
Todas as manh�s, Sebasti�n Ciliurczuk abria a torneira de sua casa em Montevid�u para ferver a �gua do chimarr�o.
H� 45 dias, esse contador de 41 anos teve que mudar esse h�bito e esquentar um litro de �gua engarrafada para fazer a tradicional infus�o.
A qualidade da �gua corrente na capital uruguaia e cidades pr�ximas piorou ao longo do ano porque um dos reservat�rios que abastecem o sul do pa�s secou por falta de chuvas e porque a principal reserva de �gua doce da regi�o - a represa Paso Severino, localizada a 80 quil�metros ao norte de Montevid�u, estava praticamente esgotada.
Nesta semana, ela estava com apenas 3% da capacidade, mas j� chegou a ficar com 1,7% no in�cio de julho.
Um pa�s pr�ximo a um dos rios mais largos do mundo e que acreditava que suas reservas de �gua eram infinitas enfrenta a pior seca desde 74 anos, e suas consequ�ncias n�o s�o vistas apenas na produ��o agr�cola, mas tamb�m no dia a dia vida de mais da metade de seus 3,5 milh�es de habitantes.
O Uruguai, que foi o primeiro pa�s do mundo a incluir em sua Constitui��o que o acesso � �gua pot�vel � um direito humano fundamental, agora encontra dificuldades para cumprir o que determina o documento.

�gua salgada na torneira
O governo de centro-direita de Luis Lacalle Pou estava confiante de que a escassez de �gua seria resolvida com as chuvas, mas isso n�o ocorreu.
"(A a��o foi tomada) pensando que era uma quest�o tempor�ria e que as chuvas viriam", declarou o vice-ministro do Meio Ambiente, Gerardo Amarilla, em entrevista ao canal local 12 em meados de maio.
Questionado sobre se essa era a raz�o pela qual n�o tinha sido feita anteriormente uma represa para transferir �gua de outro rio para a bacia que alimenta o abastecimento da capital, o governante reconheceu que sim.
Naquela �poca, o governo adotou medidas transit�rias - por 45 dias - para flexibilizar os requisitos de qualidade da �gua encanada.
"Vamos torcer para que n�o precisem ser prorrogados", disse Lacalle Pou na ocasi�o.
Setenta dias depois, a qualidade da �gua n�o melhorou.

Com pouca �gua doce na represa Paso Severino, o governo autorizou em 26 de abril que a Companhia Nacional de Abastecimento de �gua (OSE, estatal) utilize a �gua do rio da Prata, que tem maior concentra��o de sal e cloreto, e a misture com os outros estoques.
Uma semana depois, o governo permitiu que a propor��o de s�dio para cloreto fosse ainda maior na �gua que as autoridades dizem ser "pr�pria para consumo humano".
Com essas disposi��es, o Uruguai garantiu que a �gua n�o parasse de sair quando a torneira fosse aberta.

Apesar disso, a �gua que hoje sai da torneira em Montevid�u pode ter, segundo autoriza��o do governo, mais que o dobro de s�dio e quase o triplo de cloreto em rela��o aos valores m�ximos da defini��o de potabilidade do pa�s sul-americano.
Em alguns dias, por�m, esses novos tetos foram ultrapassados, segundo registros oficiais.
A �gua tamb�m cont�m maior quantidade de trialometanos, compostos qu�micos que se formam no l�quido quando ele � tratado com cloro para desinfec��o.
Diante do agravamento da crise h�drica, o governo decretou estado de emerg�ncia h�drica em 19 de junho e adotou uma s�rie de medidas extraordin�rias, como a constru��o de uma barragem de emerg�ncia e de uma barragem tempor�ria, a compra de uma dessalinizadora e a instala��o de uma tubula��o de cerca de 13 quil�metros para levar �gua de outro rio at� a esta��o de tratamento de �gua.

Investimentos adiados repetidamente
A causa imediata da cr�tica situa��o h�drica no sul do Uruguai � a falta de chuva.
Nos �ltimos tr�s anos e meio, choveu 25% a menos que a m�dia hist�rica, e, se for considerado apenas o primeiro semestre de 2023, a queda foi de 43% em rela��o � m�dia.
A falta de chuvas no sul do pa�s � ainda maior e, segundo o Instituto Uruguaio de Meteorologia, “o per�odo atual � o mais seco” desde 1947.
Mas os especialistas consultados pela BBC Mundo consideram que a atual situa��o de emerg�ncia foi alcan�ada tamb�m pela falta de planejamento dos sucessivos governos uruguaios.
O reservat�rio Paso Severino foi inaugurado em outubro de 1987 e foi o �ltimo grande projeto realizado pelo Uruguai para aumentar sua capacidade de abastecimento de �gua.
Sua constru��o havia sido planejada ap�s um estudo realizado em 1970, que recomendou v�rias medidas adicionais a serem adotadas, como a constru��o de outra barragem na cidade de Casup�, a 110 quil�metros de Montevid�u, para ter um segundo reservat�rio de grande vaz�o.

A conclus�o de uma segunda obra de abastecimento de �gua foi adiada, governo ap�s governo.
Cinco epis�dios de estiagem nas d�cadas de 1990 e 2000 trouxeram o tema � tona de forma intermitente, mas como essas crises n�o foram suficientemente severas para afetar o abastecimento de �gua pot�vel, logo o investimento voltou a ser adiado.
Em 2013 e ap�s o aparecimento de cianobact�rias na �gua, o governo uruguaio disse que deveria ser constru�do um novo reservat�rio; um ano depois, anunciou o in�cio do projeto Casup�.
O tempo passou, o presidente Jos� Mujica entregou o governo ao seu s�cio de esquerda Tabar� V�zquez e, quase no final do mandato, em dezembro de 2019, o ent�o presidente apresentou os estudos preliminares para o governo Lacalle Pou iniciar a constru��o do reservat�rio.
O projeto estabeleceu um cronograma de obras com conclus�o em junho de 2024 e exigiu um investimento de US$ 100 milh�es (cerca de R$ 470 milh�es).

Outro projeto
O governo de Lacalle Pou decidiu ir por outro caminho diante da proposta de um grupo de investimentos para construir uma esta��o de tratamento de �gua na cidade costeira de Arazat�, a oeste de Montevid�u, para tirar �gua do rio da Prata a um custo de cerca de US$ 280 milh�es (cerca de R$1,3 bilh�o), mais juros, pag�veis %u200B%u200Bem 20 anos.
Isso politizou a discuss�o p�blica sobre a solu��o, e atualmente os partidos de oposi��o defendem o projeto Casup�, enquanto os governistas apoiam a iniciativa na costa uruguaia.
At� mesmo funcion�rios do governo declararam que continuam a beber �gua da torneira, enquanto os opositores afirmam que ela pode ser usada para quase nada.
“Suponha que (...) tiv�ssemos decidido pela barragem de Casup�, (...) ter�amos feito tudo certo e em novembro ela estaria pronta; aquela represa [hoje] n�o tinha �gua”, disse Lacalle Pou em entrevista coletiva em maio.
“O que o governo decidiu?” perguntou o presidente, e ele respondeu: “Uma fonte inesgot�vel de �gua como o projeto Arazat�, que tira �gua do rio da Prata”.
O chefe de Estado disse que o projeto que lhe foi deixado pelo governo anterior n�o est� descartado.
O gerente geral da OSE afirmou algum tempo depois que os dois projetos deveriam ser executados. "Voc� tem que fazer Arazat� o mais r�pido poss�vel e tamb�m tem que fazer Casup�", disse ele.

"Total falta de vis�o"
Para o diretor do Instituto de Ecologia e Ci�ncias Ambientais da Faculdade de Ci�ncias da Universidade da Rep�blica do Uruguai, Daniel Panario, houve uma “total falta de vis�o”.
"Acreditamos firmemente que nada acontece aqui", disse ele � BBC Mundo.
Panario, que tamb�m � doutor em tecnologia ambiental e gest�o h�drica, entende que, para evitar essa crise, deveria ter sido feito um investimento pontual tanto na gera��o de uma nova fonte de �gua quanto no reparo de tubula��es.
No Uruguai, metade da �gua transportada pela OSE � perdida, enquanto a m�dia de vazamentos nos pa�ses em desenvolvimento � de 35%, segundo o Banco Mundial.
“Os diferentes governos decidiram que era mais barato tornar a �gua pot�vel do que consertar os canos ”, diz ele.
Sobre a dicotomia do que deveria ser a nova fonte de recursos h�dricos para o sul do pa�s, Panario sustenta que "n�o poderia ser nenhum dos dois" projetos em discuss�o, mas que o mais adequado � o de Casup� porque sup�e um custo mais baixo.
O especialista alerta ainda que no passado a distribui��o de �gua corrente no sul do pa�s era descentralizada para v�rias fontes locais, e que ao longo das d�cadas a unifica��o dependente de uma �nica bacia agravou a crise atual.
Diego Berger, doutor em engenharia ambiental e administra��o de recursos h�dricos, concorda que o acesso � �gua pot�vel no Uruguai era considerado seguro e que faltava planejamento.
“� preciso entender que � um bem finito e que no futuro haver� mais flutua��es, mais anos de seca e mais anos de enchente”, disse � BBC Mundo.
“Nenhuma presid�ncia vai colher frutos [de planejar e investir] em seu governo porque as pol�ticas de �gua implicam trabalhar no longo prazo, e em muitos lugares n�o querem fazer isso porque transcende a administra��o”, acrescenta.
Berger � o coordenador de projetos especiais no exterior da empresa israelense de �gua Mekorot, contratada pela OSE antes desta crise para consultoria.

No ano passado, em entrevista � m�dia local, Berger disse ser um "milagre" que o sul do Uruguai tenha "�gua todos os dias" porque depende de uma �nica fonte de abastecimento.
O especialista acredita que o mais conveniente � construir primeiro a esta��o de tratamento de �gua do rio da Prata, para garantir uma segunda fonte de �gua , e que o projeto Casup� seja desenvolvido em uma segunda etapa, porque depende da mesma bacia que nesses anos foi afetado.
Berger tamb�m acha que � preciso conscientizar a popula��o sobre o consumo de �gua.
De acordo com um relat�rio do Minist�rio do Ambiente publicado a 7 de julho que inclui previs�es meteorol�gicas e proje��es baseadas em diferentes modelos, a normalidade na bacia que alimenta o abastecimento ao sul do pa�s poder� ser alcan�ada em dezembro.
As chuvas dos �ltimos dias pouco ajudaram a resolver a crise h�drica do Uruguai, pa�s que ter� que buscar solu��es de longo prazo para evitar o temido "dia zero" em que falta �gua.