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Estado de Minas I�MEN

A guerra 'esquecida' que deixa milhares de crian�as feridas e passando fome

Um raro vislumbre de um conflito fraturado onde os jovens s�o amea�ados pela guerra e pela fome


26/07/2023 06:27 - atualizado 26/07/2023 12:09
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Bader al-Harbi
Bader perdeu parte da perna direita ap�s ser atingido por uma granada no caminho da escola para casa (foto: GOKTAY KORALTAN/BBC)

Se o sofrimento tivesse endere�o, poderia ser a rua Al-Rasheed, em Taiz, uma cidade no I�men cercada por montanhas e for�as rebeldes.

Nesta rua estreita de casas fr�geis, os mais jovens n�o conseguem escapar de um conflito terr�vel que o mundo tende a esquecer.

Um menino franzino com cabelos escuros nos conduz pela rua, desviando agilmente dos buracos com suas muletas. Bader al-Harbi tem 7 anos, apenas um pouco mais jovem do que a guerra do I�men. Sua perna direita foi amputada acima do joelho.

No quintal da casa de sua fam�lia, Bader est� sentado em alguns blocos de concreto, com o coto amputado � mostra. Seu p� restante n�o tem sapato. Seu irm�o mais velho Hashim est� ao seu lado, compartilhando seu trauma e seu sil�ncio.

O p� direito de Hashim foi mutilado e ele n�o tem um polegar. Ele mexe sem parar com as m�os, como se tentasse apagar as cicatrizes.

Os meninos foram atingidos por um bombardeio organizado pelos rebeldes houti em uma manh� de outubro do ano passado, quando voltavam da escola em um intervalo, de acordo com seu pai, al-Harbi Nasser al-Majnahi. Eles n�o voltaram �s aulas desde ent�o.

"Tudo mudou completamente", diz ele, sentado de pernas cruzadas em um colch�o. "Eles n�o brincam mais fora com outras crian�as. Eles t�m defici�ncias. Eles est�o com medo e t�m problemas psicol�gicos."

Em voz baixa, parecendo mais jovem do que seus nove anos, Hashim diz que gostaria de voltar para a escola.

"Quero estudar e aprender", ele me diz. Perguntei a Bader se ele tamb�m queria ir. "Sim", ele responde. "Mas minha perna foi cortada, ent�o como posso ir?"

O pai deles diz que eles n�o foram matriculados no pr�ximo ano letivo porque n�o tem dinheiro para o transporte. E ele n�o tem como tirar sua fam�lia do perigo.

"Embora tenhamos medo, n�o podemos viver em outro lugar", ele me diz, "porque o aluguel seria mais alto. Ent�o, somos for�ados a ficar aqui, vivamos ou morramos".

O que come�ou como uma guerra civil foi alimentada por rivais regionais que apoiam lados opostos.

A Ar�bia Saudita sunita apoia o governo internacionalmente reconhecido do I�men, por mais fraco que seja. O xiita Ir� apoia o movimento houti, formalmente conhecido como Ansar Allah (ou Apoiadores de Deus) e que segue uma corrente do islamismo xiita conhecida como zaidismo.


Taiz
Nove anos ap�s o in�cio do conflito, Taiz ainda carrega as cicatrizes (foto: GOKTAY KORALTAN/BBC)

Em setembro de 2014, os houtis tomaram a capital do I�men, Sanaa, expulsando o governo. Na primavera seguinte, uma coaliz�o liderada pela Ar�bia Saudita interveio, apoiada pelo Reino Unido e pelos EUA.

Os sauditas prometeram uma opera��o r�pida para levar o governo de volta ao poder. N�o aconteceu exatamente assim.

Oito anos e milhares de ataques a�reos da coaliz�o depois, os houtis ainda controlam a capital. Os sauditas agora querem uma sa�da r�pida - pelo menos militarmente.

E nas linhas de frente em Taiz, Bader e Hashim ainda dormem e acordam ao som da guerra.

"Ou�o explos�es", diz Bader, "e h� atiradores de elite. Eles atiram em tudo na vizinhan�a. Sinto que pode haver uma explos�o perto de mim ou a casa pode explodir".

Caminhamos alguns passos at� a casa ao lado - onde outra inf�ncia foi dilacerada.

Amir aparece na porta - um menino de tr�s anos com uma camiseta amarela, silencioso e sombrio. No lugar da perna direita h� uma pr�tese de metal. Seu pai, Sharif al-Amri, o ajuda a se levantar, curvando-se frequentemente para beijar sua testa.


Amir e Sharif Ahmed
Amir 'lembra de cada momento' ap�s o bombardeio que tirou sua perna, diz seu pai (foto: GOKTAY KORALTAN/BBC)

Amir foi mutilado no mesmo dia que Bader e Hashim - apenas algumas horas depois.

Ele estava na casa de um parente do outro lado da rua quando o edif�cio foi bombardeado, matando seu tio e seu primo de seis anos. Amir sobreviveu, mas tem profundas feridas na mem�ria.

Enquanto Sharif coloca a dor de seu filho em palavras, Amir cochila no calor sufocante, embalado em seus bra�os.

"Ele se lembra de cada momento ap�s o bombardeio at� chegar ao hospital. Ele diz: 'Isso aconteceu com meu tio e isso aconteceu com meu primo.' Ele fala da fuma�a e do sangue que viu. Quando v� as crian�as brincando, fica muito chateado e diz: 'N�o tenho perna'."

Cada casa nesta rua tem sua medida de medo. Mas a do Munir tem mais do que a maioria.

O pai de quatro filhos me leva por um beco at� a casa de sua fam�lia, que fica bem na linha de fogo. Homens armados houti est�o t�o perto quanto seus vizinhos - ele diz que a cerca de 20 a 30 metros de dist�ncia.

"H� um atirador � nossa frente", diz Munir, agachando-se perto da janela de sua sala. "Posso v�-lo agora se abrir a janela. Se voc� sair para o jardim, ele atirar�."

"Vivemos com medo aqui em Taiz. As pessoas n�o sabem quando ser�o atingidas por um m�ssil ou um franco-atirador. Se Deus quiser, haver� paz e o I�men voltar� a ser grande."

No corredor, encontramos seu filho mais velho, Mohammed, um jovem animado de 14 anos que depende de uma cadeira de rodas. Quando sua escola foi bombardeada, os outros alunos fugiram, deixando-o para tr�s. Agora ele teme que, se sua casa for atingida, sua fam�lia possa se machucar tentando resgat�-lo.

Por mais de 3.000 dias, Taiz foi praticamente sitiada, um campo de batalha entre o governo e as for�as Houti. E os jovens n�o foram poupados.

Um m�dico local nos disse que, desde 2015, tratou cerca de 100 crian�as amputadas - mutiladas por bombardeios houti, minas e muni��es n�o detonadas.

A maioria das crian�as mutiladas e mortas em Taiz ao longo dos anos foi v�tima dos houtis. Mas outros morreram em ataques a�reos da coaliz�o liderada pela Ar�bia Saudita - nos primeiros anos da guerra - e alguns foram mortos por for�as do governo. Todos os lados t�m sangue nas m�os.

O conflito do I�men est� agora em um momento de menos viol�ncia - desde uma tr�gua mediada pela ONU no ano passado, que durou 6 meses. N�o � mais uma guerra total, mas tamb�m n�o � paz.

A Ar�bia Saudita e o Ir� apertaram as m�os e fizeram as pazes. At� agora tudo bem. Houve conversas entre os sauditas e os houthis, mas fontes nos dizem que elas pararam. E n�o h� negocia��es envolvendo as pr�prias fac��es em guerra do I�men.

O pa�s est� cada vez mais fragmentado, como um quebra-cabe�a quebrado que n�o pode ser remontado. Um movimento separatista - apoiado pelos Emirados �rabes Unidos - quer que o sul seja independente, como foi de 1967 a 1990. Essa � mais uma fissura em um Estado desgastado.


mapa
(foto: BBC)

Venho ao I�men desde o in�cio da guerra em mar�o de 2015. Esta � minha s�tima visita. Enquanto a comunidade internacional fala em movimentos de paz, por aqui reina o cansa�o e o desespero.

Durante tr�s semanas no pa�s, muitas conversas foram como uma despedida, um r�quiem � na��o.

Muitos duvidam que o I�men sobreviver� em sua forma atual. Muitos mais duvidam que os houthis far�o a paz.

"Eles afirmam ter o direito divino de governar", disse um profissional de vinte e poucos anos de Taiz, que preferiu n�o ser identificado. "Eles afirmam que o Profeta � seu av�. N�o consigo v�-los desistindo de suas armas e voltando para a democracia e as elei��es."

Ou dito de outra forma por Gamal Mahmoud Al Masrahi, respons�vel pelos campos de refugiados internos no sudoeste do I�men, "a comunidade internacional vive uma ilus�o" quando pensa que os houthis far�o a paz.

Quer�amos medir a temperatura no norte controlado pelos houthis, lar da maior parte da popula��o do I�men de 32 milh�es. Mas depois que chegamos ao pa�s, os rebeldes revogaram nossa permiss�o. Ativistas de direitos humanos em Sanaa dizem que os governantes de fato est�o cada vez mais repressivos.

Ao sairmos da Rua Al-Rasheed, Bader saiu, mas est� sentado sozinho � beira da estrada. Amir est� sendo levado na garuba de uma bicicleta por seu pai. "N�o tenha medo, meu amor", diz Sharif, "estou ao seu lado."

Ele pergunta ao filho o que ele quer para o futuro.

"Me compre uma arma", Amir responde hesitantemente, suas palavras chocam com sua voz infantil.

"Vou carregar uma bala na minha arma e atirar naqueles que pegaram minha perna."

Fome

Foi uma viagem de tr�s horas na garupa de uma motocicleta, em terreno acidentado - parte estrada, parte pedras - em um calor implac�vel. Mas esta foi a �nica maneira de Rajah Mohammed levar seu filho, Awam, gravemente doente, a um hospital infantil especializado em Taiz.

Primeiro, ele teve que passar 10 dias ganhando dinheiro para pagar a viagem de sua casa no porto de Mocha, no Mar Vermelho. A viagem custou 20.000 riais iemenitas, o equivalente a R$ 65.

Quando Awam chegou ao hospital sueco iemenita - ainda assim chamado, embora seus benfeitores suecos tenham partido h� muito tempo - a equipe correu para pes�-lo e medi-lo. Mas os gr�ficos e escalas n�o eram necess�rios para confirmar que ele estava gravemente desnutrido. Seus bra�os enrugados e o est�mago dolorosamente distendido contavam a hist�ria.

Rajah - que tem mais quatro filhos - luta para salvar seu filho h� um ano.


Rajah e Awam
Rajah Mohammed viajou tr�s horas de moto para levar o filho ao hospital (foto: GOKTAY KORALTAN/BBC)

"Ele sempre est� com febre", ele me diz, parado ao lado da cama de Awam, abanando-o com um peda�o de papel�o.

"Fomos a todos os hospitais de Mocha. Disseram-nos para traz�-lo aqui. Mal posso alimentar meus filhos. �s vezes, tudo o que temos � p�o e ch�. Pode ser assim por um m�s ou mais."

A fome faz parte do alicerce do I�men, mas foi agravada pelo conflito que destruiu meios de subsist�ncia, elevou os pre�os, deslocou mais de 4 milh�es de pessoas e fechou metade das unidades de sa�de do pa�s.

Rajah � um dos desabrigados pela guerra. "Fomos deslocados seis ou sete vezes", diz ele. "Toda vez devemos nos mudar para um novo lugar porque temos medo de minas terrestres."

A fome tem perseguido seu filho - e muitos outros aqui - desde o nascimento. Quase 500.000 crian�as iemenitas com menos de cinco anos sofrem de desnutri��o aguda grave e lutam para sobreviver, segundo a Organiza��o das Na��es Unidas (ONU).

Para Awam, h� mais uma amea�a. Testes mostram que ele pode ter leucemia e pode exigir tratamento prolongado.

Para Rajah, manter um filho no hospital significa arriscar que seus outros filhos passem fome em casa. Ele leva Awam de volta para Mocha no dia seguinte. Ele diz aos m�dicos que tentar� ganhar mais dinheiro para traz�-lo de volta.

Os m�dicos dizem que est�o recebendo muitos pacientes da cidade - outrora famosa por seu com�rcio de caf�, agora inundada por fam�lias deslocadas.

Viajamos at� l� pela mesma estrada esburacada que Rajah atravessou com seu filho, mas no conforto de um carro com tra��o nas quatro rodas.

Chegamos a uma cl�nica de sa�de rural, repleta de m�es vestidas da cabe�a aos p�s com abayas pretas e v�us no rosto, segurando crian�as doentes. O ar est� pesado com as s�plicas das m�es e o choro dos beb�s.

A cl�nica de tr�s quartos est� praticamente fechada atualmente, mas as autoridades locais decidiram abri-la porque est�vamos na �rea. As m�es avan�am, pensando que somos m�dicos estrangeiros, implorando que ajudemos seus filhos.

Um m�dico local aparece, mas ele nos diz que a equipe da cl�nica est� em greve e n�o tratar� de nenhum caso. "N�o podemos fazer nada por eles", diz o dr. Ali bin ali Doberah.

"Faz quatro meses que n�o recebemos. Alguns de n�s v�o procurar empregos que paguem porque n�o podemos alimentar nossos filhos."

A cl�nica n�o est� mais recebendo apoio de ag�ncias de ajuda estrangeiras que costumavam pagar parte dos sal�rios. Nove centros de sa�de fecharam em Mocha e outras �reas da costa oeste do I�men por falta de financiamento.

Em todo o pa�s, as ag�ncias de ajuda humanit�ria est�o reduzindo as doa��es. O Programa Mundial de Alimentos da ONU j� fez cortes profundos, ao norte e ao sul.

A organiza��o diz que ter� que interromper o fornecimento de alimentos para entre tr�s e cinco milh�es de pessoas at� meados de setembro, a menos que mais dinheiro entre.

Enquanto os doadores estrangeiros hesitam, as crian�as iemenitas lutam pela vida.


Safaa com sua mãe
Umm Ahmed carrega sua filha Safaa (foto: Goktay Koraltan/BBC)

No meio da multid�o est� uma crian�a de 11 meses chamada Safaa - cujos bra�os e pernas s�o apenas pele e osso e cujo rosto est� contorcido de dor. A filha de pescador est� definhando. Ela tamb�m sofre de problemas hep�ticos.

"�s vezes ela n�o tem comida enquanto o pai est� no mar. Temos que esperar que ele volte para podermos comprar comida para ela", diz a m�e, Umm Ahmed.

"Estou preocupada com ela. Quero conseguir ajuda para ela, mas nossas circunst�ncias s�o dif�ceis."

A cabe�a de Umm Ahmed est� abaixada, o ombro ca�do. A hist�ria de sua fam�lia � como um resumo dos anos de guerra do I�men, escritos com sangue e sofrimento.

Ela nos conta que est� desalojada h� 7 anos, seu cunhado foi morto em um ataque a�reo e sua sobrinha morreu na explos�o de uma mina terrestre. Ela enterrou quatro de seus nove filhos, por causa de desnutri��o e problemas hep�ticos. Agora a fome est� amea�ando sua filhinha.

Umm Ahmed nos conduz a curta dist�ncia at� sua casa, que - como seu pa�s - j� teve dias melhores. A tinta azul brilhante est� desaparecendo das paredes. H� uma porta de madeira ornamentada, mas poucos m�veis e nenhum brinquedo.

Ela coloca Safaa em uma rede feita de xale, balan�ando-a para frente e para tr�s para mant�-la fresca.

Seu marido, Anwar Taleb, parece preocupado e cansado. Ele � um pescador de terceira gera��o com uma barba espessa, que mal consegue alimentar sua fam�lia.


Família Taleb
Os pais de Safaa n�o podem pagar a viagem de cinco horas at� o hospital que oferece tratamento especializado para a filha (foto: GOKTAY KORALTAN/BBC)

"Vou para o mar de 15 a 20 dias de cada vez e consigo o que consigo", diz ele, "mas nos �ltimos tr�s meses n�o encontrei nenhum trabalho. �s vezes, o dinheiro que ganhamos cobre apenas o custo da viagem."

Ele nos conta que casou suas duas filhas - de 14 e 15 anos - porque n�o tem dinheiro para aliment�-las. Pedimos para conhec�-los, mas ele diz que mesmo que concorde, seus maridos n�o deixar�o. Mais duas inf�ncias interrompidas. Mais duas v�timas ocultas da guerra.

Agora Safaa pode estar ficando sem tempo.

Damos uma carona aos pais dela at� uma cl�nica local mais bem equipada - esta est� funcionando. Ela � internada imediatamente, mas os m�dicos dizem que ela precisar� de tratamento especializado na cidade portu�ria de Aden, no sul - uma viagem de cerca de cinco horas que seus pais n�o podem pagar.

Depois de alguns dias, descobrimos que ela tamb�m foi levada de volta para casa, onde pode haver pouco para aliment�-la.

Guerra, fome e pobreza est�o interligados aqui. As crian�as do I�men podem escapar de um e ser v�timas dos outros.

E correm o risco de serem negligenciados internacionalmente. Os horrores da Ucr�nia est�o mais pr�ximos de casa para muitas na��es ocidentais do que o sofrimento distante na Pen�nsula Ar�bica.

Agora, mais do que nunca, os iemenitas temem que sejam f�ceis de ignorar.

Quem ajudar� os meninos feridos de Taiz - Bader, Hashim e Amir - e as crian�as famintas de Mocha - Awam e Safaa?

Reportagem adicional de Wietske Burema, Ahmed Baider e Goktay Koraltan


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