“O correr da vida embrulha tudo. A vida � assim: esquenta e esfria, aperta e da� afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente � coragem.” � mais pura verdade escrita pelo g�nio Jo�o Guimar�es Rosa (1908-1967) em “Grande Sert�o: Veredas” se juntam outras palavras fundamentais para tr�s mineiras que estiveram recentemente em situa��es-limite de como��o nacional: for�a, solidariedade, afeto, vontade e uma boa dose de intui��o. Com muita coragem, claro, pois � o que a vida quer, principalmente durante o tr�gico cen�rio das chuvas deste ver�o.
No Dia Internacional da Mulher, celebrado hoje, Priscila Laender fala da “for�a que vem e a gente n�o consegue explicar”, ao recordar a queda, em 8 de janeiro, de uma rocha num c�nion no Lago de Furnas, em Capit�lio, na Regi�o Sudoeste de Minas. Ela passeava de barco com a fam�lia e amigos no local do desastre, que deixou 10 mortos. No mesmo dia, bem longe dali, Maria Geralda Carvalho, a dona Lia, salvava 17 familiares e vizinhos nadando “na rua” onde mora, em Santa Luzia, na Regi�o Metropolitana de Belo Horizonte, durante a enchente do Rio das Velhas.
J� em 13 de janeiro, em Ouro Preto, na Regi�o Central do estado, foi a vez de Paloma Magalh�es, da Defesa Civil municipal, dar o alerta sobre o deslizamento de terra no Morro da Forca, no Centro Hist�rico, e ajudar na remo��o de moradores. N�o houve v�timas, mas ficou o triste saldo: a queda de um casar�o do s�culo 19, constru��o neocolonial pioneira da primeira cidade brasileira reconhecida como patrim�nio Mundial.
For�a imensa

Na tela do celular, a nutricionista Priscila Patto Dessimoni Laender, de 37 anos, moradora do Bairro Sion, na Regi�o Centro-Sul de Belo Horizonte, guarda imagens do seu resgate durante a trag�dia em Capit�lio – ao lado, os filhos Breno, de 11, e Gabriel, de 9, e o marido, o economista Lu�z Fernando Laender. Sem tristeza no semblante, ela est� certa de que se trata de um registro de esperan�a, de vontade de viver e da for�a que brota, n�o se sabe de onde. “Nossa hist�ria � de sobreviv�ncia”, resume."Fui segurando um do lado esquerdo, o outro do direito. Na hora, s� pensava mesmo em retir�-los com seguran�a"
Priscila Patto Dessimoni Laender, de 37 anos, que fazia passeio de barco em 8 de janeiro e nadou para salvar os filhos de 11 e 9 anos depois da queda de uma rocha num c�nion no Lago de Furnas, em Capit�lio. No celular, imagens do resgate
De f�rias no in�cio do ano, a fam�lia escolheu o Lago de Furnas para descansar, e o passeio de barco no s�bado, em companhia de casais e amigos, se apresentava como a melhor pedida. Tudo parecia perfeito, at� que ocorreu o desprendimento da rocha, e o barco afundou. “Apenas as crian�as estavam com colete salva-vidas, mas, como fui nadadora por muitos anos, n�o tenho medo de �gua”, conta Priscila.
Com calma, ela nadou com os filhos at� uma pedra. “Fui segurando um do lado esquerdo, o outro do direito. Na hora, s� pensava mesmo em retir�-los com seguran�a. Na travessia, fui falando para eles baterem os p�s at� que alcan�amos a pedra. Meu marido tamb�m sabe nadar, e veio logo depois. Felizmente, do nosso barco, todos se salvaram”, conta a nutricionista.
Levados para a Santa Casa de Miseric�rdia de Capit�lio, o casal e os filhos foram liberados. Mas um m�s depois, em Belo Horizonte, Priscila come�ou a sentir um formigamento nas m�os, procurou um especialista e foi diagnosticada com uma fissura cervical. Usou, por um tempo, o colar indicado para imobilizar o pesco�o, e agora se encontra bem. Do epis�dio, ficou a li��o: “N�o podemos perder a oportunidade de ficar com a fam�lia e amigos e devemos resgatar valores importantes. Tristeza � para quem se foi; para mim, a felicidade de estar viva”.
Mergulho profundo

Quem passa agora pela Avenida Wenceslau Braz, no Pantanal, em Santa Luzia, custa a imaginar a correnteza que tomou conta da via. Nas enchentes de janeiro, o Rio das Velhas transbordou e deixou a comunidade n�o apenas ilhada, mas quase submersa. “Foi tanta �gua que perdi minha planta��o de milho e feij�o. Os p�s estavam lindos, perto de produzir... Ia guardar um pouco e distribuir aqui no Pantanal”, conta Maria Geralda Moreira de Carvalho, a dona Lia, de 55, enquanto mostra o colorau de urucum que fez na semana passada e serve copos de limonada bem gelada."Tenho quatro filhos, minha filha e as netas moram comigo. Vamos tocando a vida. Felizmente, estamos todos salvos"
Maria Geralda Moreira de Carvalho, de 55 anos, que hoje luta com o pre�o do aluguel na casa nova, depois de resgatar 17 pessoas, entre vizinhos e familiares, que estavam presas em casa, em Santa Luzia, durante enchente do Rio das Velhas
Em 8 de janeiro, dona Lia resgatou, pelas suas contas, 17 pessoas, entre vizinhos e familiares, que estavam presas em casa. “Sei nadar desde pequena. Aprendi no Rio Pacu�”, conta a mulher, natural de Bras�lia de Minas, na Regi�o Norte do estado, e moradora de Santa Luzia h� 21 anos, quatro dos quais no Pantanal. Ao lado das netas Jennifer, de 10, e Emily, de 9, ela explica que colocou as meninas sobre o pesco�o at� lev�-las para lugar seguro. Depois, mergulhou no “rio imundo” e nadou em dire��o a outras casas, contando com a ajuda de um vizinho que trazia um isopor. Naquele momento, o peda�o de isopor funcionou como embarca��o.
“E a senhora n�o teve medo?”, pergunta o rep�rter. “S� tenho medo, nesta vida, de lagarta. E acredita que vi duas daquelas cabeludas nas folhas de uma �rvore!? Bati a m�o na �gua, e n�o olhei mais para elas”, conta, com bom humor.
Nos dias seguintes, pelo ato de bravura, muitas pessoas passaram a tratar dona Lia como hero�na. Ela diz que ficou contente, mas acha que a necessidade de salvar os outros fala mais alto. “Coragem tamb�m conta”, diz a mulher, que se mudou para uma casa no Bairro Nova Esperan�a, depois de abrigada com a fam�lia em um s�tio. “O aluguel aqui � caro, estou pagando R$ 400, ent�o n�o ficou f�cil. Tenho quatro filhos, minha filha Patr�cia e as netas moram comigo. Vamos tocando a vida. Felizmente, estamos todos salvos.”
T�cnica, intui��o e “o dedo de Deus”

A hist�ria de Ouro Preto, a Vila Rica dos tempos coloniais, ficou marcada por mais uma cicatriz, representada pela destrui��o do Casar�o Baeta Neves, do fim do s�culo 19. Na vida de Paloma do Carmo Magalh�es, de 34 anos, engenheira de minas e engenheira urbana, funcion�ria h� tr�s anos da Defesa Civil da cidade, tamb�m ficou gravado esse momento que comoveu o pa�s em 13 de janeiro. Ela era a mulher certa, na hora certa, no lugar certo, e ajudou a evitar um mal ainda maior."Precisamos fazer nosso trabalho com excel�ncia, mas todas as a��es passam, necessariamente, pelo cora��o"
Paloma do Carmo Magalh�es, de 34 anos, engenheira e funcion�ria da Defesa Civil de Ouro Preto, que isolou as imedia��es do Morro da Forca, no munic�pio, pouco antes do deslizamento que destruiu um casar�o do s�culo 19
Moradora do munic�pio vizinho de Mariana, Paloma seguia na manh� daquela quinta-feira para mais um dia de trabalho, dirigindo o ve�culo da Defesa Civil. Quando se aproximava da cidade, viu que o motorista de um �nibus fazia sinal. “Parei a viatura e o condutor, Sebasti�o Mendes, me alertou para o Morro da Forca e o perigo de haver deslizamento de terra”, conta Paloma, que, de imediato, se dirigiu ao local e enxergou uma “trinca em forma de cunha”.
A primeira provid�ncia da servidora p�blica foi colocar uma fita zebrada isolando o sop� do morro. Depois, desviou o tr�nsito, “onde h� grande movimento, pois � a liga��o entre o Centro Hist�rico e o Bairro Bauxita”. Na sequ�ncia, entrou em contato com o coordenador da Defesa Civil de Ouro Preto, Neri Moutinho, e a equipe chegou para impedir a circula��o de ve�culos e pedestres.
“Hoje, fico pensando como seria se eu tivesse ido primeiro ao local de trabalho. Com certeza, n�o daria tempo de isolar a �rea. Foi o dedo de Deus que me conduziu e me fez ver a trinca”, acredita Paloma. “Penso que � um pouco de intui��o, associada a treinamento, t�cnica, observa��o. O bem maior � a vida. Precisamos fazer nosso trabalho com excel�ncia, mas todas as a��es passam, necessariamente, pelo cora��o.”
Capit�lio
Na sexta-feira (4/3), a per�cia da Pol�cia Civil concluiu que n�o houve interfer�ncia humana no colapso de rochas que matou, em 8 de janeiro, 10 pessoas e deixou v�rias feridas em Capit�lio, na Regi�o Sudoeste do estado. A recomenda��o � que haja restri��o a passeios e mais fiscaliza��o
Ouro Preto
Desde segunda-feira (28/2), equipes trabalham na retirada da terra para estabilizar a encosta do Morro da Forca, no Centro Hist�rico, onde ocorreu o deslizamento que destruiu, em 13 de janeiro, o Casar�o Baeta Neves. De acordo com a prefeitura local, a segunda fase ser� dedicada aos escombros do im�vel hist�rico, estando presente uma equipe multidisciplinar (arque�logos, historiadores e outros especialistas), na tentativa de se encontrarem elementos da constru��o, inaugurada no s�culo 19.