro, Criola � regida por Aqu�rio, signo conhecido por estar � frente do tempo, ser vision�rio e tamb�m por ser muito ligado � defesa de causas grandiosas. No entanto, para os que n�o acreditam em hor�scopo e preferem a racionalidade para entender o mundo, os n�meros podem ajudar a compreender a dimens�o desta artista de 30 anos nas artes contempor�neas e no debate p�blico sobre a quest�o racial. Na segunda edi��o do Circuito Urbano de Arte (Cura), em novembro de 2018, Criola pintou o mural H�brida astral – Guardi� brasileira, em 1.365 metros quadrados na fachada cega do Edif�cio Chiquito Lopes, na Rua S�o Paulo, Centro da capital.
Com a miss�o de pintar painel de dimens�es ainda n�o experimentadas por ela at� aquele momento, Criola n�o imaginava que seu desafio maior n�o seria o tamanho da empena. O painel se tornou ponto de uma controv�rsia na capital, que colocou todos a pensar sobre gosto, est�tica e racismo. O trabalho art�stico foi contestado na Justi�a por um morador, alegando que “n�o � uma simples pintura, � uma decora��o de gosto duvidoso”. A pol�mica ganhou proje��o nacional, quando foi tratada pelo prefeito Alexandre Kalil no programa Roda viva, da TV Cultura, em entrevista na segunda-feira.
A resposta de Kalil, que chamou o morador de “bo�al”, viralizou e o debate ultrapassou as montanhas de Minas. A H�brida resulta da pesquisa da artista, que tem na pintura uma forma de se conectar com a espiritualidade. Com a obra, ela prop�e � cidade uma introspec��o para que se possa refletir acerca de “onde estamos e para onde estamos indo”. Criola j� fazia essa reflex�o muito antes do momento de desacelera��o imposto ao planeta pelo novo coronav�rus, em 2020.O Estado de Minas conversou com a artista, que falou sobre o processo de cria��o, sobre aprecia��o est�tica e racismo.
'Se apagar um, fa�o 10. Dou o recado que tem que ser dado, estou cumprindo o que eu vim cumprir, e est� s� no come�o' - Criola (foto: Bruno Figueiredo/Divulga��o)
Para voc�, o que h� por tr�s desse argumento de que o mural � de gosto duvidoso?
Deixa n�tido para as pessoas onde est� o racismo. Obviamente, ningu�m precisa gostar do mural. E o problema n�o � o apagar em si, mas a quest�o �: gosto � algo constru�do culturalmente. Quando ele fala de gosto duvidoso � baseado em qu�? Parte de qu�? De que ponto de vista � um gosto duvidoso? � importante refletir sobre isso. O belo e o feio foram constru�dos, padr�es de beleza s�o constru��es imag�ticas, culturais. Antigamente, o padr�o era grego. Padr�o de beleza era euro- peu. Esse padr�o � manipulado pelos colonizadores. Por isso, � uma situa��o bem racista querer o apagamento. Quando n�o nos matam fisicamente, nos matam simbolicamente. Esse apagamento � uma forma de nos matar, de matar um discurso.
O que � a H�brida astral?
A s�rie H�brida astral – Guardi� brasileira fala de minhas reflex�es, de uma mulher preta que est� buscando autoconhecimento a todo momento, que est� questionando o porqu� de as coisas serem assim, desde o porqu� de o pr�dio ser cinza, o asfalto � cinza, do porqu� a gente estar na base da pir�mide social, quem determinou isso, como que funciona isso, o porqu� de a gente n�o ter acesso a coisas b�sicas que est�o na Constitui��o, questionar tudo. Essa pesquisa � no lugar da imagina��o, de sentir atrav�s da intui��o esse mundo interdimensional, no qual a gente alcan�ou uma compreens�o que n�o existe separa��o entre ser humano e ser natureza, � uma coisa s�. A gente faz parte da natureza. Ent�o, s�o seres que entenderam esse lugar. J� entenderam que a origem de tudo vem de uma energia feminina, a natureza. Se a gente pensa por que � a mulher quem d� vida a um ser, que tem um filho... Que hist�ria � essa de que a mulher vem da costela de Ad�o? Quem inventou isso, meu pai amado? As h�bridas s�o seres que j� adquiriram essa compreens�o. Por adquirirem essa compreens�o, os poderes das plantas, os poderes da energia feminina, elas se conectam ao ciclo da Lua, ao ciclo da natureza, ent�o falo desse lugar dos povos ancestrais, do povo ind�gena, o povo preto, que, desde sempre, t�m esse lance da energia feminina forte, das matriarcas e das mulheres, do respeito � natureza.
Quando come�ou essa pesquisa? Quando voc� foi convidada para fazer o mural, tinha o entendimento de que faria a H�brida?
N�o estou me lembrando de quando come�ou, mas, antes disso, comecei a fazer body painting no meu corpo e a fazer fotoperformance. A primeira vez que eu fiz foi superintuitiva, estava numa cachoeira com um amigo, fomos para o ateli� dele, peguei a tinta e comecei a me pintar. Ele tinha uma c�mera, a gente tirou umas fotos na hora e fez um ensaio. Para mim, o processo de pintura � muito espiritual. No entanto, muita gente questionou, mas a obra est� falando de religi�o. A espiritualidade est� al�m de religi�o. Religi�es existem v�rias. Espiritualidade � sua conex�o com algum ser, ou com o que quer que seja em que voc� acredita, que potencializa que voc� esteja vivo, que uma �rvore cres�a, que potencializa a vida. Para mim, isso � espiritualidade. Meu processo de pintura sou eu me conectando com a minha espiritualidade. Nesse processo intuitivo de me pintar, cheguei nessa H�brida de extrema conex�o comigo. Olhei-me no espelho e vi tudo isso: esse ser extremamente conectado com a natureza. Extremamente sens�vel e que segue seu instinto, que n�o � colocado como algo primitivo, ruim e menor.
O mural H�brida astral - Guardi� brasileira, pintado na fachada cega do Edif�cio Chiquito Lopes, na Rua S�o Paulo, Centro de BH, piv� de debate (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
De certa forma, a obra H�brida foi um press�gio para o que viver�amos em 2020 com a chegada do novo coronav�rus? Dizem que o surgimento do v�rus se deve � desconex�o do ser humano com a natureza, ou melhor, aos danos causados ao meio ambiente…
J� estava sentindo ali. At� fiz um texto que fala que essa pintura feita na encruzilhada � como uma b�ssola que aponta o caminho que temos que seguir. N�o que eu queira falar uma verdade universal, longe de mim. � minha vis�o sobre a humanidade. O futuro � o retorno, o futuro � ancestral, � caminhar para tr�s e olhar para nossa ferida. N�s, brasileiros, temos uma ferida aberta. A gente n�o olha para ela. Enquanto a gente n�o olhar para ela, a gente n�o vai evoluir, n�o vai chegar a um lugar melhor. N�o � � toa que o Brasil � um pa�s superdiverso, com pessoas de v�rias cores. Olha que riqueza! A riqueza mora na diversidade. Se a gente olha a natureza, quantas plantas de v�rios jeitos e v�rias formas. N�o existe uma planta s� e ela manipula tudo: s� ela que vai existir, s� ela que � bonita, s� ela que � bela e o resto tem que se submeter a ela. A natureza mostra pra gente que tudo se conecta, uma coisa precisa da outra para sobreviver. Se o bioma n�o tem diversidade, ele morre. A gente � como a natureza, � a mesma coisa. Costumo falar que, este momento, � como se a gente estivesse num quarto escuro e agora acendemos as velinhas. Agora d� para ter a dimens�o da bagun�a do quarto. Est� se enxergando a bagun�a. Acendemos uma velinha, mas bem t�mida.
Voc� pintou outras H�bridas?
N�o fiz outra empena com essa tem�tica. Fiz uma empena na Bielorr�ssia, mas n�o era com a tem�tica de H�brida astral. Essa da Bielorr�ssia foi em 2019, mas estava refletindo sobre isso, tanto que coloquei o nome em iorub�, significa “chorar as �guas da terra”. Fiz uma mulher chorando com o plexo, o chacra lar�ngeo, com uma cobra enrolada nela.
Quando houve a negocia��o com o condom�nio para a pintura da H�brida voc� soube que havia um cond�mino contr�rio?
Durante o processo, minha equipe evitou o m�ximo me contar. Tentou segurar, mas chegou a um ponto que n�o tinha como e tiveram que me contar. Foi durante o processo de execu��o. Falaram que tinha um morador que queria embargar a obra, que era pra gente pintar r�pido.
Essa informa��o influenciou no seu processo?
Sabe esse lance de ter que ser forte? �s vezes, a gente anestesia o que est� sentindo na hora. Estava t�o focada em fazer uma boa pintura, cumprir meu trabalho e terminar, que engoli tudo que poderia sentir naquele momento e foquei na pintura, em executar e materializar aquilo. �bvio, deve ter influenciado, mas ficou guardado em um lugarzinho do inconsciente.
Como foi a recep��o da obra? O que as pessoas falam com voc� sobre o mural?
Tem muita gente que ama, adora, super se conecta com o mu- ral. Tem algumas pessoas que tamb�m falam o contr�rio, n�o diretamente para mim. S� agora, com esse caso, que come�aram a falar que n�o gostam. A �ltima mensagem no caminho que eu vi, na Folha de S.Paulo, a pessoa comentou: “pintura muito feia, parecendo coisa de magia negra, de macumbaiada. Por que n�o pinta um gol do Pel�?”. Estou juntando todos os coment�rios para fazer uma performance com eles. Coisas desse n�vel. S� uma vez que aconteceu de a pessoa falar diretamente para mim. Fui a um pr�dio de frente para tirar uma foto do mural, pedi para entrar em um escrit�rio de contabilidade, a mo�a me deixou entrar e fui tirar a foto. Ela disse: “Voc� vai tirar uma foto dessa coisa feia?”. Eu falei (sorrindo) “Vou mo�a. Vou tirar a foto. Pode?”. “� mo�a, voc� n�o gostou n�o? Me conta”. “Ah n�o. Isso est� falando de fertilidade”. “Entendi, voc� n�o gosta de fertilidade?”. Ela respondeu: “N�o. Est� incentivando o aborto”. Pensei: gente, por que tem o �tero para o lado de fora quer dizer que a mulher est� sem �tero?. Interpreta��es, mas lido superbem com elas.
Ao ver as cr�ticas, voc� avalia que seu trabalho alcan�ou o objetivo de provocar reflex�es?
A arte � livre. Cada um vai gostar ou n�o. N�o quero que as pessoas enxerguem aquilo que estou falando que �. De forma alguma, a� que est� a beleza da arte, cada um enxergar o seu ponto de vista. Mas � louco como a arte revela onde est� estacionada a nossa percep��o. As pessoas pensarem que � magia negra, como se fosse algo negativo inclusive, que est� representando o dem�nio. Tudo isso que aconteceu me provocou para refletir como a gente est� infectada por uma vers�o da hist�ria que � muito baseada no cristianismo, na culpa, no certo e no errado, no pecado e na pureza. Nas minhas cren�as, n�o existe de- m�nio. Dem�nio � a cren�a de algumas pessoas que n�o pode estar acima do todo. Diversidade � superimportante. Quando o presidente coloca a ideia de que Deus est� acima de todos � muito errado. O Estado � laico. Coloca os signos e a est�tica africanos e ind�genas como algo do dem�nio. Fico pensando se n�o tivesse pintado a personagem de preto. Se tivesse sido toda branca, n�o teria causado todo esse impacto, mesmo com o �tero pintado ali. Muita gente falando que a cobra � do pecado, se conectando com a B�blia.
Qual foi sua rea��o com a fala do prefeito no Roda viva?
N�o esperava. Fui assistir ao Roda viva com minha m�e, que gosta muito do Kalil. Ent�o, sentamos meu pai, minha m�e e eu na sala para assistir, e a�, quando ele falou, foi uma crise de identidade. Ela est� falando do mural? “M�e, ela est� falando.” A gente achou maravilhoso. Foi importante ele ter se posicionado. A gente teve a possibilidade de escutar a vis�o do prefeito da nossa cidade sobre o caso. O mural est� na rua, faz parte da cidade. � um mural que, como os outros, entrou para o patrim�nio da cidade, assim como uma escultura de um colonizador em qualquer lugar da cidade, o mural tamb�m entrou.
Esse questionamento � obra, de que retrata uma figura negra, como impulsiona voc�?
Faz ter a certeza de que estou no caminho certo, que � isso mesmo que tenho que fazer. Se apagar um, fa�o 10. Dou o recado que tem que ser dado, estou cumprindo o que eu vim cumprir e est� s� no come�o. A arte mudou a minha hist�ria de vida e pode mudar a de v�rias crian�as. Como autoestima, modificando percep��o de consci�ncia. O quanto � importante se ver pintado. Ver que a pessoa ali pintada � preta como voc� ou ver que est� mais pr�xima de sua realidade de vida. O graffiti tem muito disso, � uma cultura jovem.